A INTRUSA - CAPÍTULO 30 - (27/09/2025)

                                        

A INTRUSA

CAPÍTULO 30

UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI


CENA 1. MANSÃO DOS MONTESINO. SUÍTE DE LÍVIA. INT. NOITE

 

SONOPLASTIA – "POR UNA CABEZA" – CARLOS GARDEL

 

O corpo de Lívia repousa na cama como uma escultura trágica. A luz tênue destaca o vermelho profundo que mancha os lençóis — um balé de facas cravadas em ângulos quase coreografados. Há uma beleza mórbida na brutalidade.

A câmera desliza em direção à porta, onde se ouve a voz hesitante de Cecília, acompanhada de batidas suaves:

CECÍLIA -  (OFF) Lívia? Você está bem? Eu sei que o Carlos passou dos limites, mas precisamos conversar, minha filha. Por favor, abre essa porta.

Silêncio.

Cecília hesita, depois empurra a maçaneta. A porta se abre lentamente. O tango ainda toca — suave, cortante.

E então ela vê.

CECÍLIA-  (gritando) LÍVIA!

Seu grito corta a música. Cecília cambaleia, entra no quarto e cai de joelhos. Desaba em prantos. É um lamento que mistura dor verdadeira e culpa antiga.

CECÍLIA - (entre lágrimas) Minha menina, o que foi que fizeram com você?

Passos apressados. Carlos e Daniel aparecem na porta. Estancam ao ver o horror.

CARLOS -  (sussurrando, gelado) Meu Deus...

Daniel apenas encara o corpo. Os dois se olham — não com cumplicidade, mas com pavor. Há culpa nos olhos de ambos. Há passado.

A câmera fixa em Cecília, agarrada ao corpo da filha, gritando o nome de Lívia enquanto o tango continua em fade out, como se chorasse junto.

CORTA PARA:

 

CENA 2. MANSÃO DOS GODOY BUENO. SALA DE ESTAR. INT. NOITE

A sala respira um luxo antigo, com móveis de herança, pratarias que ninguém mais limpa direito e um leve cheiro de flores vencidas. A luz amarelada dos abajures realça a decadência nobre do ambiente — uma mansão que finge vitalidade, como quem se maquia para esconder a falência emocional.

Lari Pacotão e Vivi estão afundadas em poltronas de veludo. Ambas seguram taças de vinho tinto com uma informalidade que ofenderia qualquer matriarca tradicional. Estão rindo, desbocadas, bebendo com prazer e insolência — duas mulheres que sabem que a alta sociedade nunca as aceitou, e por isso mesmo, debocham dela.

Vivi fala em pajubá, com ironia e desdém, como se zombar da própria máscara fosse seu único alívio:

VIVI - Monamô, esse boy lixo não aguenta uma passiva poderosa, imagina quando souber quem é a verdadeira mamãe aqui.

LARI (gargalhando) - Mana, pelo amor, tu ainda vai me fazer cuspir esse vinho carérrimo nos tapetes dos Godoy Bueno!

O riso reverbera até ser cortado bruscamente. A câmera se volta para o alto da escada, onde Laura surge. Vestida com um sobretudo preto que mais parece um luto performático do que genuíno, ela desce os degraus como se cada passo fosse parte de uma coreografia mórbida.

Sua expressão é hermética, mas sob os olhos semicerrados há cálculo. Um leve perfume francês e a sombra de um segredo pairam sobre ela.

LAURA - Com tudo que está acontecendo, eu preciso sair. Beber.

A frase vem carregada de subentendidos — é um pedido de socorro ou uma ameaça?

VIVI - (em tom normal, sem disfarçar o cansaço) Eu entendo. Vai ficar tudo bem. Se precisar de ajuda com a Aurora, a Lari pode dar uma força.

Laura não responde, apenas lança um olhar neutro, de quem grava tudo na memória e se alimenta do silêncio. Sai com elegância gótica. A porta se fecha como o fim de um ato.

LARI - (baixo, mais para si mesma) Credo, que energia pesada.

VIVI - (quase como quem saboreia a própria frase) Logo saberemos se é só a energia... ou as atitudes também. Porque tudo vai vir à tona, mona. Sobre a Lucinha. Sobre a Carolina.

Nesse instante, o celular de Vivi vibra. Um toque que parece interromper a pose e revelar a mulher por trás da persona. Ela olha a tela: Carlos. O pai.

Ela atende. O que ouvimos agora é o silêncio do lado de fora, enquanto do outro lado da linha, o mundo dela começa a desmoronar.

O rosto de Vivi perde a cor. A expressão se contrai, os olhos se arregalam. A mão treme. A taça de vinho escorrega, o telefone escapa.

LARI - (assustada, tentando entender) Vivi? Que foi?

VIVI - (sem olhar, a voz saindo como se fosse um sopro) A Lívia (respira) foi assassinada.

CORTA PARA:

 

CENA 3. APARTAMENTO DE LUCINHA. SALA DE ESTAR. INT. NOITE

 

A sala está mal iluminada, como se recusasse a superar o luto. O ambiente ainda carrega o cheiro doce e incômodo de uma vela de baunilha. Em cima da mesa de centro, papéis amassados, uma caneca com batom seco e o caderno de anotações de Lucinha. Tudo respira ausência.

Rubinho, com olheiras cavadas e o semblante tenso, está curvado sobre o notebook de Lucinha. Ele tenta abrir os arquivos protegidos, usando softwares genéricos e a teimosia dos que amam em silêncio. O notebook está plugado à tomada — um detalhe que ele ignora por completo, absorto na própria obsessão. A luz azul da tela pisca com instabilidade, refletindo em seus olhos como um aviso.

Patrícia aparece no corredor. Usa um vestido insinuante e segura uma bolsa pequena — está pronta para a noite.

PATRÍCIA – Rubinho, não me julga, tá? Mas eu vou sair. Tô indo no Café de La Musique. Festa boa, gente viva.

Ela caminha até ele e beija sua testa com uma delicadeza melancólica, quase maternal.

PATRÍCIA (baixo) Eu sei que você tá fazendo isso por ela. Mas não vale morrer por isso, Rubinho. Ela não vai voltar.

RUBINHO - (sem tirar os olhos da tela) Eu me sacrificaria pela verdade.

Patrícia sorri com pena. Uma pena quase antiga. Ela sai, e a porta se fecha com um "clique" abafado. Silêncio. O som sutil do ventilador do notebook retorna, constante como um relógio.

A campainha toca. Rubinho, distraído, levanta e abre a porta sem olhar.

RUBINHO - (automático) Você esqueceu as chaves, Patrícia...

Mas não é Patrícia. É Laura, que todos ainda acreditam ser Selma. Ela entra devagar, como uma sombra, vestida com um sobretudo preto, os cabelos loiros e curto, um perfume forte e gélido.

 

SONOPLASTIA — “DO I WANNA KNOW?” – ARCTIC MONKEYS – INSTRUMENTAL

LAURA -  (sorrindo sutilmente) Eu não esqueci nada, Rubinho. Só queria conversar.

Rubinho, já desconfiado, dá um passo para trás, mas mantém a cortesia. O jogo de máscaras começa.

RUBINHO - Pode entrar.

Ela entra. O olhar de Laura passeia pela sala como quem revê uma peça de teatro antes do último ato.

LAURA (olhando o notebook) = Você tá tentando abrir o computador da Lucinha, né?

Rubinho hesita.

RUBINHO - Tô. Ainda não descobri a senha.

LAURA = É, um segredo vale o preço que se paga. Mas se você me trouxer um copo d’água, eu conto tudo.

Rubinho a encara. Está inquieto, mas curioso. Vai até a cozinha. A câmera permanece com Laura, que agora caminha lentamente até a mesa. Abre a bolsa e saca discretamente uma arma prateada. O olhar dela é frio, preciso, como de uma mulher que não se arrepende — só executa.

LAURA - (em voz alta) E a Patrícia? Onde foi?

RUBINHO - (da cozinha, em voz alta) Saiu. Café de La Musique.

LAURA - (quase divertida) Ah, a juventude tem um pacto com o ridículo.

Rubinho retorna com o copo d’água. Assim que ele atravessa a porta da cozinha, Laura aponta a arma para ele.

RUBINHO -  (assustado) O que é isso?!

LAURA - (calma, quase maternal) Senta. E põe as mãos no computador.

Ele obedece, pálido. Laura bebe a água com tranquilidade. Como se estivesse prestes a dar uma aula.

LAURA - Você quer respostas, né? Eu vou te dar.

Fita o corpo dele com desprezo disfarçado.

LAURA - A armadilha era pra Carolina. Mas a Lucinha (pausa) Ah, a Lucinha era esperta. Descobriu que eu não era a Selma. Que eu era Laura. A esposa do médico que Carolina destruiu com uma acusaçãozinha de estupro.

RUBINHO - (tentando se mover) Você matou a Lucinha?

LAURA - (sem hesitar) Sim. E você, querido. Vai ser o terceiro. Mas veja só a ironia: a única que eu ainda quero ver com as tripas pra fora continua viva. Carolina. Sempre escapando.

Rubinho levanta as mãos, tentando negociar.

RUBINHO - Você não precisa fazer isso.

LAURA - (rindo) Por favor, Rubinho, isso aqui não é novela da Record. Eu não sou vilã de quinta que precisa dar tiro.

Ela ergue o copo, olha para a tomada. Um segundo de silêncio.

LAURA - Quando se tem criatividade, até um copo d’água é fatal.

Laura arremessa o conteúdo do copo na tomada. Uma faísca. Depois outra. O som do notebook muda. Uma explosão curta, brutal.

Rubinho treme. Seu corpo é lançado da cadeira. Ele cai no chão, convulsionando. O cheiro de fio queimado e carne invade o ambiente.

Laura observa com frieza. Sem pressa. Sorri.

LAURA - (sussurrando para si mesma) Checkmate.

A câmera se afasta lentamente, captando o caos silencioso. O corpo de Rubinho estirado. A arma sobre a mesa. E Laura saindo, impassível, como quem só veio devolver um livro.

CORTA PARA:

 

CENA 4. MANSÃO DOS MONTESINO. SUÍTE DE LÍVIA. INT. NOITE

 

A suíte está tomada pela equipe forense. Lanternas acesas, flashes fotográficos, e o barulho dos estalos de luvas sendo vestidas criam uma atmosfera gelada. O corpo de Lívia jaz sobre a cama, um espetáculo grotesco de sangue seco e metal retorcido. O colarinho do pijama de seda ainda parece elegante, apesar de tingido de vermelho.

POLICIAL - 1 (balançando a cabeça com ironia fatigada) Estar no círculo de amizade dos Godoy Bueno tá mais perigoso que a inflação dos anos 80...

POLICIAL 2 - (cínico, sem tirar os olhos do corpo) Essa família precisava urgente de um Fernando Henrique. Um Plano Real que estabilizasse a taxa de mortalidade.

POLICIAL 3 - (olhando as facas com nojo e graça sombria) Ou ao menos um congelamento de cadáveres. Porque desse jeito, só resta contar os corpos.

A porta se abre com firmeza. A Delegada Clara entra com o rosto carregado de tensão. O salto alto ecoa pelo chão de mármore.

CLARA — Qual a situação?

POLICIAL 1 — As facas estavam sob o colchão. Um verdadeiro ninho de morte. Conforme a vítima se mexia, as lâminas se revelavam. Cada movimento, um corte novo. Um balé macabro.

CLARA — Homicídio evidente. Impressões?

POLICIAL 2 — Apenas as da vítima. Nada mais.

CLARA (seca, impaciente) — Já checaram as câmeras?

POLICIAL 3 — O segurança da casa disse que preferiu esperar pela senhora. Está no escritório.

CLARA — Ótimo. Vamos ver se alguém teve a audácia de sorrir para a câmera antes de cometer um assassinato digno de Agatha Christie.

Clara sai com passos firmes, deixando para trás o trio de policiais. Eles continuam o trabalho em silêncio por um instante, até que Policial 1, encarando o corpo imóvel de Lívia, murmura:

POLICIAL 1 — E dizem que o problema do Brasil é a insegurança pública...

CORTA PARA:

CENA 5. MANSÃO DOS MONTESINO. SALA DE ESTAR. INT. NOITE

A sala de estar está quase às escuras, iluminada apenas pela luz opaca dos lustres. Um silêncio sufocante paira sobre o ambiente. Carlos está sentado, olhar perdido, mãos entrelaçadas, como quem tenta manter o mundo colado com os próprios dedos. Vivi — que ele acredita ser Carolina — entra com Marco Aurélio, ambos cautelosos, como se pisassem em vidro.

MARCO AURÉLIO - (quebrando o silêncio) Como você está, Carlos?

CARLOS - (voz embargada, sem levantar o olhar) Destruído. As últimas palavras da minha filha pra mim foram um “quero que você morra”.
(pausa) E eu bati nela. Quando descobri que ela mentiu sobre a gravidez.

VIVI - (sem fôlego) Ela não estava grávida?

CARLOS - (levanta o olhar, cansado e cruel consigo mesmo)Não. Foi tudo armação. Uma chantagem emocional. Um teatro barato pra prender o Daniel.

Ele balança a cabeça com pesar, como quem reconhece que também foi personagem desse espetáculo grotesco.

CARLOS - (tentando se recompor) Cecília está com os paramédicos, no quarto. A pressão dela oscilou. Pode ser tudo.

Carlos vira-se para Marco Aurélio, quase suplicante:

CARLOS — Marco, você se importa de ver como ela está? Eu preciso... falar com a Carolina. A sós.

Marco Aurélio faz um gesto afirmativo e sai com discrição. Carlos se aproxima de Vivi, que permanece estática. O som de um relógio antigo preenche o silêncio entre eles.

CARLOS -  (com esforço) Eu sei que nós não falamos muito desde Campos do Jordão.

VIVI -(confusa) Campos do Jordão?

CARLOS - (tentando decifrar o rosto dela)Sim. Você não lembra? Eu cheguei logo depois que Lívia saiu. A gente conversou. Eu respondi todas as suas perguntas sobre a Olivia.

Vivi é atingida por um raio interno. A expressão muda. O mundo gira. O nome Olivia a desarma.

INSERT – FLASHBACK
MANSÃO DOS GODOY BUENO. SALA DE ESTAR. INT. NOITE

Carolina e Carlos estão sentados, emoldurados por uma atmosfera pesada, de revelação.

CAROLINA - (com a coragem dos órfãos) Eu descobri o nome da minha mãe biológica. Olivia.

Carlos segura o nome como se segurasse uma bomba sem alicate. Seus olhos marejam.

CARLOS - (voz frágil)Olivia era minha filha e da Cecília. (pausa, ele respira fundo) Carolina, você é minha neta.

O silêncio pesa mais que qualquer grito. Carlos continua, atropelando memórias com culpa:

CARLOS — Olivia era uma criança doce. Mas instável. Fugiu de casa tantas vezes que perdemos a conta. Morávamos em Santa Catarina, naquela época. Eu e Cecília, mesmo sendo médicos, não soubemos ver. Ela era bipolar. Tinha transtorno de personalidade borderline. (pausa) E então, um dia, ela apareceu com você nos braços. Pediu que a gente criasse. Sumiu. Nós nos mudamos pra São Paulo e recomeçamos fingindo que você era nossa filha.

CAROLINA  - (ferida, mas lúcida) Você não me deve desculpas, Carlos. Deve à Olivia.

CARLOS  - (voz quase inaudível) Eu tentei. Internamos ela várias vezes. No Albert Einstein. Psiquiatria. Mas nada resolvia. E a Cecília, ela desistiu. Ela não queria mais saber da filha.

FIM DO FLASHBACK.

 

Vivi desaba no sofá como se o corpo dela, enfim, desistisse de sustentar os escombros da verdade. Sua respiração é pesada, quase ofegante. As peças finalmente se encaixaram. Olivia era a mulher que a criou, que a deixou, que nunca voltou. E Carolina, sua irmã.

Ela encara Carlos com olhos lavados de tudo — mágoa, surpresa, e aquele reconhecimento trágico que une os órfãos da verdade.

CORTA PARA:

 

CENA 6. CAFÉ DE LA MUSIQUE. INT. NOITE

 

SONOPLASTIA — “SYMPATHY FOR THE DEVIL (NEPTUNES REMIX)” – THE ROLLING STONES

 

A luz do ambiente pulsa em tons quentes — vermelho, âmbar, ouro — refletida nas taças erguidas por jovens ricos e desavisados. O Café de la Musique não é apenas um bar: é um templo hedonista, onde cada gole tenta calar um segredo.

Laura, conhecida por todos ali como Selma, entra com uma confiança silenciosa e letal. O sobretudo preto ficou no carro. Agora ela veste um tubinho vermelho, sensual e firme, como se estivesse prestes a seduzir ou executar alguém. Os olhos vasculham o salão como os de uma predadora refinada — até pousarem em Patrícia, cercada de amigas, rindo mecanicamente.

Laura pega uma bebida no balcão. Um dry martini, seco como seu humor. Bebe um gole e se aproxima.

LAURA  - (com um sorriso que flerta com o cinismo) Eu precisava dançar. Esquecer um pouco que o mundo é um túmulo e que a vida tem cheiro de formol.

PATRÍCIA - (forçando leveza) Perder a mãe não tem manual. Eu tô fingindo que tá tudo bem. Mas não sei nem como levantar da cama.

LAURA - (olhar quase carinhoso, mas distante) Você tá fazendo melhor do que muita gente. Inclusive eu.

Duas amigas se aproximam, abraçam Patrícia, que se vira por instantes. É o tempo suficiente para Laura pegar discretamente um pequeno frasco da clutch. Ela pinga o conteúdo em uma das taças, devolvendo-a à mesa com a calma de quem serve veneno num jantar de gala.

Mas o destino é um roteirista perverso.

Patrícia, distraída, pega a taça errada — a de Laura — e a vira de um gole só. Laura, por sua vez, pega a taça de Patrícia — a droga agora em sua corrente sanguínea.

A batida da música sobe.

CORTE RÁPIDO — PISTA DE DANÇA.

As luzes giram como moinhos de delírio. Laura, fora de si, dança com um frenesi que beira o profano. Seus gestos estão soltos, exagerados, sensuais e perigosos como um punhal de cetim.

PATRÍCIA - (tentando rir, nervosa) Você tá bem, Selma?

LAURA - (entre gargalhadas descontroladas) Eu tô alucicrazy, baby! Colocaram coisa no meu drink! (gargalha) Tô igual àquela lenda urbana da perua que achou que era floco de neve!

PATRÍCIA - (entre riso e preocupação) Acho melhor eu te levar pra casa.

LAURA - (ainda dançando, suando e hipnotizando o ambiente) Pra onde me levares, eu vou, querida. Hoje eu sou GPS sem satélite. Perdidinha!

Patrícia a segura pelo braço com delicadeza. O rosto de Laura vai mudando: de excitação para torpor. O sorriso ainda está ali, mas os olhos já começam a fugir do foco.

CORTA PARA:

CENA 6. SÃO PAULO. EXT. AMANHECER

Com a sonoplastia inidiada na cena precedente, a cidade desperta com uma mistura de silêncio e sirenes. O céu manchado por tons de chumbo e salmão. A câmera sobrevoa a Avenida Faria Lima, depois mergulha para mostrar o carro de Patrícia, deslizando em meio ao trânsito leve, cortando a cidade ainda sonolenta.

CORTA PARA:

INT. CARRO DE PATRÍCIA – EM MOVIMENTO

Laura, agora em estado de torpor, está encostada no banco do carona. A maquiagem borrada, o vestido vermelho levemente amassado, os olhos abertos mas vazios. Um leve sorriso ainda se prende aos lábios, como se estivesse presa em alguma memória distorcida.

PATRÍCIA - (olhando de relance, preocupada) Selma? Tá me ouvindo?

Nenhuma resposta. Apenas um suspiro longo, quase teatral.

PATRÍCIA — Eu devia te levar pro hospital...

LAURA - (num sussurro arrastado, sorrindo) Não precisa, minha flor, o veneno que mata também ensina a dançar...

Patrícia engole seco. O carro continua.

CORTE PARA:

EXT. RUA RESIDENCIAL – PRÉDIO DE LUCINHA. MANHÃ FRIA

Patrícia ajuda Laura a sair do carro. Laura ri baixinho, tropeçando nos próprios pés.

LAURA — Me leva pra cama ou me joga na piscina, qualquer fim combina comigo...

PATRÍCIA - (tentando manter a calma) Só vamos entrar, tá?

Elas entram. A câmera permanece do lado de fora por instantes.  A música finalmente cessa. O silêncio pesa como um segredo.

CORTA PARA:

CENA 7. APARTAMENTO DE LUCINHA. SALA DE ESTAR. INT. DIA

 

Patrícia gira a chave e empurra a porta com cuidado. O ambiente está escuro, com um cheiro metálico no ar. Ela entra, Laura (ainda com aparência bagunçada da noite anterior) logo atrás.

PATRÍCIA — Rubinho? Tá aí?

Ela acende a luz. O horror é imediato.

Rubinho está caído sobre o notebook, o rosto inclinado para o teclado. Um fio de fumaça sobe da tomada ao lado — faíscas elétricas ainda pulsam com intermitência, como uma respiração moribunda. O corpo parece enrijecido. Um fio de baba escorre pelo canto da boca, e os olhos estão semiabertos, vidrados.

PATRÍCIA (grita) — MEU DEUS!

Laura dá um passo à frente, observa a cena como quem analisa uma instalação artística

LAURA -  (quase divertida) Ó tá fritinho. Crocante por fora, molinho por dentro. Igual batatinha do Outback.

Ela ri. Roda sobre os calcanhares, bêbada ainda de adrenalina, loucura ou qualquer resquício químico da noite anterior.

LAURA (continuando, com humor ácido) E eu achando que tava frita (RI ALTO) Mas ele, meu amor,  virou torresmo de gente.

Patrícia cai de joelhos, em choque. A respiração é curta. As mãos tremem. Ela olha para Laura, em pânico.

PATRÍCIA — Mais alguém foi assassinado.

LAURA - (sem alterar o tom, como se comentasse o tempo)  Essa cidade tá um episódio do Arquivo Morto...

CORTE PARA:

FIM

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