A INTRUSA - CAPÍTULO 29 - (26/09/2025)

   

A INTRUSA

CAPÍTULO 29

UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI


CENA 1. MANSÃO DOS GODOY BUENO. SALA DE ESTAR. INT. DIA

A luz entra filtrada pelas cortinas de linho. A conversa anterior ainda ecoa no ambiente. Laura, parcialmente oculta atrás de uma coluna decorativa, observa com o corpo rígido, olhos atentos, quase felinos. O rosto não revela nada, mas sua postura trai uma vigilância inquieta.

A câmera volta lentamente para Rubinho, Lari Pacotão e Vivi — que todos acreditam ser Carolina. O trio permanece em um semicírculo tenso, com taças abandonadas sobre a mesinha de centro e o som ambiente da casa quase silenciado, como se o mundo estivesse prendendo a respiração.

VIVI - (voz calma, mas firme) Rubinho, você precisa se acalmar. Conseguiu entrar no notebook?

RUBINHO = (irritado, frustrado) Não. Tentei várias senhas, mas não consegui. Nada funcionou.

LARI PACOTÃO = (cortando, prática) = Amô, posso chamar a Masha — a Ursona, do Rio. Uma haker travesti bapho. Se tiver senha, ela quebra em dois toques de unha.

RUBINHO = (sem hesitar) Então chama. Qualquer coisa que ajude.

VIVI - (mais próxima, quase sussurrando) Mas, por favor ninguém pode saber. Principalmente a Selma. Eu não confio nela. E tenho motivos pra acreditar que ela pode estar envolvida na morte da Lucinha.

O silêncio pesa como chumbo. Todos se entreolham. Lari abaixa o olhar por um instante, sem perder o glamour. Rubinho fica imóvel.

A câmera se move lentamente, num travelling fluido, retornando para Laura, ainda oculta. Ela já não apenas ouve — ela absorve. O rosto não treme, mas os olhos queimam.

LAURA - (sarcástica, gélida, em tom cortante, como uma lâmina) Interessante, as pessoas vivem desconfiando das outras. Mas esquecem que a traição quase sempre vem de quem está do lado.

Silêncio. Cortina balança levemente com o vento. A tensão é palpável.

CORTA PARA:

CENA 2. MANSÃO DOS GODOY BUENO. SUÍTE DE DANIEL. INT. DIA

O som do chuveiro ecoa como um ruído distante e íntimo. A luz suave atravessa as frestas da cortina, projetando feixes dourados pelo quarto impecavelmente organizado.

A porta do banheiro está entreaberta. Através do vapor que embaça o ar, distinguimos Daniel tomando banho — a silhueta atlética, os ombros largos, o corpo escultural revelando força e vaidade contida.

Enquanto a água corre, Laura entra no quarto em silêncio absoluto. O salto tirado, a postura felina. Ela caminha decidida, mas sem pressa. Nas mãos, um celular pré-pago — simples, barato, mas perigosamente estratégico.

Com um gesto calculado, ela o deixa sobre os lençóis brancos, bem ao centro da cama. Olha em volta, confere o cenário, ouve a água ainda caindo. O leve sorriso de canto de boca denuncia a satisfação do jogo sujo bem executado.

Antes que o chuveiro seja desligado, Laura já se foi, como uma sombra elegante.

O som do metal se fecha. Daniel sai do banheiro, com uma toalha na cintura e outra nos cabelos. O corpo ainda molhado brilha sob a luz do quarto. Ele caminha até a cama, distraído, mas atento — e então para.

Vê o telefone desconhecido sobre a cama.

Franze a testa, pega o aparelho.

O visor acende. Uma única notificação de mensagem. Ele lê.

VOZ EM OFF – LÍVIA (com sotaque venenoso, frio e debochado):
"Os cinquenta mil pelo ultrassom falso já estão na conta."

O silêncio agora é outro — denso, brutal.

A expressão de Daniel muda. O choque inicial se transforma em raiva fria, concentrada. Os olhos escurecem.

Ele não diz uma palavra. Mas seu rosto já escreveu a sentença.

Lívia fingiu uma gravidez.

E ele acaba de descobrir.

CORTA PARA:

 

CENA 3. SÃO PAULO. EXT. DIA

 

SONOPLASTIA – “PERFECT ILLUSION” – LADY GAGA

 

A cidade pulsa. São Paulo fervilha em sua beleza urbana e caos coreografado. Trânsito denso, buzinas ao longe, edifícios espelhados refletindo um céu encoberto, cruzamentos onde ninguém se olha — todos em rota de colisão emocional.

A batida da música embala a chegada de Laura, transformada.

Ela surge em meio à multidão, camuflada em plena luz do dia. Cabelos tingidos de preto, presos de forma discreta. Um uniforme de empregada doméstica simples, porém meticulosamente escolhido — ela não quer ser notada, mas sim confundida com qualquer outra.

Nos olhos dela, determinação e desprezo.

A câmera acompanha Laura em movimento — atravessando a rua com elegância silenciosa, adentrando o portão da casa dos Montesinos como se pertencesse àquela rotina. Sua postura é humilde, quase invisível, mas o olhar segue afiado como uma navalha.

Não é uma empregada. É uma predadora disfarçada.

Enquanto a música atinge o refrão, a câmera sobrevoa a propriedade luxuosa — um lar de aparências perfeitas prestes a ser invadido por uma ilusão calculada.

Laura está dentro.

CORTA PARA:

 

CENA 4. MANSÃO DOS MONTESINOS. COZINHA. INT. DIA

A cozinha da mansão pulsa com um silêncio disciplinado. O ambiente é claro, asséptico, com o cheiro leve de aço inox e café fresco pairando no ar.

Uma empregada dobra panos em cima da bancada, de costas para uma mulher que observa a prataria com atenção quase devocional. Há algo de estranho naquela contemplação — mais do que brilho, ela parece procurar significados.

A empregada se vira, ainda sem saber com quem fala.

EMPREGADA 1 - (sem olhar nos olhos) Veio substituir a Maria?

A mulher se vira devagar.

É Laura, com peruca morena, uniforme bem passado e luvas de borracha nas mãos. Seus olhos, no entanto, são os mesmos: frios, treinados, quase entediados com a inocência ao redor.

LAURA - Sim.

A empregada pega uma lista mental e entrega o comando sem cerimônia.

EMPREGADA 1 - Pode começar pelos quartos. Os forros de cama não foram trocados.

Laura sorri. Um sorriso quase invisível, sem emoção, mas com uma pontinha de sarcasmo que ninguém percebe.

LAURA - Tá certo. Eu sou a Gabriela.

A empregada balança a cabeça, satisfeita, e volta ao que estava fazendo.

Laura segue pelo corredor como quem carrega uma bandeja, mas, na verdade, carrega um plano.

CORTA PARA:

 

CENA 5. MANSÃO DOS MONTESINOS. SUÍTE DE LÍVIA. INT. DIA

 

SONOPLASTIA — “DO I WANNA KNOW?” – ARCTIC MONKEYS – INSTRUMENTAL

 

A suíte é um altar da vaidade: espelhos ovais, flores quase artificiais, almofadas felpudas jogadas com descuido calculado. A luz que atravessa a cortina branca se deforma nas franjas douradas da poltrona.

A maçaneta gira. A porta se fecha com um sussurro abafado.

Laura entra. Seu disfarce permanece: cabelos negros como tinta fresca, uniforme limpo, luvas de borracha azuis. Mas há algo nos olhos — um brilho febril, de quem já ultrapassou a linha entre justiça e sadismo há muito tempo.

Ela tranca a porta. Um clique seco. Definitivo.

Empurra o carrinho de limpeza até a lateral da cama. Com gestos meticulosos, abre uma aba inferior e retira uma maleta preta, de couro rígido, marcada por riscos antigos — como se já tivesse pertencido a um açougueiro em outro século.

Ao abrir a maleta, o horror ganha elegância.

Dentro, uma coleção de facas cirúrgicas e laminadores industriais, de lâminas curvas, dentadas, uma delas com ponta tripla e cabo de nácar — cada peça afiada como sentença. São instrumentos de guerra disfarçados de utensílios.

Laura calça outra luva.

Levanta lentamente o colchão como quem ergue um véu de noiva — mas o que se revela é um ritual de morte.

Com dedos firmes, ela começa a enfiar as facas por baixo da espuma, inclinando cada uma para cima, calibrando o ângulo para atingir com precisão as costas, o ventre ou a garganta — dependendo da posição da vítima ao deitar.

Uma lâmina longa e fina, feita para cortar ligamentos, fica no centro.
Duas adagas curtas, cruzadas, formam um X fatal na altura do travesseiro.

A última, serrilhada, é empurrada com tanta força que rasga discretamente o forro — e sangra o colchão em silêncio.

Laura pressiona o tecido com o joelho.
Uma lâmina salta, furiosa, erguendo o lençol como um punhal que pede sangue.

Ela observa. Contempla. Admira.

Depois, cuidadosamente, abaixa a lâmina com as palmas.
Alisa o tecido com ternura falsa.
Arruma o travesseiro como quem termina de preparar um leito nupcial.

Então, sussurra.

LAURA - (baixinho, venenosa, com um carinho cruel) Boa noite, princesa do capacho. Que os anjos te abracem bem devagarinho.

Ela se levanta, reencaixa a maleta no carrinho e sai, deixando o quarto perfeitamente arrumado — e armado como uma armadilha de vidro invisível.

CORTA PARA:

 

CENA 6. SÃO PAULO. ANOITECER. EXT.

 

SONOPLASTIA — “NÃO EXISTE AMOR EM SP” – CRIOLO

 

A cidade desce em melancolia. O céu é um tapete de cimento colorido por néons e fumaça. Os prédios parecem vigiar, imóveis e cúmplices.

A câmera sobrevoa a Avenida Brasil. O trânsito engasga. Gente apressada, buzinas histéricas, vendedores de rosas vermelhas sob os faróis.

Anoitece em São Paulo.

A lente fecha sobre o Jardins, zona nobre e gélida.
A fachada da mansão dos Montesinos surge imponente, com sua arquitetura austera e suas luzes acesas como olhos atentos. Um carro de luxo estaciona em frente. É Daniel.

Laura sai pela lateral, ainda vestida como empregada, com os cabelos negros presos sob o lenço. Anda depressa, mas sem correr. Carrega algo dentro da bolsa — talvez o silêncio. Talvez a culpa. Talvez só a ilusão do controle.

Ela desaparece.

No mesmo instante, Daniel entra furioso pelo portão da frente, sem esperar ser anunciado, como um homem que perdeu a paciência com o mundo.

CORTA PARA:

CENA 7. MANSÃO DOS MONTESINOS. SALA DE ESTAR. INT. NOITE

Ambiente refinado, elegante. Luz baixa. Um silêncio tenso paira sobre a sala de estar. A porcelana tilinta levemente nas mãos de Cecília e Lívia, que tomam chá como se o gesto mantivesse alguma normalidade. O relógio antigo marca o tempo com rigidez, como se fosse cúmplice do que está prestes a acontecer.

CECÍLIA - (pausa) Por que não fez o ultrassom comigo?

A escada range. CARLOS desce devagar, os olhos cansados. O som de uma porta batendo forte interrompe o momento. Daniel entra como uma tempestade.

DANIEL - (gritando) É porque ela não está grávida!

Daniel joga um celular pré-pago sobre a mesa. O impacto ecoa.

DANIEL - (continuando) Ela forjou tudo. Aqui está a mensagem para a grande médica Marilha confirmando o pagamento. Aqui está.

Cecília arregala os olhos. Carlos paralisa.

CECÍLIA - (sem fôlego) É verdade, Lívia?

Lívia tenta disfarçar a tensão. Sua voz é doce, mas carrega veneno.

LÍVIA
Como você conseguiu isso?!

DANIEL
(irônico)
A fada do dente deixou debaixo do meu travesseiro.

LÍVIA – (debochada) E você quer jogar isso na minha cara como se fosse o Oscar da verdade?

CECÍLIA - (frontal) Então vamos fazer um ultrassom agora. Tenho uma máquina velha em casa.

LÍVIA - (com charme indignado) Você tá duvidando de mim, mãe?

Carlos avança e segura o braço da filha. A máscara de pai protetor se desfaz. Agora é só homem ferido.

CARLOS - (gritando) Me diga a verdade, menina — você brincou com o Daniel?

Lívia  explode, revelando-se de vez.

LÍVIA - (gritando) Sim! Eu menti! Porque eu não suportava ver ele voltando com a Carolina! Quando ela perdeu o bebê, achei que seria uma boa ideia “eu” ter um filho dele.

Daniel  fica atônito. Respira com dificuldade.

DANIEL - (sem ar) A Carolina tava grávida?

LÍVIA - Sim, estava. E perdeu tudo naquele maldito acidente no Guarujá (debochada) Que também deveria ter lhe tirado a vida.

O silêncio agora é ensurdecedor. CARLOS se afasta, como se tivesse levado um soco na alma.

CARLOS - (raivoso) Eu não te ensinei nada nessa vida?

LÍVIA -Você sempre preferiu ensinar a Carolina! Aquela maldita!

Carlos puxa o cinto. O gesto é mecânico, primitivo. Ele agarra a filha e a joga no sofá. A violência é crua, real. Ceília grita. Daniel hesita.

CARLOS - (gritando) Pois agora minha cinta vai dar atenção só pra você!

O cinto desce. O som é seco. Lívia grita. O vestido rasga. A pele marca. Daniel intervém com firmeza e segura o braço de Carlos.

DANIEL - (gritando) CHEGA!

Carlos para. Respirando com dificuldade. Cambaleia. Cecília corre até ele.  Lívia deitada, levanta-se devagar, rasgada, suja, devastada.

LÍVIA - (sibilando) Você me odeia, pai? Que fofo. Eu também desejo que você desapareça dessa história.

Ela sobe as escadas, deixando uma sala pesada, como se o ar tivesse se tornado chumbo. Todos ficam paralisados, um retrato de destruição elegante.

CORTA PARA:

CENA 8. MANSÃO DOS MONTESINO. SUÍTE DE LÍVIA. INT. NOITE

 

SONOPLASTIA – "POR UNA CABEZA" – CARLOS GARDEL

 

Lívia adentra a suíte, tomada por uma angústia visceral. O ambiente parece sugar a luz, tornando o espaço um túmulo onde o tango melancólico de Gardel soa como um requiem.

Ela se atira na cama com a força desesperada de quem quer se entregar ao vazio. A câmera desce lentamente para revelar, sob o colchão, uma fileira cruel de facas afiadas, sombrias, aguardando seu momento.

Com mãos trêmulas e cheias de tormento, Lívia golpeia a cama. De súbito, facas afiadas saltam como serpentes de aço, cravando-se com precisão impiedosa em sua carne.

Os cortes rasgam sua pele, mas é a dor da alma que reverbera em seus gritos — agudos, quebradiços, que ecoam pelas paredes nuas.

A câmera se aproxima de seu rosto contorcido, marcado pelo terror e pela dor, enquanto o sangue começa a escorrer em jorros grotescos, manchando sua boca e pescoço, formando poças rubras que crescem sobre os lençóis.

Cada movimento seu desencadeia novas lâminas que se fincam como pregos infernais, rasgando músculos, tendões, transformando seu corpo numa armação de sofrimento vivo.

Então, com um silêncio aterrador, uma faca penetra sua cabeça, rasgando o cérebro — um golpe final, cruel, que sela seu destino.

Lívia desaba, olhos vidrados e mortos, enquanto o sangue escorre como uma catarata negra, encharcando tudo.

O tango segue, agora mais lúgubre, como um canto fúnebre para a alma que se despede.

CORTA PARA: 

FIM

Nenhum comentário:

Postar um comentário