A INTRUSA - CAPÍTULO 32 - (30/09/2025)

    

A INTRUSA

CAPÍTULO 32

UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI


CENA 1. HOSPITAL ALBERT EINSTEIN. ALA PSIQUIÁTRICA. INT. DIA

 

SONOPLASTIA — “ANOTHER DAY IN PARADISE” – CAT VS CAT & JOYNER – INSTRUMENTAL

 

O corredor da ala psiquiátrica parece infinito. As luzes frias lançam sombras longas sobre o chão encerado. O silêncio aqui não é paz — é sentença.

Helena caminha à frente. Seus passos são firmes, mas o olhar vacila.
Atrás dela,
 Carlos e Vivi — que todos acreditam ser Carolina — seguem em silêncio absoluto. Como se qualquer palavra pudesse desmoronar a estrutura de tudo.

Ao fundo, a porta de segurança.
Alta. Grossa. Branca.
Inofensiva à primeira vista — mas guarda o peso de um abismo atrás dela.

HELENA - (parando diante da porta) Ela está sob sedação pesada. Ainda não reconhece rostos. (pausa) Ainda confunde datas. Nomes. E dores.

Carlos segura a mão de Vivi com força. Ela, por sua vez, encara a porta — como se fosse um espelho da própria culpa.

VIVI - (quase sem voz) E ela sente?

HELENA - (demora a responder) Às vezes, sinto que sim.
(pausa) Outras, acho que ela foi pra um lugar onde sentir dói menos.

Silêncio. A trilha cresce levemente, envolta em melancolia.

HELENA - (suave) Vocês querem vê-la?

Carlos olha para Vivi, que engole em seco.

Ela dá um passo à frente, mas para.
Encarando a porta.
A maçaneta cromada brilha com a luz do teto — uma relíquia fria entre ela e o passado.

VIVI - (baixinho, com os olhos marejados) Eu não consigo. Não agora.

HELENA - (gentil, compreensiva) Tudo bem. O tempo não cura. Mas às vezes ele espera.

Carlos coloca a mão no ombro de Helena em agradecimento.
Ela abre um leve sorriso triste. O tipo de sorriso que se aprende no convívio diário com a dor alheia.

A câmera aproxima da porta, preenchendo o quadro.
Não vemos o que está além.
Mas ouvimos, muito baixo,
 uma respiração irregular, um sussurro, talvez um nome.

A sonoplastia permanece baixa, nostálgica.
A imagem
 congela brevemente na porta.

A porta não se abre.
Mas tudo dentro de quem a encara se quebra.

CORTA PARA:

 

CENA 2. APARTAMENTO DE LUCINHA. SALA DE ESTAR. INT. DIA

 

O ambiente está impregnado de morte e tensão. O corpo de Rubinho permanece no chão, coberto por um lençol da perícia. O notebook ainda fuma discretamente, como um cigarro esquecido no cinzeiro do destino.

A câmera percorre a sala com olhares profissionais. Os policiais forenses fotografam, anotam, recolhem vestígios — enquanto soltam comentários ácidos para aliviar o peso do que veem.

POLICIAL 1  - (anotando, seco)Mais rápida e cruel que o impeachment da Dilma.

POLICIAL 2 - (enquanto fotografa o corpo) Isso aqui é mais brutal que o Bolsonaro ser eleito presidente.

POLICIAL 3 - (ajustando a luva, debochado) Ainda assim, só não é pior do que o Brasil sendo governado por ninguém.

Eles riem entre si. Riso de quem convive com o grotesco.

Clara, vestindo um sobretudo cinza-chumbo, entra na sala com olhar clínico. Ela observa o caos sem perder a elegância. Olha para o corpo. Depois para o computador queimado. Nenhuma palavra. Só pensamento.

CLARA - (cortante, para os policiais) Já deu a rodada da Tic-Tac. Agora, me deem o que importa.

POLICIAL 2 - (sério, ao perceber o tom) Homicídio. Puro. Água jogada na tomada enquanto ele usava o notebook. Choque letal. E rápido.

CLARA - (firme, caminhando pela sala): E impressões?

POLICIAL 1 — Só as dele. E de mais duas pessoas: Patrícia, que assumiu ter estado aqui e Selma. A tal amiga que apareceu de madrugada.

Clara fecha a cara, pensativa. Acompanha o olhar até o local onde a água foi derramada. Uma ironia trágica. Tudo parece fácil demais.

CLARA (murmura, como para si mesma): — Conveniente, não? Selma aparece do nada, dorme aqui, não vê nada, mas deixa digitais em tudo.

Ela se ajoelha ao lado do notebook, o toca com uma caneta. A luz azul da tela ainda projeta um brilho mórbido no lençol que cobre Rubinho.

CLARA - (para os policiais, se levantando) Sejam eficazes. Não quero mais um relatório cheio de lacunas e suposições. Eu quero provas.

Ela encara os três como quem interroga com os olhos.

CLARA  - (mais baixo, quase cínica)  Porque se não for Selma, talvez o nome dela nem seja Selma.

CORTA PARA:

 

CENA 3. MANSÃO DOS GODOY BUENO. ESCRITÓRIO. INT. DIA

 

SONOPLASTIA — "MON MANÈGE À MOI (TU ME FAIS TOURNER LA TÊTE)" – ÉTIENNE DAHO – INSTRUMENTAL

 

A música francesa ecoa levemente de uma vitrola retrô no canto do escritório — envolvente, nostálgica, perversa.

Valquíria está de pé, de costas para a janela. Usa um robe de seda preto, que reflete a luz como um véu de veneno.
Diante dela,
 Serpentinha, terno italiano impecável, dedos acariciando distraidamente um cinzeiro de cristal.

VALQUÍRIA - (direta, sem rodeios) A Laura saiu do controle. Ela está matando por capricho, como quem quebra taças depois do champanhe.

SERPENTINHA - (sem tirar os olhos dela) E agora está espirrando sangue em cima do brasão dos Godoy Bueno.

VALQUÍRIA - (aproxima-se dele, felina) Se essa trilha continuar, a polícia vai chegar até mim. Ou pior até os arquivos da fundação.

SERPENTINHA - (seca o sorriso) Quer que eu faça o quê?

VALQUÍRIA -  (com frieza ensaiada) Quero que ela desapareça. Como os processos de fraude em 2006. Como meu ex-marido. Como tudo o que me incomoda.

Ele dá um pequeno sorriso de canto. Ela se aproxima ainda mais, agora a centímetros.

SERPENTINHA - (calmo, fatal) Então considera feito.

VALQUÍRIA - (sussurrando no ouvido dele) Eu adoro esse seu tom profissional...

A música cresce sutilmente. Ela o beija com fome contida — primeiro o pescoço, depois a boca. Ele responde com o mesmo apetite.
Ela o empurra para a mesa de mogno, derrubando papéis, canetas, um porta-retratos com a foto de Armand na formatura. O vidro trinca. Ninguém nota.

A câmera sobe lentamente, enquanto os dois se devoram em cima da mesa. A trilha francesa gira como um carrossel doentio. Luxúria e conspiração na mesma partitura.

CORTE PARA:

 

CENA 4. HOSPITAL ALBERT EINSTEIN. ALA PSIQUIÁTRICA. QUARTO DE OLIVIA. INT. DIA

 

SONOPLASTIA — “OCEANO” – DJAVAN – INSTRUMENTAL

 

A luz que entra pela janela do quarto é branca e difusa, quase celestial. O quarto é silencioso. Equipamentos ligados em silêncio. Cortinas leves balançam com o vento do ar-condicionado.

OLIVIA está deitada. Frágil. A cabeça levemente tombada para o lado. O rosto sem maquiagem revela cansaço e abandono. Há traços de uma beleza antiga, que ainda resiste.

A porta do quarto se abre devagar. HELENA entra primeiro. Atrás dela, VIVI (que todos acreditam ser Carolina) e CARLOS.

HELENA se vira, diz em voz baixa:

HELENA - Ela ainda está sob efeito da sedação. Pode acordar a qualquer momento. Fiquem calmos.

VIVI - (sussurrando) Eu tô calma.

CARLOS - (sem soltá-la) Vai dar tudo certo.

Helena faz um gesto delicado e abre completamente a porta. Vivi entra devagar.

Ângulo sobre Olívia. Ela está imóvel. Um suspiro frágil escapa.

Vivi caminha até a cama. Fica ali parada, em silêncio. O rosto se contorce entre mágoa e ternura. Carlos observa de longe.

INSERT — FLASHBACK - IMAGEM DIFUSA, LUZ SOLAR FORTE

 

— Uma Olívia jovem, rindo com a pequena Vivi num parque. As duas sentadas na grama, brincando de boneca. O vestido florido da menina esvoaçando.
— 
Olívia colocando a filha para dormir. Cobre com cuidado, beija a testa.
— Uma última imagem:
 Olívia, com semblante tenso, empurra uma porta de ferro. A vizinha abre. Olívia segura a mão da filha com força, depois solta. Vivi olha para trás. Olívia não olha. Caminha pela rua de cabeça baixa. O céu está cinza. A porta da casa da vizinha se fecha com um clique seco.

FIM DO FLASHBACK.

Olívia se agita. Os olhos se abrem de repente. Perdida, assustada. Ela vê Vivi. Pega seu braço, instintivamente.

OLIVIA - (baixa, trêmula) Vivi?

Helena dá um passo à frente.

HELENA - É sua filha, Carolina.

Olívia nega com um movimento suave da cabeça, sem tirar os olhos de Vivi.

OLIVIA – Não, não é Carolina. É a Vivi. Eu lembro. Esse olhar...

Vivi treme. A voz sai baixa, como um sussurro:

VIVI - Você me abandonou...

Olívia baixa os olhos. As mãos trêmulas. Tenta falar, a voz falha.

OLIVIA -Eu sonhei tanto em criar você, mas a minha cabeça (respira fundo) eu tive medo de fazer com você o que fizeram comigo...

Vivi se senta à beira da cama. Segura a mão da mãe com força.

VIVI - Eu tô aqui agora. Só não me esquece de novo.

Olívia sorri, entre as lágrimas. As duas se encaram. Um instante de comunhão quase impossível — e, ainda assim, real. Helena se aproxima.

HELENA - (baixo, firme) Ela precisa descansar.

Carlos toca o ombro de Vivi. Ela se levanta devagar, mas sem soltar a mão da mãe. Olívia a solta por fim, os dedos escorregando, como quem abre mão do passado.


A câmera recua pela porta. Vemos 
Olívia deitada novamente, serena. A mão de Vivi ainda pousada sobre o lençol. A porta se fecha devagar com um leve estalido. O som de “Oceano” continua, quase como um lamento.

CORTA PARA:

 

CENA 5. SÃO PAULO / RIO DE JANEIRO. EXT. ANOITECER

 

SONOPLASTIA — “PADAM PADAM” – KYLIE MINOGUE

 

A trilha pulsa como um coração elétrico, um aviso sensual e iminente. O céu de São Paulo começa a mudar de cor, tingido de um dourado denso que escorre pelas fachadas dos prédios. A cidade parece conter a respiração — algo no ar pesa. O concreto brilha de forma doentia, como se suasse luz.

O edifício Copan reflete mil janelas fechadas, cada uma guardando uma história trancada por dentro. A Estação da Luz recebe um trem cansado. Homens e mulheres descem em silêncio, como fantasmas vestidos de terno. Uma bolsa cai na escada rolante — comprimidos, batom, preservativos, uma carteira. Ninguém ajuda. Ninguém olha.

Um homem fuma na sacada de um prédio antigo da Bela Vista. Ele observa as luzes que acendem uma a uma, como se calculasse alguma tragédia. Seus olhos brilham com algo entre o desejo e a culpa. A fumaça do cigarro se mistura com a primeira sombra da noite.

A cena corta suavemente para o Rio.

A enseada de Botafogo surge como um espelho tenso. O Cristo Redentor ao fundo parece encoberto por nuvens baixas, como se estivesse evitando ver o que acontece abaixo. No Aterro do Flamengo, skatistas deslizam como se dançassem sobre vidro, em silêncio.

Uma mulher tropeça de salto alto na Lapa. Um homem com olhos pintados oferece a mão — ela recusa. O neon de um motel pulsa em vermelho atrás dela, refletido na poça de uma chuva recente. Um carro preto estaciona em frente. Alguém desce, a câmera não mostra o rosto. Apenas o som de um salto firme e o fecho de uma bolsa se abrindo.

Na orla de Copacabana, dois policiais observam o mar. Um lê um papel amassado, o outro chupa um chiclete e diz algo inaudível. Ao fundo, um helicóptero cruza os céus como um presságio. A praia está quase vazia. As ondas beijam a areia com preguiça, e um par de chinelos esquecidos parece apontar para o nada.

No plano geral, a noite se impõe. Não como um manto, mas como um pacto. O céu escurece por completo entre as duas cidades. Luzes piscam em janelas distantes. Portas se fecham. Segredos circulam. O mundo respira fundo e se prepara para algo que ainda não tem nome.

CORTA PARA:

 

CENA 6. APARTAMENTO DE LARI PACOTÃO E VIVI VENENO. SALA. INT. NOITE

 

A sala está imersa numa penumbra estilizada. As luzes de neon da rua filtram-se pelas cortinas translúcidas, projetando tons róseos e azulados sobre os móveis de gosto duvidoso e luxo improvisado. Um ventilador de teto gira preguiçoso, como se acompanhasse a ansiedade no ar.

Nanny Who está de pé, inquieta, usando um robe de cetim animal print e pantufas com glitter. O celular vibra pela quinta vez sobre a mesinha de centro. Ela não olha — apenas puxa uma tragada do vape com sabor de tangerina e murmura um pajubá nervoso.

A porta se abre com uma leve batida e Madson entra. Seus olhos estão vermelhos, o rosto suado, os ombros tensos como um animal acuado. Ela fecha a porta com força e encosta as costas nela como se fosse impedir o mundo de entrar.

Nanny Who corre até ela.

NANNY WHO - (muito aflita) Monamô! Tava ligando que nem uma doida, mana! Eu pensei que o boy magia do inferno já tinha te achado e te picado no meio igual figurante de novela das sete!

Madson tenta sorrir, mas o sorriso vira lágrima. Ela desaba nos braços de Nanny.

MADSON - (entre soluços) Ele quase me pegou na casa de repouso. Ele tava lá. A minha avó. Ela me protegeu sem nem enxergar. Eu senti o cheiro dele. O som do sapato dele no corredor. Eu senti tudo de novo. A mão dele. A pressão. O nojo.

Nanny aperta a amiga contra o peito, afaga seus cabelos como uma irmã de alma.

NANNY WHO - (sussurrando, firme) Pega tuas coisas, mana. Vaza daqui. Some. Rio de Janeiro não merece mais teu perfume. Vai com aquele bofe bonito, o Marcos. Ele é um pão doce com recheio de caráter.

Madson balança a cabeça, insegura.

MADSON – Mas é tudo tão novo. A gente mal se conhece. Ele vai achar que eu sou um fardo. Uma história mal contada.

Nanny se afasta, segura o rosto dela com as duas mãos e fala com doçura dura.

NANNY WHO - Olha pra mim, Madson. Tu é sobrevivente. Tu não é bagagem, tu é bagagem de mão: leve, cara e essencial. Conta a verdade. Se ele for metade do que parece, vai te proteger que nem diamante.

Ela sorri com brilho, mas os olhos marejados.

NANNY WHO - E se ele não aguentar tua luz, mana. Ele que vá morar com os hétero topzera na Barra.

Madson ri no choro, e elas se abraçam com força. A câmera se afasta devagar, captando o contraste da sala: um ambiente de exagero kitsch, mas um núcleo de verdade brutal e dolorosa no centro. O ventilador continua girando, indiferente à dor e à beleza da sobrevivência.

CORTA PARA:

 

CENA 7. FACHADA DO PRÉDIO DE LUCINHA – JARDINS. EXT. NOITE

 

SONOPLASTIA — “DO I WANNA KNOW?” – ARCTIC MONKEYS – INSTRUMENTAL

 

A rua é uma das discretas dos Jardins — sofisticada e silenciosa, mas com aquela tensão noturna típica de São Paulo. Os postes projetam sombras alongadas nas calçadas de paralelepípedo, e o som distante de uma ambulância corta a noite abafada. Choveu há pouco; o asfalto ainda brilha úmido sob os faróis ocasionais.

Laura — com o vestido vermelho da noite anterior, maquiagem borrada e os cabelos revoltos como uma musa decadente — tropeça até seu carro estacionado na calçada. Ela ri sozinha, um riso bêbado e vazio, como se estivesse saindo de uma peça que ela mesma protagonizou e não lembra mais o final.

Abre a porta, joga a bolsa no banco do passageiro e entra. Fecha a porta com força. Por um instante, tudo silencia.

Ela se encara no espelho retrovisor, ajeita o batom borrado com o dedo e murmura:

LAURA - (sorrindo, insana) A rainha da Augusta sobreviveu a mais uma noite. Quem diria...

De repente, uma sombra se movimenta atrás dela.

Antes que consiga reagir, braços fortes a puxam para trás pelo pescoço. Uma gravata fina se aperta em sua garganta. Laura engasga, chuta, raspa as unhas nos bancos, tenta gritar, mas só consegue emitir um som sufocado. Seus olhos se arregalam. O vidro embaçado do carro treme com a luta.

A câmera se move lentamente para revelar o rosto do homem no banco de trás.

É Serpentina. Frio. Preciso. Quase sereno, como quem cumpre uma obrigação chata antes do jantar. Ele não fala. Apenas observa os olhos de Laura se esvaziarem.

A respiração dela começa a falhar.

A música cresce em intensidade. O som da guitarra se distorce num lamento elétrico.

Laura solta um último suspiro e sorri, como se entendesse tudo — e zombasse da morte.

CORTA BRUSCO PARA:

FIM

Nenhum comentário:

Postar um comentário