A INTRUSA - CAPÍTULO 27 - (24/09/2025)

 

A INTRUSA

CAPÍTULO 27

UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI


CENA 1. MANSÃO DOS GODOY BUENO. SALA DE ESTAR. INT. DIA

Clara e Laura estão frente a frente. O ar na sala é cortante. A câmera capta, com leve tremor, o olhar fixo da delegada na mulher que conhece como Selma Dupont. Um silêncio denso se instala.

Valquíria, imóvel próxima à escadaria, observa tudo de braços cruzados, como uma esfinge venenosa, discreta mas atenta, o olhar de quem avalia cada movimento com precisão cirúrgica.

CLARA - (frontal, controlada) Gostaria que a senhora me dissesse exatamente o que aconteceu ontem à noite, quando Lucinha chegou nesta casa.

LAURA - (pausa breve, voz serena) Ela chegou transtornada. Falando alto. Invadiu a casa.

CLARA - (sarcástica, sutil) Invadiu, é? Os funcionários disseram que vocês conversaram. E que depois disso, Lucinha foi direto para a estufa.

LAURA - (um segundo de hesitação, depois seca) Mentira. Eu não falei com ela. Subi para o quarto. Não sou babá de malucas.

CLARA - (sorriso leve, irônico) Estranho, porque todos dizem o contrário. Mas tudo bem. Ainda vamos conversar bastante, senhora Ledur. Por enquanto, só peço que não saia da cidade.

Laura finge indiferença, mas o maxilar contraído a entrega.

CLARA - (dura, antes de sair) Ainda há muitas perguntas — e pouquíssimas respostas.

Ela caminha em direção à porta. Valquíria observa a saída da delegada com o mesmo sorriso enigmático de sempre. Quando a porta se fecha, Laura e Valquíria se encaram. Nenhuma palavra. Apenas tensão elétrica no ar.

A câmera fecha em Laura, seu rosto duro, olhos frios. E depois em Valquíria, com um leve sorriso de desdém, quase divertido.

CORTA PARA:

 

CENA 2. HOSPITAL ALBERT EINSTEIN. CONSULTÓRIO DE CARLOS. INT. DIA

O ambiente é asséptico, quase inóspito. Cortinas translúcidas deixam entrar uma luz leitosa, pálida, que desenha silhuetas melancólicas sobre os móveis frios. Carlos, de jaleco e semblante fechado, digita lentamente no computador, revisando exames com a meticulosidade de quem tenta, ao mesmo tempo, fugir da própria consciência.

Uma batida firme ecoa. Ele nem precisa olhar.

CARLOS - (voz contida) Pode entrar.

A porta se abre com leve rangido. Helena surge emoldurada no batente, trajando um trench coat bege sobre um vestido cinza de linho. Os cabelos presos com elegância e o olhar duro, quase clínico. Ela não sorri.

HELENA - (sem preâmbulos) Precisamos conversar, Carlos.

Carlos ergue os olhos devagar. Ao vê-la, não há surpresa — apenas um suspiro abafado. Ele sabe o que vem. E teme.

CARLOS - (voz baixa) Você é da psiquiatria, suponho que é sobre Olivia.

HELENA - (afirma, sem emoção) Sim.

Ela caminha lentamente até a mesa. Tira um envelope pardo da bolsa e o coloca diante dele com cuidado, como quem oferece uma prova irrefutável.

HELENA - (continua) Foi trazida ontem à noite. Vagueava pela Avenida Angélica… desorientada. Com hematomas, arranhões… e completamente dissociativa. Ninguém sabia quem era. Mas quando ela acordou, disse seu nome.

CARLOS - (engole em seco) Ela está bem?

HELENA - (firme, profissional) Fisicamente, sim. Mas mentalmente, Carlos, ela não está aqui apenas porque é frágil. Ela está quebrada. E pelo que li — vocês quebraram juntos.

Carlos desvia o olhar. Sabe que é verdade. A respiração se altera.

CARLOS - (sem conseguir esconder a culpa) Eu achei que ela estivesse morta.

HELENA - (olhar incisivo) Você quis que estivesse. Porque é mais fácil conviver com um fantasma do que com o que restou dela.

Silêncio. Os dois se encaram. Há entre eles uma história antiga, mal resolvida — talvez familiar, talvez profissional — mas latente.

HELENA - (pausa tensa) Preciso da sua ajuda. Não como médico. Mas como o homem que ela amou.

Carlos permanece imóvel. O plano congela em seu rosto. Uma culpa que não se nomeia. Uma escolha que ele ainda precisa fazer.

CORTA PARA:

CENA 3. MANSÃO DOS GODOY BUENO. JARDIM. EXT. DIA

O sol da manhã filtra-se pelas árvores altas e pelo paisagismo simétrico. O jardim da mansão é impecável, com topiarias esculpidas, orquídeas vibrantes e o som de uma fonte discreta ao fundo. Um cenário idílico — onde a ameaça ronda por trás do bucolismo.

Laura está sentada em um banco de ferro fundido, observando, à distância, a pequena Aurora brincar com uma boneca, em silêncio. Está com um vestido leve, os cabelos soltos, aparentando serenidade. Mas seus olhos estão duros. Observam tudo com cálculo. Frieza.

De repente, Lívia surge, elegante e irônica, em um vestido justo, óculos escuros enormes e um celular nas mãos. Ela caminha devagar, como uma felina prestes a atacar. A voz surge cortante, envolta em sarcasmo.

LÍVIA - (apontando o jardim com desdém) Não sabia que o seu novo trabalho incluía serviços de babá. Ou você anda colecionando funções?

LAURA = (frívola, quase indiferente) Não sou babá. Só estou aqui a pedido da Carolina. É um favor.

LÍVIA - (sorriso de víbora) Ah, claro. Um favor. Assim como trabalhar no hospital Albert Einstein fantasiada de enfermeira ruiva?

Laura vira o rosto para encará-la. Lívia já tirou os óculos escuros. A expressão é triunfante. Ela exibe o celular — na tela, a foto nítida de Laura disfarçada no corredor do hospital.

LÍVIA - (venenosa) Carolina também pediu isso?

LAURA - (olhar fixo, glacial) Não sei quem é essa mulher.

LÍVIA = (cínica) Mas a câmera sabe. E a câmera não mente.

Laura levanta-se com calma. A luz do sol bate em seu rosto, revelando uma beleza dura, escultórica. Ela se aproxima de Lívia em silêncio. Os olhos se fixam nos dela. A voz sai baixa. Cortante.

LAURA - (ameaça fria) Se você mostrar isso pra alguém vai se arrepender, Lívia. Profundamente.

LÍVIA - (faz que ri, mas com nervosismo) Está me ameaçando, Selma?

LAURA = (seco, cruel) Tô te avisando.

Lívia hesita por um instante. A ousadia se mistura com um temor difuso. Laura não grita. Não gesticula. Mas há algo assustadoramente real em sua firmeza. O silêncio entre as duas é sufocante.

Ao fundo, a menina Aurora ri inocentemente, alheia ao veneno que paira no ar.

CORTA PARA:

 

CENA 4. APARTAMENTO DE LUCINHA. SALA DE ESTAR. INT. DIA

A sala está envolta por uma penumbra suave. As janelas filtram a luz do fim da manhã, tingindo o ambiente de um dourado fosco, melancólico. Há um silêncio pesado, quase religioso — o tipo de silêncio que só a morte deixa como herança.

Patrícia, sentada no tapete com as pernas cruzadas, folheia lentamente um álbum de fotografias. Os olhos fixos numa imagem onde aparece ainda criança, sorrindo nos braços da mãe. É um instante congelado de ternura — a felicidade antes da queda. O gesto de Patrícia é íntimo: ela toca o contorno da mãe na foto como se ainda pudesse senti-la viva. Seus olhos marejam, mas ela não chora. Está no limiar do colapso — e resistindo com toda a dignidade que lhe resta.

Rubinho aparece no limiar do corredor, amassado, abatido. Sua presença contrasta com a fragilidade do momento. Ele hesita antes de falar, respeitoso, quase cúmplice.

RUBINHO - (baixo, cuidadoso) Tá conseguindo ficar sozinha?

PATRÍCIA = (com um meio sorriso triste) Não tô sozinha. Ela tá em tudo aqui. (pausa) O perfume dela ainda tá no ar.

Rubinho assente em silêncio. Ele se aproxima com cautela, e seus olhos recaem sobre o notebook pousado sobre um aparador de madeira antiga, ao lado de um porta-retratos com uma imagem de Lucinha sorrindo. É como se o aparelho agora guardasse segredos que poderiam desmoronar o que ainda está de pé.

RUBINHO - (ainda sem olhar para Patrícia) Você sabe a senha do computador? 

PATRÍCIA - (não precisa pensar)Era algo meio secreto. Tá aí, se quiser tentar.

Rubinho pega o notebook. O clique ao abrir o aparelho é seco, metálico — quase fúnebre. A tela desperta com a frieza impessoal da tecnologia. Surge o pedido de senha.

Rubinho digita o nome da filha. Depois uma data. Depois “Lucinha”. Nada. A tela pisca a recusa. Ele respira fundo, frustrado. Mas seu olhar agora arde de determinação.

RUBINHO - (murmura para si mesmo) Ela sabia de alguma coisa. Tava mais perto do que qualquer um de nós de alguma verdade.

PATRÍCIA - (encarando-o) Você acha que mataram ela por isso?

Rubinho fecha o notebook com cuidado, como quem sela um túmulo. Seus olhos encontram os dela. Há dor, mas também promessas.

RUBINHO - (sem piscar) Vou descobrir. Nem que seja a última coisa que eu faça.

Silêncio. Eles ficam ali, lado a lado, como dois sobreviventes de uma guerra ainda em curso.

CORTA PARA:

 

CENA 5. SÃO PAULO. EXT. ANOITECER

 

SONOPLASTIA – POEMA DOS OLHOS DA AMADA – CAETANO VELOSO

 

O céu de São Paulo desce em tons de azul profundo misturado a lilases e vermelhos que se dissolvem lentamente. A cidade pulsa no compasso de um coração ferido. A câmera desliza por sobre os prédios da Avenida Paulista, que se acendem aos poucos como se despertassem para uma vida paralela, noturna e cheia de segredos.

Carros avançam como lâminas de luz no asfalto molhado. Pedestres se confundem com sombras enquanto janelas acesas projetam fragmentos íntimos de vidas alheias. Uma senhora, sentada sozinha em um ponto de ônibus, observa o tempo com olhos cansados. Um casal discute dentro de um táxi preso no trânsito, os gestos exaltados silenciados pelo vidro fechado. Uma criança, no banco de trás de um carro, encosta a testa na janela e mira o céu, como se buscasse respostas que nem ela sabe formular.

Na esquina, uma travesti elegante como uma escultura viva traga um cigarro com a serenidade de quem já foi ferida demais para se apressar. Um grupo de jovens sai de um bar com gargalhadas altas que rasgam o silêncio do entorno. Um entregador passa veloz, a mochila pendendo nas costas, vencido pelo peso do dia.

A câmera se move com lentidão, atravessando essa tapeçaria humana até encontrar, isolado em meio às árvores iluminadas, um prédio de linhas modernas, imponentes e frias: o Hospital Albert Einstein. Os refletores baixos no jardim desenham sombras geométricas nas paredes brancas. O letreiro em vidro retroiluminado brilha como um anúncio solene de que ali se tratam não apenas corpos, mas tragédias em carne viva.

A imagem sobe com elegância pela fachada de vidro. Lá em cima, na janela do último andar, uma figura solitária observa a cidade. Não conseguimos ver o rosto, apenas a silhueta recortada contra a penumbra. O vulto permanece imóvel, como se carregasse um luto invisível, ou como se esperasse por algo que talvez nunca volte.

A música continua em fade-out enquanto a câmera se afasta lentamente, deixando o hospital como uma ilha silenciosa no meio do caos urbano.

CORTE PARA:

 

CENA 6. HOSPITAL ALBERT EINSTEIN. QUARTO DE VIVI. INT. NOITE

O quarto está em meia-luz, a penumbra azulada das luzes hospitalares invade o ambiente. Vivi está deitada, com hematomas no rosto e braços enfaixados. Seus olhos, abertos, parecem distantes, presos em lembranças dolorosas.

A porta se abre. Clara entra com passos firmes, trajando sua autoridade como uma armadura. Ela observa Vivi, que a encara, ainda débil.

CLARA - (com voz suave, firme) Posso fazer algumas perguntas, Carolina?

VIVI - (frágil, voz rouca) Pode sim.

Clara senta-se ao lado da cama, olhos atentos, pronta para escutar.

CLARA - Por que foi até a estufa naquela noite?

VIVI = (respira fundo, luta para falar)Selma mandou. Disse que Lucinha estava lá.

Vivi engole a dor, lágrimas começam a cair.

CLARA
E o que viu exatamente quando chegou?

VIVI - (olhos fechados, lembrando) Vidros estilhaçados, sangue, Lucinha caída, sangrando pela jugular, um horror.

Clara mantém o olhar firme, esperando a resposta.

CLARA - Você acredita que Selma esteja por trás da morte de Lucinha?

VIVI - (dúbia, cheia de culpa) Não sei. Elas não se davam bem. Lucinha dizia que Selma escondia segredos queria destruir a minha vida. Mas eu não acreditei.

Vivi se vira para o lado, as lágrimas rolam silenciosas.

VIVI - (baixa, quase um sussurro) Agora é tarde demais.

Clara se levanta lentamente, sua voz firme é uma promessa.

CLARA - Vou descobrir a verdade, Carolina.

Clara sai. Vivi permanece, perdida na dor, encarando o teto.

CORTA PARA:

 

CENA 7. MANSÃO DOS MONTESINOS. SALA DE ESTAR. INT. NOITE

O silêncio é quase palpável dentro da mansão, um contraste inquietante com a agitação da cidade lá fora. A penumbra da noite entra pelas janelas amplas, tingindo os móveis clássicos de sombras profundas.

Laura avança com passos controlados, a elegância sombria em cada movimento. Seu rosto, iluminado ocasionalmente pela luz tênue dos lustres, revela um misto de frieza e satisfação contida. Os olhos são agudos, atentos a cada detalhe, vasculhando como uma predadora em seu território.

Sem pressa, ela desativa o alarme, o som mecânico se desfaz num silêncio mais tenso ainda. Sua respiração é contida, quase imperceptível.

No centro da sala, repousa uma bolsa de couro desgastado, jogada sem cerimônia sobre o sofá de veludo carmesim. O objeto parece quase um símbolo da desordem que se infiltra naquela casa imponente.

Laura se aproxima, os dedos deslizando sobre a superfície fria do couro antes de abrir a bolsa com delicadeza cruel. Retira um celular descartável, que brilha com a luz azulada da tela num quarto mergulhado em sombras.

Ela lê a mensagem, e a tensão no ar cresce como uma tempestade prestes a explodir. O brilho da tela ilumina seu sorriso fino, carregado de veneno e triunfo.

MENSAGEM - (voz em off, com sotaque venenoso de Laura) “Os cinquenta mil pelo ultrassom falso já estão na conta.”

Laura deixa escapar um riso baixo, cruel, quase um sussurro ameaçador.

LAURA - (sussurrando, cheia de escárnio) Vai ser um prazer ver você se afundar nessa lama.

Ela guarda o celular, levanta o olhar para as sombras da casa, como quem sabe que desenterrou uma arma fatal. A câmera se afasta lentamente, deixando Laura e a mansão mergulhadas num silêncio carregado de segredos e traição.

CORTA PARA:

 

CENA 8. HOSPITAL ALBERT EINSTEIN. QUARTO DE VIVI. INT. NOITE

 

SONOPLASTIA – AMOR, MEU GRANDE AMOR – ÂNGELA RO RO

 

O quarto está imerso numa penumbra quente, a luz tênue dos abajures desenha sombras suaves sobre as paredes. A música de Ângela Ro Ro — "Amor, Meu Grande Amor" — preenche o ambiente com uma melodia densa e carregada de emoção.

Vivi repousa na cama, ainda frágil, mas com os olhos brilhando de vida. A porta se abre lentamente e Daniel entra, hesitante, como se temesse a realidade que vai encontrar.

Ele se aproxima, a emoção o invade. Sem pensar, envolve Vivi num abraço apertado, quase desesperado.

DANIEL - (voz embargada, quase um sussurro) Eu tive tanto medo de te perder. Mesmo que a gente não tenha ficado juntos, saber que você está viva é o meu maior alívio.

O clima se adensa, o silêncio entre eles fala mais alto do que palavras. O desejo, contido por tanto tempo, transborda no olhar que trocam.

Eles se inclinam, prestes a se entregar ao beijo, quando a porta se abre abruptamente. Marco Aurélio entra, o rosto tenso, interrompendo a tensão quase palpável.

MARCO AURÉLIO - (com voz firme, quase cortante) O que está acontecendo aqui?

Vivi e Daniel se afastam, o momento suspenso no ar. A dúvida, o segredo, tudo paira entre eles, enquanto a câmera lentamente se afasta.

CORTA PARA:

FIM

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