A INTRUSA
CAPÍTULO 26
UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI
CENA 1. HOSPITAL ALBERT EINSTEIN. QUARTO DE VIVI. INT. DIA
SONOPLASTIA — “DO I WANNA KNOW?” – ARCTIC MONKEYS – INSTRUMENTAL
A câmera está fixa no reflexo no vidro do armário. Vemos Laura, de jaleco branco, cabelos tingidos de um ruivo intenso, o rosto maquiado com precisão cirúrgica. Ela já guardou a seringa de volta ao bolso interno. Está com as costas voltadas para Vivi, que desperta vagarosamente no leito hospitalar, seus braços ainda enfaixados, os olhos enevoados pela sedação.
VIVI - (voz fraca, arrastada, como se lutasse contra a anestesia) Onde (pausa) onde eu tô...?
Laura paralisa.
Um instante de pura tensão. Ela não se vira. Seu corpo inteiro enrijece, como se estivesse prestes a disparar ou desmaiar. O plano fecha no perfil de seu rosto, visível apenas pelo espelho: a mandíbula travada, os olhos arregalados pela surpresa. Ela não esperava por isso.
Por um segundo, nada se move — apenas o som ritmado do monitor cardíaco e a respiração errática de Vivi, que tenta focar a vista.
Laura baixa suavemente a cabeça, recompondo o controle da respiração. Seu tom de voz, quando finalmente fala, é doce, anestesiante, quase maternal. Uma performance de falsa segurança.
LAURA - (suave, hipnótica) Você está bem, meu amor. Está no hospital. Mas vai ficar tudo certo. (uma pausa breve) Volta a dormir, não precisa ter medo.
O olhar de Laura permanece no vazio. Ela não ousa virar o rosto.
Vivi murmura algo indistinto, e seu corpo afunda um pouco mais no colchão. A respiração desacelera. A sedação volta a dominar.
Laura respira fundo.
Ela caminha lentamente até a porta, sem olhar para trás. A câmera a acompanha de lado, revelando a tensão em sua postura. Ao girar a maçaneta, ela hesita. Leva uma das mãos ao rosto e sussurra para si mesma, amarga:
LAURA - (entre os dentes, quase inaudível) Mais um erro, Laura. Mais um...
Sai. A porta se fecha num estalo seco. A câmera permanece no quarto, mergulhado em silêncio.
No leito, Vivi dorme novamente. Mas seus dedos se contraem.
E por um instante — apenas um — seus olhos se entreabrem, discretamente.
CORTA PARA:
CENA 2. HOSPITAL ALBERT EINSTEIN. CORREDOR. INT. DIA
A porta do quarto se fecha com um estalo seco. Laura, ainda com o disfarce de enfermeira — jaleco engomado, touca branca escondendo o ruivo intenso, postura ereta demais para o anonimato — respira fundo. Por dentro, fervilha. O plano falhou. Mas por fora, veste a máscara de frieza que aprendeu a usar desde muito jovem. Os olhos escaneiam o corredor. Vazio.
Ela caminha. A pose controlada, quase balé. Mas os saltos baixos traem o peso da pressa contida.
CORTE DE ÂNGULO:
No fim do corredor, sentada casualmente num banco acolchoado, Lívia rola o feed do celular sem interesse, mascando chiclete como quem mastiga o tédio. Até que seus olhos se fixam na figura que se aproxima.
Ela franze a testa. Analisa. O jaleco. O andar. A silhueta. A boca escandalosamente bem desenhada. E então, como quem puxa um arquivo da gaveta do passado, sussurra:
LÍVIA - (para si, venenosa) Selma, enfermeira? Só se for da Rua Augusta, amor.
Laura passa por ela sem notar. Mas Lívia já se levantou. Segue com os olhos. O celular em punho agora não é distração: é arma. Ela anda até a beirada da esquina, sem ser vista, e espia Laura dobrar e sumir por outro corredor.
LÍVIA - (entredentes, sentindo o sangue ferver) Tem alguma coisa muito errada nessa história (pausa, um sorrisinho cínico se formando) E eu vou descobrir cada podre. Nem que eu precise internar metade dessa família.
A câmera sobe, captando a tensão entre a brancura asséptica do hospital e o veneno que escorre entre suas paredes silenciosas.
CORTA PARA:
CENA 3. HOSPITAL ALBERT EINSTEIN. SALA DE ESPERA. INT. DIA
O silêncio do hospital é rompido pelo som abafado de passos apressados e vozes contidas. A sala de espera é ampla, fria, com poltronas de couro bege e uma iluminação clínica que não perdoa olheiras nem ressentimentos. Espalhados pela sala, Daniel, Marco Aurélio, Valquíria, Carlos e Cecília parecem peças de um tabuleiro prestes a virar.
Valquíria está impecável em um tailleur preto Chanel, óculos escuros apoiados na cabeça e um leque imaginário de desprezo sempre à mão. Ela é puro sarcasmo, uma víbora elegante. Cruza as pernas com violência silenciosa e cospe sua primeira frase como quem joga ácido no chão:
VALQUÍRIA - (seca, altiva) Já passou da hora de alguém instalar uma placa com o nome da família aqui. "Godoy Bueno — tragédias, escândalos e imoralidade desde sempre". A gente frequenta mais esse hospital do que spa.
Daniel abaixa a cabeça. Cecília, firme, serena, mas com os olhos brilhando de tensão, encara Valquíria com aquela postura maternal sem ser fraca. Sua voz sai tranquila, mas carregada de veneno branco.
CECÍLIA - Se está tão incomodada, pode ir embora, Valquíria. Não será a primeira vez que se ausenta quando alguém precisa de apoio.
Valquíria solta uma risada curta, quase um estalo, e vira o rosto para Cecília com superioridade absoluta.
VALQUÍRIA -Querida, apoio eu dou — quando merecem. O que eu não suporto é ver meu filho misturado nessa zona emocional que vocês chamam de família. Primeiro a Carolina com aquele ar de mártir suburbana, agora a outra, a filha número dois que resolveu perpetuar o caos.
CECÍLIA - (olhar firme, sem alterar o tom) A Lívia não precisa da sua aprovação, Valquíria. E Daniel que arque com as consequências do que fez.
VALQUÍRIA - (sarcástica, impiedosa) Ah, sim. As consequências. Como ter que aturar a Lívia desfilando barriga no almoço de domingo? Que delícia. O Daniel não consegue manter as calças fechadas e eu é que fico com o prejuízo social.
Marco Aurélio, visivelmente esgotado, tenta intervir, embora saiba que é inútil.
MARCO AURÉLIO - Por favor, vamos parar com isso. A Carolina está viva por milagre e todos estamos abalados.
Valquíria lança um olhar gélido para ele.
VALQUÍRIA - Você sempre foi o diplomata da tragédia, Marco Aurélio. Consegue transformar um incêndio em reunião de condomínio. Mas comigo não funciona. Eu não finjo.
Carlos permanece em silêncio, observando como quem assiste a uma peça. Daniel levanta a cabeça, envergonhado, mas tenta se defender.
DANIEL - Eu assumo o que fiz. Não precisava expor assim.
VALQUÍRIA - (expulsando as palavras com nojo) Assume? Que maravilha. Agora só falta virar pai de Instagram e fazer post com roupinha combinando. Que fase.
Cecília se levanta. Não para gritar — mas para deixar claro que está inteira.
CECÍLIA - Você fala de vergonha como quem nunca a conheceu. Eu tenho orgulho das minhas filhas. Mesmo caídas, mesmo feridas. O que me envergonharia seria ter o coração no lugar errado. Como o seu.
Valquíria sorri, felina, sem pressa.
VALQUÍRIA - E eu teria vergonha de uma família que se reproduz como novela das oito e vive de crise como se fosse um roteiro. E pensar que o Daniel tinha chances de se casar com alguém decente...
Silêncio. A frase paira como uma sentença final. Cecília a encara com desprezo contido. A tensão é quase insuportável.
Fade lento no rosto de Valquíria — satisfeita com o estrago — e no de Cecília — que engole a dor como quem coleciona batalhas. Ninguém vence, mas ninguém recua.
CORTA PARA:
CENA 4. SÃO PAULO / RIO DE JANEIRO. EXT. DIA
SONOPLASTIA — PADAM PADAM – KYLIE MINOGUE
Sequência de imagens sofisticadas, sensuais e ligeiramente inquietantes. Um clipe visual que costura os dois universos da trama com um fio de tensão crescente. A música pulsa como um coração ansioso. O tempo parece correr, mas a beleza da superfície engana.
Closes de cafés caros sendo servidos. Telas de celulares vibrando com mensagens que não serão respondidas. Um close nos olhos de Carolina adormecida no hospital, depois um corte brusco para os dedos de Laura tirando a peruca ruiva no espelho de um banheiro público.
Corte rápido para um helicóptero sobrevoando a Marginal Pinheiros. O trânsito visto de cima parece um sistema nervoso à beira de um colapso.
Close nos saltos de Valquíria tocando o mármore frio do hospital enquanto ela ignora uma ligação da assistente. Daniel atravessa a rua quase sendo atropelado.
Um ônibus passa — e o reflexo no vidro revela o rosto de Lívia, tensa, olhando o celular com algo que acaba de descobrir. A batida da música acelera.
Agora, os cortes ficam mais longos. A câmera acompanha, em plano sequência, o carro de Madson entrando numa rua arborizada. A cidade parece suspensa. Um oásis de silêncio — mas o silêncio é suspeito.
A placa na entrada do prédio revela o destino:
CORA RESIDENCIAL SÊNIOR PREMIUM.
A música desacelera, em fade out. Tudo se torna estranho. Quase ritualístico. O portão se abre. O carro de Madson avança lentamente pela alameda interna, como um cortejo funerário disfarçado de visita familiar.
A câmera sobe num travelling para revelar toda a fachada do residencial — limpa, elegante, sem alma. A cena para no alto, como se dissesse: aqui dentro, tudo ainda vai acontecer.
CORTA PARA:
CENA 5. CORA RESIDENCIAL SÊNIOR PREMIUM. FACHADA. EXT. DIA
SONOPLASTIA — REQUIEM – LACRIMOSA DE MOZART
A câmera treme levemente, como se espiasse, cúmplice da tragédia. O céu está pesado, nuvens como véus de luto. A fachada do Cora Residencial Sênior Premium parece uma fortaleza branca e fria. Tudo é elegante, mas nada é acolhedor.
Madson desce do carro com passos firmes, quase indiferentes. Mas há algo em seus olhos — uma urgência contida, uma raiva que ferve sob a superfície. Ela ajeita os óculos escuros. Está ali para ver a avó. Para cumprir o papel de neta obediente. Tudo sob controle.
Até que a porta automática do saguão se abre e, como uma aparição, Rudolfe surge. De terno cinza claro, camisa branca, os cabelos ainda úmidos como se tivesse acabado de sair de um banho ou de um ritual. Ele anda devagar, sem perceber Madson. Mas ela o vê. E o mundo dela implode em silêncio.
A trilha sobe — violinos como facas cortando o ar.
Madson cambaleia. A câmera se aproxima de seu rosto em câmera lenta: o espanto, o pavor, o colapso interno. Um soluço preso na garganta. Ela tropeça no salto, segura-se num arbusto com flores artificiais. Respira ofegante. Treme. A imagem perde cor por instantes, como se o sangue fugisse da tela.
MADSON - (baixinho, para si mesma, quase sem ar) Será que ele descobriu? Será que ele sabe que eu estou viva?
Ela tenta caminhar para trás, como se quisesse desaparecer, evaporar, escapar do destino. Mas não há para onde ir. Tudo que é trágico já começou.
A câmera se descola da realidade. Gira em torno dela. Os sons se abafam, exceto a música, que agora ressoa como um grito ancestral.
Madson corre. Não é uma corrida rápida, atlética. É uma fuga desordenada, suja, digna de uma mulher que carrega um segredo tão grande quanto sua culpa. Os passos dela ecoam como tambores do juízo final.
A porta do prédio fecha lentamente atrás de Rudolfe, sem que ele a veja. Mas a tragédia já foi lançada. E o público, cúmplice, não poderá olhar para o outro lado.
CORTA PARA:
CENA 6. HOSPITAL ALBERT EINSTEIN. QUARTO DE VIVI. INT. DIA
Luz natural suave entra pelas frestas da cortina. A atmosfera é asséptica, mas há algo de pesado no ar — um silêncio denso, como se a verdade estivesse presa nas paredes.
Vivi, pálida, com os braços ainda enfaixados, desperta aos poucos. Seus olhos se abrem lentamente, ainda turvos pelo sedativo. Ela está fragilizada, mas há uma inquietação em sua expressão — como quem acaba de emergir de um pesadelo para descobrir que o mundo acordado é ainda pior.
Marco Aurélio está sentado ao lado da cama, preocupado, mas contido. Sua gravata já está afrouxada, o paletó, pendurado na cadeira. Ele segura a mão de Vivi com uma delicadeza desconcertante.
MARCO AURÉLIO - (voz baixa, cautelosa) A perícia confirmou. Não foi acidente. A estrutura da estufa foi manipulada. A polícia já trabalha com a hipótese de homicídio.
Vivi pisca, lentamente. A palavra reverbera nela como um trovão abafado.
VIVI - (voz fraca, confusa) Mas quem faria isso? Quem armaria uma cilada dessas? (pausa, os olhos marejam) Aquilo era pra mim, Marco. Não era pra Lucinha.
MARCO AURÉLIO - (alarmado) O quê?
VIVI - (fechando os olhos por um segundo, como se as peças começassem a se encaixar) Ela me pediu pra encontrar com ela. Estava desesperada. Dizia que sabia de tudo. Que eu corria perigo.
MARCO AURÉLIO - (séria preocupação) Quem pediu?
VIVI – Selma (um arrepio percorre sua espinha) Ela me mandou pra estufa. (engole em seco) Talvez ela soubesse que eu não sou Carolina. Talvez ela soubesse desde o começo.
MARCO AURÉLIO - (tenso, mas tentando manter o controle) Você está dizendo que essa mulher armou pra você? Que ela matou a verdadeira Carolina?
VIVI - (olha para o teto, perdida entre o pânico e a lucidez que retorna) E se for isso? E se tudo isso for parte de um plano maior? (pausa longa, depois um sussurro quase inaudível) E se eu for a próxima?
Um silêncio afiado. Marco Aurélio a observa, entre o medo e o dever. Ele aperta sua mão com mais força.
SONOPLASTIA — “DO I WANNA KNOW?” – ARCTIC MONKEYS – INSTRUMENTAL
A câmera foca no rosto de Vivi, suado, tenso. Seus olhos não piscam. A paranoia chegou para ficar.
CORTA PARA:
CENA 7. MANSÃO DOS GODOY BUENO. SALA DE ESTAR. INT. DIA
A porta da mansão se abre com um leve rangido. Valquíria entra, vestida com elegância fria, seu olhar calcula tudo ao redor. No sofá, Clara, a delegada, já a espera. Ambas se levantam e trocam um cumprimento contido, cheio de formalidade e subtexto.
CLARA - (direta, sem rodeios) Dona Valquíria, a morte da senhorita Lucinha está sendo tratada oficialmente como homicídio.
Valquíria mantém o olhar sereno, um sorriso leve de quem sabe muito mais do que diz.
VALQUÍRIA -(com ares de quem joga xadrez) E já tem algum suspeito, delegada?
CLARA - (ainda controlada) Não, senhora. Mas os funcionários relataram que a última pessoa a receber Lucinha na noite passada foi Selma Ledur.
Valquíria desvia o olhar por um momento, depois volta firme.
VALQUÍRIA - Selma não está em casa. Mas se quiser esperar, está à vontade.
No instante em que Valquíria termina, a porta se abre novamente. Surge Laura, sem disfarces, vestida com uma roupa sóbria, poderosa — muito longe da enfermeira ruiva. Seu olhar é calculado, frio.
Clara se levanta, com voz firme e incisiva.
CLARA -Selma Dumont. Preciso interrogá-la sobre o homicídio ocorrido nesta casa ontem.
Laura não se move, seu rosto impassível, mas a tensão no ambiente é palpável. Valquíria observa de longe, uma sombra de satisfação nos olhos.
CORTA PARA:
FIM
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