A INTRUSA - CAPÍTULO 05 - 29/08/2025

      


A INTRUSA

CAPÍTULO 05

UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI




CENA 1. PRÉDIO DE VIVI VENENO E LARI PACOTÃO. EXT. DIA


SONOPLASTIA – UMA NOITE E 1/2 – BENGOXI

 

A manhã desponta vibrante. O céu límpido contrasta com o asfalto cinza ainda úmido da noite anterior. Em frente ao prédio modesto de classe média, Vivi Veneno surge com a altivez de quem conhece o próprio valor. Veste uma calça de abrigo justa, cropet vermelho incendiário sob um casaco branco de pelúcia sintética, botas de cano alto escondidas sob a barra e saltos finos que ressoam como declarações no concreto. Um óculos escuro poderoso emoldura seu rosto impecável.

Lari Pacotão, descalça e de moletom manchado, segura a porta do prédio com ar de quem sabe que algo grande está por vir — e não é ela quem vai embarcar.

LARI - Vai mesmo, mana?

VIVI VENENO - (AJUSTANDO OS ÓCULOS) Primeira classe, amor. Congonhas direto pra Campo (T) Patrocínio da madame do escândalo.

LARI - Cuidado com essa gente, Vivi. Ricaço liso é que nem sabonete: se vacilar, escorrega e derruba.

VIVI - (RELAXA O OMBRO) Se eu cair, caio em cima. E se não voltar… procura meu nome nos trending topics, querida.

O táxi executivo encosta, reluzente. O motorista abre a porta. Vivi dá um beijo estalado na bochecha de Lari, puxa a mala com uma mão e segura o celular com a outra como quem já nasceu com um staff.

LARI - (GRITA, DIVERTIDA) Se ficar milionária, não esquece das quebradas!

VIVI - (SOBE NO CARRO, SEM OLHAR) Se ficar milionária, eu volto de helicóptero.

O carro parte. A câmera acompanha pelo reflexo do vidro o contorno do rosto de Vivi, serena, quase desafiadora. O casaco branco balança ao vento da janela entreaberta. A cidade a engole, mas ela permanece soberana.

CORTA PARA:

 

CENA 2 – AEROPORTO SALGADO FILHO. SALA DE EMBARQUES. INT. DIA


SONOPLASTIA – TEARDROP - MASSIVE ATTACK

 

O hall de embarque pulsa com o som abafado das rodinhas de malas, anúncios no sistema e conversas ansiosas. A luz branca e fria dos painéis contrasta com a presença de Laura, que carrega seu novo visual com a confiança de quem decidiu renascer. Os fios loiros curtos emolduram o rosto com precisão calculada, o sobretudo bege, aberto, revela um look urbano e sofisticado.

Ela entrega o passaporte no balcão com naturalidade, mas sua expressão se altera quando a atendente consulta o sistema.

ATENDENTE - (SIMPÁTICA) Senhora Laura Valença? Houve uma alteração no seu voo. Teremos uma breve escala em Campos do Jordão antes da chegada em São Paulo.

LAURA - (SEM ESCONDER A SURPRESA) Campos do Jordão? Isso não estava no meu itinerário. (PAUSA, INTRIGADA) Desde quando se faz escala em cidade serrana?

A atendente sorri de forma neutra, digitando algo no sistema.

ATENDENTE - Foi uma alteração de logística da companhia, senhora. Um trecho foi remanejado por conta de ajustes na malha aérea.

Laura assente devagar, mas o olhar revela outra coisa — um desconforto sutil, quase uma desconfiança. Ela recolhe seu cartão de embarque, mas não tira os olhos da tela por trás do balcão, como se tentasse decifrar algo oculto.

LAURA - (BAIXO, PARA SI MESMA) Que conveniente...

A câmera a acompanha em travelling enquanto ela se afasta em direção ao portão. A mala desliza ao seu lado com elegância. O som ambiente se dissipa, e o instrumental ganha espaço, acentuando a sensação de que esse destino fora do roteiro pode ser, na verdade, o início de algo planejado — e perigoso.

CORTA PARA:

 

CENA 3. CAMPOS DO JORDÃO. MANSÃO DOS GODOY BUENO. HALL DE ENTRADA. INT. DIA


SONOPLASTIA – LES FILLES DÉSIR - VENDREDI SUR MER

 

A névoa espessa cobre parcialmente o topo do morro onde se ergue a mansão dos Godoy Bueno — uma construção de linhas imponentes, pedra escura e janelas austeras, lembrando cenários de um clássico filme noir. Do lado de fora, apenas o barulho dos pinheiros agitados pelo vento. A atmosfera é gélida, não apenas pelo clima, mas pelo ar de silêncio e decadência que envolve o lugar.

Carolina desce do carro com passos rápidos. Veste um sobretudo azul-marinho bem cortado, óculos escuros e luvas finas. Ao tirar os óculos, seus olhos revelam cansaço e apreensão. Ela encara a fachada da casa por alguns segundos antes de seguir.

Ao entrar no hall de entrada, o som das botas de salto ecoa sobre o chão de madeira encerada. O ambiente interno é de luxo contido e opressivo: móveis clássicos, tapeçarias antigas, cortinas pesadas. A luz natural é filtrada por vitrais escuros, e o aroma no ar mistura madeira envelhecida com jasmim seco.

Ela para no centro do ambiente, respira fundo e retira as luvas lentamente, como quem se prepara para uma batalha silenciosa. Seus olhos varrem o espaço com atenção — está sozinha, mas sente que está sendo observada.

CAROLINA - (BAIXO, PARA SI MESMA) É aqui que os monstros se escondem...

Ela caminha lentamente até o centro do hall, onde repousa uma escultura de mármore de uma deusa decapitada. Passa a mão pela base da escultura com leveza, como quem busca um sinal, uma resposta. Um leve rangido vem do andar de cima. Carolina ergue o olhar.

CORTA PARA:

 

 

CENA 4. MANSÃO DOS MONTESINO. SALA DE JANTAR. INT. DIA

A sala de jantar exala elegância discreta: mesa de madeira nobre, prataria, arranjos florais brancos. Cecília, serena, postura clássica, toma um café enquanto lê o jornal. Lívia entra com passos firmes e decididos, vestindo um trench coat escuro, óculos de sol caros e uma bolsa que impõe respeito.

CECÍLIA - (TIRANDO OS ÓCULOS PARA OBSERVÁ-LA) Vai sair de novo? Você não para um segundo.

LÍVIA - (TIRANDO OS ÓCULOS, COM FRIEZA ELEGANTE) Vou a Campos do Jordão. Visitar a sua filha prodígio.

CECÍLIA - (FECHA O JORNAL DEVAGAR) A sua irmã, Lívia. Carolina é sua irmã.

LÍVIA - (SORRI COM IRONIA VENENOSA) Ah, claro. A irmã perfeita. A Carolina de alma pura, a menina de ouro, a que nunca erra — só sofre. A mártir.

CECÍLIA - (SEM PERDER A ELEGÂNCIA, MAS FIRME) Lívia, essa amargura está te consumindo. Isso que você sente não é justiça. É dor mal resolvida.

LÍVIA - (SENTA-SE COM POSTURA IMPECÁVEL) É clareza, mamãe. Clareza de quem sempre foi sombra. Sempre a filha “forte”, a “intensa”, a “difícil”. Enquanto a Carolina chorava, eu era obrigada a sorrir. Ela tropeçava, vocês corriam. Eu caía, vocês diziam: levanta.

CECÍLIA - (MAIS SUAVE, QUASE TRISTE) Não é verdade, Lívia. Você sempre foi amada do seu jeito…

LÍVIA - (INTERROMPE COM ACIDEZ) Do meu jeito? Amor medido é migalha, mamãe. Eu cresci ouvindo o nome dela como referência. E agora? Agora ela suja o nome da família, e ainda assim vocês a protegem como se fosse de cristal.

CECÍLIA - (SE LEVANTA, FIRME, COM DOR NO OLHAR) Porque ela está ferida, Lívia. E você… está perdida. Campos do Jordão não é uma visita. É uma armadilha.

LÍVIA - (LEVANTA-SE COM UM SORRISO GLACIAL) Que ótimo. Então eu vou levar queijo e armadura. Porque dessa vez, mãe… eu vou tirar a máscara da Carolina. E vou provar que a filha errada… era a certa o tempo todo.

Lívia sai sem olhar para trás. Cecília fica sozinha, com as mãos tremendo levemente. A câmera fecha em seu rosto, um misto de pressentimento e impotência.

CORTA PARA:

 

CENA 5. APARTAMENTO DE LUCINHA. SALA. INT. DIA


SONOPLASTIA – LOST CAUSE - BILLIE EILISH

 

A cena começa com Lucinha entrando pela porta da sala, ainda com o suor da academia, com um visual casual, mas cheio de atitude. Ela tira os tênis, joga a bolsa sobre o sofá e se aproxima da mesa de café, onde seu celular está vibrando. Quando ela vê o nome do remetente, um sorriso sarcástico se forma em seus lábios.

Ela pega o celular com a graça de quem sabe que algo está prestes a ser revelado, e ao abrir a foto, o sorriso desaparece instantaneamente. Na imagem, seu namorado e Carolina aparecem sorrindo juntos, em um momento aparentemente inofensivo, mas para Lucinha, é como um estalo de raiva.

LUCINHA - (SORRINDO COM DESDÉM, FALANDO SOZINHA) Ah, é? Então é assim, né? Que bonitinhos…

Ela joga o celular sobre a mesa, a fúria tomando conta dela. O olhar dela transita entre o celular e a janela, onde ela observa a cidade lá fora com uma expressão de ódio disfarçado de indiferença.

LUCINHA - (DANDO UMA RISADA AMARGA, COMO SE ESTIVESSE CONVERSANDO COM ALGUÉM) Carolina, sua filha da… Não vou deixar barato. Não vou deixar barato!

Lucinha pega sua bolsa, quase jogando tudo que encontra pela casa de volta na bolsa. A tensão em seu corpo é palpável, ela não consegue mais esconder sua raiva, e a expressão em seu rosto é de quem já tem o plano em mente.

LUCINHA - (FALANDO DE FORMA VENENOSA) Agora você vai ver quem é que manda aqui, sua sem noção. Quem pensa que pode mexer com o que é meu (PAUSA) Ah, vai ter resposta.

Ela pega uma jaqueta de couro elegante, se arruma rapidamente e caminha até a porta, agora com um semblante decidido e ameaçador. Ao se virar, joga uma última olhada para a sala, como se estivesse deixando para trás uma vida de tranquilidade e entrando em uma guerra pessoal contra Carolina.

LUCINHA - (VOZ MAIS CALMA, MAS COM UM TOQUE DE VENENO) E depois, quando você ver que eu cheguei, vai entender (RI) Que não tem graça brincar com fogo.

Lucinha sai pela porta, a câmera a segue, focando na mão dela que aperta o botão do elevador, demonstrando a tensão crescente em seu corpo.

CORTA PARA:

 

CENA 6. TEATRO MUNICIPAL. INT. DIA

 


SONOPLASTIA – SWAN LAKE, OP. 20, ACT III, NO. 18, SCENE: ALLEGRO - ALLEGRO GIUSTO – ORQUESTRA

 

A cena se inicia com a ressonância da música clássica ecoando pelo teatro. As cordas da orquestra são intensas, marcando um ritmo veloz e imponente, enquanto os passos firmes de Madson como o Cisne Negro ressoam no palco. A atmosfera é carregada, sombria e ao mesmo tempo fascinante. O brilho das luzes do palco ilumina seu corpo escultural, esculpido pela dança, com uma sensualidade quase hipnotizante, que seduz a plateia. Seus movimentos são precisos e graciosos, cada pirueta um reflexo da delicadeza do cisne, enquanto a música cresce em intensidade, ecoando sua luta interna e o turbilhão de sentimentos que passa a vivenciar.

Madson, no auge de sua performance, executa um passo complexo, cheio de força e controle, como se estivesse em plena batalha interna, lutando contra sua própria natureza e as emoções que surgem de sua transformação. A intensidade da música parece dominar o ar, e ela se entrega à coreografia, completamente absorvida na arte e na música, como se o mundo ao seu redor deixasse de existir por alguns segundos. O cisne negro que ela interpreta é uma mulher de desejos reprimidos, enfrentando sua dualidade, a luz e a escuridão dentro de si mesma.

Depois de um ato exaustivo, Madson recua para o lado do palco, onde o som da orquestra diminui, dando lugar ao ritmo mais suave, enquanto ela se permite uma pausa, respirando fundo e olhando para a plateia com uma expressão contemplativa. A música agora se suaviza, com o som das cordas sendo mais suaves e introspectivos, refletindo o momento de introspecção de Madson, um espaço onde ela reflete sobre sua jornada como o cisne negro, os limites da sua própria personalidade, e as provocações que a vida lhe impôs.

O bailarino que estava à distância se aproxima de Madson enquanto ela ainda está descansando, o seu olhar curioso e encantado observando a intensidade dela durante a performance. Ele se aproxima com uma confiança crescente, sorrindo de forma provocativa, enquanto Madson, ainda com a respiração ofegante e o corpo agitado pela dança, tenta esconder a surpresa.

BAILARINO - (SORRINDO COM CHARME, FALANDO EM TOM BAIXO) A performance estava (RESPIRA)hipnotizante. Não é à toa que todos os olhos estão em você.

Madson, embora lisonjeada, rapidamente desvia o olhar, sentindo um desconforto súbito. Seu rosto fica corado, as palavras que ele diz a deixam em um dilema emocional: o flerte a fascina, mas ela sabe o quanto isso pode ser perigoso.

De longe, Rudolfe, observando de perto, sente um impulso de ciúmes e irritação, claramente incomodado com a interação. Seus olhos seguem Madson com uma intensidade sombria, e a tensão no ambiente aumenta, como se ele fosse uma sombra pairando sobre ela.

MADSON -(RAPIDAMENTE SE LEVANTANDO, COM A VOZ FIRME, TENTANDO SE AFASTAR DO FLERTE) Preciso de um momento sozinha, obrigada.

Ela se afasta rapidamente, quase fugindo da situação, e começa a caminhar apressadamente em direção ao camarim. O ritmo da música no fundo fica mais acelerado, refletindo sua sensação de urgência e desconforto, até que, finalmente, ela alcança o camarim e fecha a porta, ainda sentindo o peso do olhar de Rudolfe.

A câmera se aproxima de Rudolfe, que permanece no fundo, observando a cena, com um olhar enigmático, seu rosto tomado pela insatisfação. Ele vê Madson se afastando e a música, que até então era suave, volta a crescer, crescendo na tensão, sugerindo que algo está prestes a acontecer entre os dois.

CORTA PARA:

 

CENA 7. TEATRO MUNICIPAL. CAMARIM. INT. DIA

 

A tensão é palpável no camarim, onde as luzes de maquiagem são intensas e o ar está carregado com a sensação de confronto iminente. O som da orquestra ainda reverbera, mas é abafado pela presença de Rudolfe, que entra com um passo firme, os olhos cheios de fúria.

Ele não diz uma palavra quando a porta se fecha atrás dele. A raiva transborda de seu corpo, e Madson, já de costas para ele, sente o impacto de sua chegada. Ela se vira lentamente, ainda tentando esconder o nervosismo, mas sabe o que vem a seguir.

RUDOLFE - (VOZ BAIXA, CHEIA DE VENENO) Você acha que pode brincar com os meus sentimentos? Que pode fazer o que quiser e ninguém vai perceber?

Madson, tentando manter a calma, respira fundo, mas seus olhos refletem a inquietação. Ela não quer ceder, mas sabe que o momento se aproxima, que a tensão entre eles atingiu seu limite.

RUDOLFE - (CAMINHANDO EM DIREÇÃO A ELA, OS PUNHOS CERRADOS) Eu te avisei, Madson. Eu te avisei que não ia ficar calado vendo você brincar com outros. Você acha que sou cego? Que não percebo o que está acontecendo?

A presença de Rudolfe é avassaladora. Ele a olha com desprezo, e ela tenta recuar, mas ele já está muito perto.

RUDOLFE - (LEVANDO A MÃO ATÉ O PEITO DELA COM FORÇA, EMPURRANDO-A CONTRA A PAREDE) Você acha que eu não sou capaz de fazer você entender quem manda aqui?

Antes que Madson possa reagir, ele a golpeia com um soco no estômago. O impacto é violento, mas o mais devastador é o silêncio que segue. Não há marcas visíveis, mas a dor emocional que ela sente é quase insuportável. Madson se curva, tentando conter as lágrimas, mas a humilhação e a dor mental a atingem com força.

RUDOLFE - (SUSSURRANDO, COM UM SORRISO FRIO) Não se esqueça, Madson. Eu sou o único que pode te fazer feliz. Não me faça repetir isso.

Madson, com o rosto pálido e os olhos marejados, luta para respirar, sentindo o impacto emocional mais do que físico. Ela sente a pressão de sua mente quebrando, a sensação de estar completamente sozinha e sem saída.

MADSON - (GEMENDO, QUASE SEM VOZ) Eu (PERDIDA) preciso de um tempo. Preciso de um respiro.

RUDOLFE - (IRÔNICO, COM A VOZ MAIS BAIXA E AMEAÇADORA)
Vai aonde? Você vai onde sempre vai quando não consegue lidar com as consequências de suas ações? Vai correr para os braços de sua amiga, como sempre faz?

Madson olha para ele, a raiva e o desespero agora misturados em seu olhar. Ela não responde, apenas se afasta dele, rastejando para pegar sua bolsa.

RUDOLFE - (SORRINDO CRUELMENTE) Fique longe de mim, Madson. E não me faça encontrar você novamente, a menos que queira ver o quão fundo posso ir.

Ela não diz uma palavra, mas, ao sair do camarim, uma sensação de derrota a consome. Madson respira fundo, com a mente turvada pela dor, e toma a decisão de fugir daquele pesadelo.

A câmera a segue, enquanto ela sai do camarim, a música da orquestra voltando lentamente a tocar, agora mais suave, como se simbolizasse o fim de uma parte de sua vida. Ela decide que precisa de um abrigo, um lugar onde possa encontrar um pouco de paz, e então pega o celular, decidida a ir até Campos do Jordão.

CORTA PARA:

 

CENA 8. CAMPOS DO JORDÃO. ANOITECER. EXT.


SONOPLASTIA - NOCTURNES – CHOPIN

 

O céu de Campos do Jordão começa a escurecer lentamente, tingido de tons de laranja e roxo, enquanto o sol se despede por completo. As ruas da cidade, normalmente vibrantes e cheias de turistas, agora estão vazias, dominadas por uma quietude incomum. O ar, gelado e pesado, carrega uma sensação de antecipação, como se a cidade estivesse aguardando algo.

A luz suave da tarde dá lugar à escuridão crescente, projetando sombras longas e distorcidas sobre os casarões coloniais que pontuam a paisagem. As árvores se erguem como silhuetas escuras contra o céu, seus galhos se movendo levemente com o vento frio que começa a soprar. O som das folhas secas sendo arrastadas pela brisa é o único som que quebra o silêncio.

Os faróis dos poucos carros que passam brilham intensamente, cortando a escuridão, mas logo desaparecem, deixando a cidade novamente em sua quietude. As fachadas das lojas e das casas, com suas luzes fracas, parecem mais distantes agora, como se o tempo tivesse parado.

Ao fundo, as montanhas que cercam a cidade ficam envoltas em neblina, esboçando uma paisagem sombria e misteriosa. O ar de isolamento é palpável, e o som distante de uma guitarra ou uma voz ao fundo é abafado pela imensidão do silêncio noturno.

O piano de Chopin vai suavizando, como se refletisse a serenidade e o mistério que tomam conta da cidade. O vento que agita levemente as copas das árvores e o som distante das pedras rolando na calçada criam uma atmosfera quase onírica, mas também cheia de um certo peso, como se algo estivesse prestes a acontecer.

O horizonte de Campos do Jordão está agora completamente escuro, com a cidade se apagando nas sombras. Uma única luz bruxuleante de um farol distante corta a escuridão, sinalizando que, apesar da calma, a tensão ainda está no ar, esperando para se revelar.

CORTA PARA:

 

CENA 9. CAMPOS DO JORDÃO. AEROPORTO. SAGUÃO. INT. NOITE


SONOPLASTIA – LES FILLES DÉSIR - VENDREDI SUR MER

 

O saguão do pequeno aeroporto de Campos do Jordão está silencioso, apenas o som ocasional de um alto-falante ao fundo anuncia chegadas e partidas. A iluminação fria e clínica do ambiente contrasta com o tom quente das paredes de madeira, criando uma atmosfera suspensa entre o conforto e a inquietude.

Selma está sentada próxima à cafeteria, de casaco cinza e luvas de couro. Seus olhos, fixos e intensos, vagam pelo saguão até pararem subitamente em uma figura familiar que acaba de passar pelo portão principal: Vivi Veneno.

O mundo ao redor de Selma parece parar.

Ela pisca várias vezes, incrédula. Senta-se mais ereta. O rosto de Vivi, parcialmente coberto por óculos escuros, um lenço de seda no cabelo e um sobretudo branco, acende uma memória antiga. Selma sussurra, para si mesma, com voz rouca.

SELMA - (SUSSURRANDO) Carolina...

Vivi caminha em direção ao café, alheia. Selma se levanta devagar, como um animal farejando sua presa. O olhar dela brilha de obsessão, mas sua expressão é contida. Ela desliza pelo saguão em passos calculados, mantendo uma distância exata — próxima o suficiente para vigiar, longe o suficiente para não ser notada.

A câmera acompanha o jogo de gato e rato em cortes secos e elegantes: Selma atrás de uma coluna. Depois, observando do reflexo de uma vitrine. Em seguida, parada diante de uma máquina de revistas, folheando uma capa sem ler nada. Seus olhos nunca deixam Vivi.

Vivi pede um café. Selma se aproxima sorrateira, como se aquele aeroporto fosse um palco e ela estivesse no centro da sua própria peça. Seus pensamentos são labirínticos, e sua expressão transita entre o êxtase e o delírio.

A música sobe levemente, tensa, dissonante.

Enquanto Vivi espera o pedido, o celular dela vibra. Ela sorri discretamente ao ver a mensagem. E naquele breve instante de despreocupação, Selma avança dois passos, quase próxima demais.

Vivi, desconfiada, vira-se para olhar em volta. Selma finge mexer na bolsa, natural. Os olhares não se cruzam — mas a tensão é palpável.

A cena termina com Selma encostada contra a parede, o olhar cravado em Vivi como se estivesse diante de um espectro.

Close no rosto de Selma. Ela murmura, num misto de certeza e loucura contida.

SELMA - (baixo, com ironia sutil) Engraçado (RI) o destino tem um gosto refinado pra vingança. Nem precisei bater na sua porta — ele escancarou pra mim.

CORTA PARA:

 

CENA 10. MANSÃO DOS GODOY BUENO. SALA. INT. NOITE

 

A mansão repousa em silêncio, envolta por uma penumbra que parece natural à sua arquitetura antiga. As janelas amplas, emolduradas por cortinas pesadas, deixam escapar apenas o reflexo pálido da lua, que dança nos vidros como uma lembrança de algo que já passou.

A escada de madeira range muito levemente sob o peso dos passos de Carolina, que desce com lentidão, como se cada degrau a arrastasse para algo inevitável. Ela veste um robe de cetim creme, que se move suavemente a cada passo. Está descalça, e o frio do chão parece não incomodá-la. O rosto está tenso, os olhos inquietos, mas sua expressão é de alguém que já decidiu algo – ou aceitou.

A sala está quase às escuras. A luz bruxuleante de uma luminária sobre o aparador projeta sombras longas nas paredes. Há uma figura sentada na poltrona, de costas para a escada, perfeitamente imóvel. Não há som, não há música. Apenas o leve zumbido do vento lá fora, filtrado pelas frestas da madeira.

Carolina para ao final da escada. O tempo parece suspenso. A figura na poltrona permanece inerte. Um leve tremor percorre os ombros dela, mas ela caminha. A câmera a observa de longe, sem intervir. Ela cruza o tapete persa e para a poucos passos da figura.

Seu olhar é fixo, inquisitivo. Os lábios se entreabrem como se ela fosse dizer algo, mas nada vem. A boca se fecha lentamente. Um lampejo de reconhecimento atravessa seu rosto. Então ela sorri. Um sorriso tênue, triste, quase sarcástico. Um instante depois, ela desvia os olhos, como se já soubesse o fim daquela cena antes mesmo que acontecesse.

A figura se levanta. O movimento é calmo, estudado. Continua de costas. Carolina apenas o observa, sem se mover. A atmosfera se adensa. A luz da luminária parece vacilar. O vento lá fora sopra um pouco mais forte, e a porta entreaberta range num aviso mudo.

A câmera permanece fixa, à altura do ombro de Carolina, como se não tivesse permissão para se aproximar mais. Nada é dito. Nenhuma palavra, nenhum som. Só o corpo dela, tenso, e aquele outro corpo, agora de pé, parado diante dela, ainda sem se revelar.

Carolina dá um pequeno passo à frente. Seus olhos estão marejados, mas ela não chora. Seu queixo ergue-se com dignidade. O silêncio se torna espesso, quase opressor.

Então, a luz da luminária se apaga. Subitamente. A escuridão toma a sala, engolindo as formas, os contornos, os rostos.

O que se ouve — e apenas se ouve — é o som abafado de um objeto leve tombando ao chão. Um vidro? Uma peça de louça? Nada se vê.

Seguem-se segundos de silêncio absoluto.

A câmera, ainda na penumbra, se move lentamente para trás, recuando pelo corredor escuro, deixando a sala aos poucos, como se fosse uma testemunha recuando por respeito — ou medo.

A mansão permanece de pé. Solene. Silenciosa. Como se nada tivesse acontecido.

CORTA PARA:

 

CENA 11.  CAMPOS DO JORDÃO. TÁXI. INT. NOITE


SON SONOPLASTIA – UMA NOITE E 1/2 - BENGOXI

 

A música pulsa baixinho, como se viesse de dentro da alma. No banco de trás do táxi, Vivi Veneno observa pela janela a cidade que se revela aos poucos — chalés elegantes, vitrines fechadas, postes de luz que iluminam mais a neblina do que as ruas.

Ela está impecável, mesmo no frio: casaco branco com pele sintética, botas altas por dentro da calça, e um brilho nos olhos que mistura medo e deboche. Mastiga um chiclete vagarosamente, como se marcasse tempo para algo que ela ainda não decidiu se vai enfrentar ou fugir.

VIVI - (SUSSURRANDO PRA SI) Ai, Campos do Terror, né mana? Só falta a Elvira sair de trás de um pinheiro com um machado na mão (PAUSA) Mas vamos, né? O close é certo, o babado é real e a bicha não foge do corre.

O táxi segue subindo a ladeira sinuosa, em silêncio. Do rádio, Bengoxi embala com melancolia e sensualidade. O motorista, discreto, aponta com o queixo:

MOTORISTA — A mansão fica ali no alto. A senhora quer que eu entre pelo portão?

VIVI - (AINDA OLHANDO PELA JANELA) Não, meu rei. Aqui tá bafo demais. Me deixa na esquina que o resto é passarela.

O carro para. A porta se abre com um rangido abafado. Vivi desce e encara o cenário: o portão da Mansão dos Godoy Bueno se destaca lá no alto, envolto em névoa, cercado por árvores altas como sentinelas.

O frio aperta. Vivi fecha o casaco até o pescoço e franze os olhos.

VIVI - (OLHANDO O CAMINHO À FRENTE) Se tiver espírito, que se manifeste agora(RI) Porque eu tô com os meus todos em dia. E se der ruim, eu volto girando igual Bey no Super Bowl.

Ela respira fundo. Dá um beijo no colar que usa no pescoço.

VIVI - (PRA SI, MAIS SÉRIO) Bora, Carolina (RESPIRA) Se tu me meteu nessa, tu vai me tirar. Nem que eu tenha que gritar até essa casa tremer.

Ela começa a andar.

A câmera acompanha Vivi caminhando pela calçada deserta, subindo em direção ao portão da mansão, envolta na neblina.

A sonoplastia de Bengoxi vai se esvaindo aos poucos, ficando apenas o som do vento frio e dos saltos de Vivi batendo ritmados no chão de pedra.

CORTA PARA:

 

CENA 12 – MANSÃO DOS GODOY BUENO. JARDIM DOS FUNDOS. EXT. NOITE

 

SONOPLASTIA – SIGH – UNLOVED

 

Tudo está escuro, salvo por uma tênue luz prateada que escapa da lua encoberta por nuvens esparsas. A câmera, subjetiva, caminha lentamente por entre a vegetação densa e bem podada dos jardins dos Godoy Bueno. O trajeto é longo, silencioso. Ao longe, vê-se a silhueta da mansão, majestosa e imperturbável, recortada contra o céu noturno.

Passa-se pela lateral da casa, pelo campo de tênis reluzente sob refletores adormecidos. A câmera desliza, sem pressa. A piscina, imóvel como um espelho escuro, reflete apenas fragmentos do céu.

Ao final do jardim, cerca de dois quilômetros da casa, uma clareira discreta se revela. No centro, um buraco profundo. Ao lado, uma pá encravada na terra úmida.

A câmera baixa devagar, mostrando mãos — somente as mãos — calçadas por luvas escuras, jogando terra com movimentos ritmados. Não há diálogo. Não há gemido. Apenas o som abafado da terra caindo, sendo lançada com precisão. Grãos batem no que está abaixo, com aquele ruído seco e cruel da natureza selando o destino de alguém.

A cada camada de terra, a câmera se aproxima, mas nunca revela o rosto da pessoa que enterra. Vemos as luvas se sujando. As mangas de um casaco, talvez um sobretudo. Movimentos firmes, sem hesitação. O olhar por trás da câmera é impessoal, quase técnico.

Por um instante, antes da última pá de terra, o corpo se inclina. O rosto de Carolina é visível — pálido, imóvel, os olhos semicerrados, envolta parcialmente por uma manta escura. O olhar é vago, como se tivesse sido interrompido no meio de um pensamento.

Mais uma pá de terra. E outra. O rosto começa a desaparecer. A câmera não desvia. Observa até o fim.

A terra cobre tudo. A pá repousa ao lado da cova, cravada em pé. A câmera dá um passo para trás. Depois outro.

A clareira volta ao silêncio total. Nem vento. Nem coruja. Nem insetos.

Nada.

CORTA PARA:

 

FIM

 

 

 

 

 

 

 

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