A INTRUSA - CAPÍTULO 03 - 27/8/2025

      


A INTRUSA

CAPÍTULO 03

UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI




CENA 1. APARTAMENTO DE LARI PACOTÃO E VIVI VENENO. SALA. INT. NOITE

 

A luz do abajur cria uma penumbra suave no apartamento. O som da cidade entra pela janela semiaberta. As duas estão no sofá, descalças, uma cerveja quente no centro da mesinha de centro improvisada com caixas decoradas. A TV está ligada num canal qualquer, no mudo.

Vivi dá um trago fundo no cigarro e solta a fumaça com um ar pensativo.

VIVI VENENO — Mana, às vezes eu lembro, lembro da Olivia me largando no portão daquela casa. Eu tinha cinco aninhos, cara. Ela só olhou pra trás e falou "fica aí com a tia que eu volto já". Nunca mais voltou.

LARI PACOTÃO — Ai, mana (T) que dor.

VIVI VENENO — Tu acredita que eu fiquei sentada ali até escurecer achando que ela ia voltar? Eu com uma mochilinha da Xuxa e um Danoninho na mão.

LARI PACOTÃO — As mãe da gente, né, bicha (T) umas fazem o parto, outras o estrago.

VIVI VENENO — A vida foi me descascando no grito. Aí tu cresce no grito também. E aí um dia olha no espelho e vê o quê? Uma mulher montada na coragem e na dor.

Lari baixa o olhar. Ela segura a cerveja entre as pernas, girando a lata com os dedos.

LARI PACOTÃO — Eu lembro quando fui tentar a cirurgia. A primeira consulta, o médico me olhou de cima a baixo como se eu fosse um pedido errado de aplicativo.

VIVI VENENO — Ai, mana...

LARI PACOTÃO — “Trans é luxo pra Europa, aqui vocês que lutem.” Foi isso que ele disse. Eu quis enfiar o salto no meio da testa dele.

VIVI VENENO — E a gente luta, né? Com unha mal feita, sem silicone, sem plano de saúde, sem documento, mas com uma dignidade que esses c* nem sabem o que é.

LARI PACOTÃO — Dignidade e glitter, meu amor. A gente se maquia com lágrima, mas sai na rua com o contorno bem feito.

VIVI VENENO — Se o mundo for nos engolir, vai ser com gloss e tudo!

As duas brindam com as latas de cerveja já quase vazias. O clima é de irmandade profunda, de quem já passou pelo inferno e aprendeu a rir dele. Elas se encostam uma na outra no sofá, exaustas e vivas.

LARI PACOTÃO — Mas e aí, mana (T) o que tu vai fazer com esse babado da Carolina? Tu vai procurar essa mulher?

VIVI VENENO - (OLHA PRO TETO, COMO QUEM PROCURA UMA RESPOSTA NAS RACHADURAS) Não sei, bicha (T)mas alguma coisa eu vou ter que fazer. Isso não é coincidência, não. Aquela cara ali (T) é a minha cara. Tem coisa aí.

LARI PACOTÃO — Tu acha que ela é parente tua?

VIVI VENENO — Se for, eu vou descobrir. Se não for, eu vou fazer ser. Sorte é o que eu nunca tive, mas dessa vez... vai ver é ela que me achou.

Lari olha pra Vivi com olhos arregalados, um misto de medo e admiração. Vivi, com um sorriso no canto da boca, acende outro cigarro.

VIVI VENENO — E se essa Carolina tiver algo meu (T) eu vou pegar de volta. Nem que seja no grito.

A fumaça sobe entre elas. A TV segue ligada no mudo. O som do isqueiro acende a próxima faísca da história.

CORTA PARA:

 

CENA 2. SÃO PAULO. AMANHECER. EXT.

 


SONOPLASTIA - CIRCO — VENERA VAI VENUS

 

A cidade de São Paulo desperta com sua pulsação inconfundível. A música cria um contraste entre a beleza melancólica da melodia e o concreto bruto da metrópole. Os primeiros raios de sol atravessam os prédios altos do centro, refletindo nos vidros espelhados como se a cidade, por um breve instante, fosse feita de ouro. A câmera passeia por ruas ainda meio desertas, com moradores de rua enrolados em cobertores finos e vendedores abrindo suas barracas de café.

A atmosfera é crua, poética e cinzenta. A vida começa aos poucos: um ônibus lotado atravessa a cena, motos cortam o trânsito como navalhas, executivos apressados cruzam as avenidas. O caos se organiza como uma sinfonia urbana. Vemos as ruas de Pinheiros, o Minhocão, a Avenida Paulista ainda acordando.

A sonoplastia vai crescendo sutilmente, acompanhando o fluxo de São Paulo até que a câmera chega ao Brooklin, já mais ensolarado, com suas ruas largas e prédios elegantes. 

CORTA PARA:

 

CENA 3. APARTAMENTO DE LUCINHA. QUARTO. INT. DIA

 


SONOPLASTIA - PRA SER SÓ MINHA MULHER — OTTO

 

A luz do amanhecer invade o quarto através das cortinas semiabertas. Os lençóis estão revoltos, os corpos entrelaçados. A câmera passeia por detalhes — um beijo molhado no ombro, mãos que deslizam pela pele, sorrisos entre gemidos, cortes secos e descontínuos, quase como flashes de memória ou desejo. Lucinha e Rubinho transam com intensidade. A diferença de idade entre os dois aparece nos gestos: ela é felina, experiente; ele é afoito, apaixonado, deslumbrado.

A música embala o clímax. A cena é quente, sensual, mas também cheia de uma intimidade que vai além da carne. Ao fim, os corpos repousam suados, ofegantes. Rubinho deita no peito de Lucinha, que acende um cigarro e solta a fumaça com um olhar perdido no teto.

RUBINHO - (COM UM SORRISO PREGUIÇOSO) Você me deixa tonto, sabia?

LUCINHA - (COM A VOZ ROUCA, CHEIA DE MISTÉRIO) É a idade, Rubinho (T) Teu coraçãozinho jovem não aguenta tanto feitiço.

RUBINHO - (RINDO, MORDENDO O LÁBIO) Feitiço nada. Isso aqui é bruxaria. Você não tem ideia do efeito que causa em mim. Sério.

LUCINHA - (VIRANDO O ROSTO LENTAMENTE PRA ELE, PROVOCANTE) Eu tenho sim. E adoro. Mas você ainda vai cansar disso aqui (T) Vai querer alguém da sua idade, que poste dancinha no Instagram e tome drink azul.

RUBINHO (CHEGANDO MAIS PERTO, FIRME) Não me compara com esses moleques. Eu gosto de você. Gosto do teu cheiro, da tua risada debochada, do jeito que você me desmonta só com um olhar.

LUCINHA - (MEIO CÍNICA, MEIO TOCADA) Cuidado, Rubinho (T) se continuar falando assim, eu começo a acreditar que ainda tem homem que presta nesse mundo.

RUBINHO - (A BEIJANDO COM CARINHO) Então acredita.

Lucinha sorri, mas é um sorriso que carrega histórias, feridas antigas. Ela apaga o cigarro no cinzeiro, se recosta nos travesseiros e puxa Rubinho de volta pra perto. Ele já vem com fome nos lábios, mas ela começa a rir.

LUCINHA – (ENTRE RISOS, FUGINDO DA BOCA DELE) Agora não, Rubinho (T) eu tenho que visitar a Carolina!

RUBINHO - (SUSSURRANDO, COLANDO OS LÁBIOS NO PESCOÇO DELA) Visita ela mais tarde...

Lucinha ri mais alto, mas já está entregue de novo. A câmera se afasta lentamente, deixando o quarto tomado pela luz do dia e pela sensação de um desejo que não cansa.

CORTA PARA:

 

CENA 4. MANSÃO DOS GODOY BUENO. SALA DE JANTAR. INT. DIA

 

A sala de jantar é ampla, com móveis clássicos em tons escuros, talheres de prata sobre a toalha de linho, lustres de cristal. Tudo impecável. O sol entra tímido pelas janelas com cortinas pesadas. Sentada à cabeceira da mesa, Carolina encara o vazio, apática, com uma xícara de chá intocada diante de si.

Marco Aurélio entra em cena, impecável em um terno cinza claro. Ele se aproxima e beija o rosto de Carolina com um gesto automático, quase ensaiado.

MARCO AURÉLIO - (TENTANDO SER GENTIL) A imprensa vai enjoar. Logo aparece outro escândalo pra ocupar a pauta.

CAROLINA - (SEM OLHAR PRA ELE, FRIA) Que ótimo. Eu mal dormi pensando na saúde emocional dos repórteres.

MARCO AURÉLIO - (SUSPIRO CONTIDO) Carolina...

Valquíria surge no vão da porta, imponente, vestida com um tailleur bege impecável. Ela segura uma taça de espumante — são dez da manhã.

VALQUÍRIA - (CRUZANDO A SALA COM ELEGÂNCIA E VENENO) Ela se importa, sim, Marco Aurélio. Só não admite. Carolina sempre teve esse talento pro fingimento.

CAROLINA - (OLHANDO PRA VALQUÍRIA COM DESPREZO) Bom dia pra você também, Valquíria.

VALQUÍRIA - (SORRINDO SARCÁSTICA) Bom dia é quando a família não está nas capas dos jornais. Mas parece que nem isso conseguimos mais.

MARCO AURÉLIO - (TENTANDO EVITAR A ESCALADA) Valquíria, por favor...

VALQUÍRIA - (IGNORA, SE SENTA, OLHA DIRETO PRA CAROLINA) Você nunca foi forte o suficiente, Carolina. E agora... expõe o nosso nome por fragilidade emocional. Desmorona ao vivo. Acha isso digno?

CAROLINA - (AINDA APÁTICA, MAS COM UMA PONTADA DE SARCASMO) O problema é que você acha digno varrer abuso pra debaixo do tapete, como se fosse poeira. Eu não sou você, Valquíria.

VALQUÍRIA - (COM FRIEZA ABSOLUTA) É, não é mesmo. Eu protejo a família. Você se protege.

Silêncio denso. Marco Aurélio permanece calado. Seu olhar tenta escapar da tensão. Ele ajeita os punhos da camisa, constrangido.

Nesse momento, a empregada aparece discretamente à porta.

EMPREGADA - Dona Valquíria, doutor Marco Aurélio... o chofer já os aguarda para o escritório.

VALQUÍRIA - (LEVANTANDO-SE COM CLASSE, TERMINANDO O ESPUMANTE DE UM GOLE SÓ) Pontualidade é a única coisa que ainda nos diferencia da plebe.

CAROLINA - (EM TOM ÁCIDO, AINDA SENTADA) Vocês podiam ir de vez. Levar o sobrenome junto.

VALQUÍRIA - (VIRANDO-SE PARA MARCO AURÉLIO, COMO SE CAROLINA NÃO EXISTISSE) Você vê? A moça virou poeta. Só falta virar mártir.

MARCO AURÉLIO - (SÓ ENTÃO SE LEVANTA, DESCONFORTÁVEL) Vamos, Valquíria.

Os dois saem, deixando Carolina sozinha na sala. Ela não os acompanha com os olhos, apenas estica o braço lentamente e finalmente toma um gole do chá, agora morno.

CORTA PARA:

 

CENA 5. TEATRO MUNICIPAL. PALCO. INT. DIA

 

SONOPLASTIA  SWAN LAKE, OP. 20: ACT IV: NO. 29 – ORQUESTRA SINFÔNICA

 

O palco está envolto em névoa artificial, banhado por luz azul pálida. O som de Tchaikovsky enche o espaço com uma melancolia quase sufocante. No centro, Madson, em sua delicadeza potente, interpreta Odette, o cisne branco. Seu corpo expressa dor e transcendência.

A coreografia final começa. Com braços fluidos como asas de cristal, Madson gira, salta, arqueia o corpo como se estivesse se desfazendo no ar. Os movimentos são exatos, mas profundamente emocionais.

Ela sobe lentamente as escadas do cenário, como quem ascende à morte. Para.

Olha para o público — agora vazio. Um eco de solidão.

Depois, fixa os olhos no intérprete do Príncipe, que permanece imóvel em posição de reverência, como um símbolo da traição.

E por fim, olha para Rudolfe, sentado na poltrona central da plateia, observando tudo com mãos unidas e testa franzida. Ele veste preto, uma echarpe vermelha no pescoço e uma prancheta no colo.

Com um suspiro invisível, Madson se joga.

O voo é impactante. O corpo corta o ar como se fosse feito de vidro. O silêncio súbito da orquestra intensifica a queda. O impacto contra o colchão escondido no cenário é abafado, mas forte. Um momento de suspensão dramática.

Madson se levanta do colchão, ofegante. O cabelo está solto, o suor brilha sob os refletores. Ela desce do cenário e caminha até Rudolfe. Ele levanta devagar, e antes mesmo que ela diga algo:

RUDOLFE - (COM SOTAQUE FRANCO-BRASILEIRO, FAZENDO ANOTAÇÕES) Emotionnel (T) parfait. Magnifique. Tu estavas (T) transcendante, ma chérie. Mas...

MADSON - (JÁ ANTECIPA, AINDA OFEGANTE) Sim, sim, o plié antes do pas. Eu senti.

RUDOLFE - (OLHANDO POR CIMA DOS ÓCULOS) Non, non, c’est pas juste le plié. Tu estás dois segundos atrasada no grand jeté. E o fouetté do segundo ato (T) madame, era uma hélice fora de ritmo. Une catastrophe technique.

MADSON - (SORRI, RESIGNADAVai me mandar de volta pro primeiro ano?

RUDOLFE - (SE APROXIMA, PEGANDO NO QUEIXO DELA COM CARINHO)
Talvez. (
PAUSA, INTENSO) Mas nunca vi ninguém morrer tão lindamente em cena.

MADSON - (BAIXO, COM AFETO CANSADO) Obrigada. Eu corrijo os detalhes. Mas agora (T) preciso ver a Carolina.

RUDOLFE - (RESMUNGA, ENTREGANDO A PRANCHETA A UM ASSISTENTE) Elle est ta obsession (T) Mas tudo bem. Vai. Só volta com mais precisão amanhã, oui?

MADSON - (SORRINDO, PEGANDO SUA BOLSA DE ENSAIO) Prometo cair com perfeição.

RUDOLFE - (ACENA COM A CABEÇA, VIRANDO-SE PARA OS TÉCNICOS) Luz. Recomeçamos da queda.

CORTA PARA:

 

CENA 7. MANSÃO DOS MONTESINO. JARDIM. EXT. DIA

 

O jardim exala serenidade. Flores abertas em tons suaves. A tarde avança com luz dourada filtrada pelas árvores. O som de passarinhos é interrompido pelo leve tilintar da porcelana. Cecília e Carlos estão sentados à sombra, uma mesa com chá e biscoitos entre eles. A empregada serve o chá com discrição e se retira.

CECÍLIA - (COM O OLHAR PERDIDO) Carolina me ligou ontem. A voz seca, econômica. Mas eu conheço minha filha. Ela tá pedindo socorro sem usar palavras. (pausa) Eu queria tanto poder ir até ela, sentar ao lado e dizer que eu ainda tô aqui.

CARLOS - (GENTILMENTE) Então vai. Liga, chama pra passar um tempo com a gente. A casa é grande, silenciosa. Ela pode respirar aqui.

CECÍLIA - (BALANÇA A CABEÇA, AMARGA) Ela nunca vai aceitar. Eu falhei com ela quando mais precisava de mim.

CARLOS(CONFUSO) Você fala da pandemia?

CECÍLIA - (COM A VOZ EMBARGADANão só. Teve uma noite, há cinco anos. Ela me ligou de Gramado. Chorando, transtornada. Tinha sido estuprada. Grávida. Assustada. (pausa longa) E eu (respira fundo, lágrimas contidas) Eu disse que não podia ir até lá, que não podia abandonar os pacientes. (silêncio pesado) Ela tinha quase trinta anos, sim. Mas era minha filha. E eu não fui. Não estive.

CARLOS - (baixando o olhar, pesado) Você achou que estava fazendo o certo.

CECÍLIA (COM RAIVA DE SI MESMA) Eu escolhi ser médica, Carlos. Não mãe. Eu me escondi atrás da ética, da vocação, da culpa que já era velha. Mas a verdade é que eu fugi. Fugi da dor dela. E agora ela virou pedra.

CARLOS - (SE APROXIMA, PEGA NA MÃO DELA COM CARINHO) Você ainda pode tentar quebrar essa pedra. Um gesto. Um olhar. Um pedido de perdão sincero.

CECÍLIA - (CHORA SILENCIOSAMENTE) Ela carregou aquele filho sozinha. Ninguém da família foi. Só ela e o apático Marco Aurélio.

CARLOS - (ABRAÇANDO-A COM TERNURA) Então vai. Reconstrói. Não por você. Por ela.

CECÍLIA - (ENCOSTANDO A CABEÇA NO OMBRO DELE)
Você acha que ainda dá tempo?

CARLOS - (SUSSURRA) Se ainda dói é porque ainda dá.

Ela segura sua mão com força, emocionada. Pela primeira vez em muito tempo, Cecília respira fundo como quem decide algo grande.

CORTA PARA:

 

CENA 8. MANSÃO DOS GODOY BUENO. SALA DE ESTAR. INT. DIA

 

A sala de estar ostenta luxo e tradição. Tapetes orientais, móveis de época, arranjos florais cuidadosamente dispostos. A luz entra pelas amplas janelas, filtrada por cortinas de linho.

Madson e Lucinha estão sentadas em poltronas distintas. Madson observa os detalhes com curiosidade contida; Lucinha, inquieta, alisa a barra da saia e troca olhares silenciosos com a amiga.

Ao fundo, o som dos passos descendo a escada ecoa sutilmente.

Carolina aparece no topo das escadas. Usa um vestido leve, de tons neutros. O cabelo preso em um coque desalinhado. Sua beleza é soturna, discreta. Ela desce com passos calmos. Ao chegar, sorri com a delicadeza de quem não quer incomodar.

CAROLINA - (SUAVE, QUASE UM SUSSURRO) Vocês vieram mesmo, obrigada. Eu sei que não é fácil.

MADSON - (SE LEVANTA, VAI ATÉ ELA E A ABRAÇA)
Amor, você pediria e eu viria até do outro lado do planeta.

LUCINHA - (SORRINDO, SE APROXIMA TAMBÉM) E olha que ela quase tava literalmente do outro lado. Ensaio no Municipal, lembra?

CAROLINA - (TENTANDO RIR, MAS SEUS OLHOS AINDA CARREGAM TRISTEZA) Eu juro que tô bem. Já vi e senti coisa pior. E sobrevivi.

MADSON - (ENCARANDO-A COM TERNURA) Mas não precisa passar por essa sozinha. A gente não veio por pena, Carol. A gente veio por amor.

LUCINHA (SEM PACIÊNCIA PRA MEIAS-PALAVRAS)
E também porque a gente sabe que essa gente aqui dessa casa te deixa pior. Desculpa, tá? Mas é verdade.

CAROLINA - (RESPIRA FUNDO, DEPOIS SORRI)
Não vou discutir. Não hoje. Hoje eu só quero agradecer e ouvir as fofocas de vocês.

MADSON - (BRINCANDOAh, então senta que lá vem desastre. Rudolfe surtou com meu salto, quase caí no fosso da orquestra.

LUCINHA - (RI) E eu descobri que tô apaixonada por um menino de vinte e cinco anos que ainda chama a mãe de "mainha".

CAROLINA -(SORRI PELA PRIMEIRA VEZ DE VERDADE) Vocês são tudo que eu precisava.

As três se sentam juntas. O ambiente ainda carrega certa tensão, mas a presença da amizade é um sopro de alívio no peso da mansão.

CORTA PARA:

 

CENA 9. RIO DE JANEIRO. ANOITECER. EXT.

 

SONOPLASTIA – ANA DE AMSTERDAM – CHICO BUARQUE

 

O céu se tinge de tons laranja e lilás enquanto o Rio mergulha na noite. O calçadão de Copacabana fervilha com os passos apressados, a prostituição à margem, vultos sedutores entre postes antigos e luzes de néon. Risos, olhares, negociações rápidas. Um carro desacelera. Um travesti acende um cigarro. A câmera sobe lentamente, revelando a fachada de um prédio antigo e modesto, encardido pelo tempo, com letreiro desbotado: Edifício Atlântico. A música continua, melancólica.

CORTA PARA:

 

CENA 10. APARTAMENTO DE LARI PACOTÃO E VIVI VENENO. SALA. INT. NOITE

 

Vivi Veneno está de calcinha e sutiã, apoiada no parapeito da janela, fumando com olhar perdido nas luzes de Copacabana. O ventilador gira lentamente no teto, e o som da rua invade o apartamento. Lari Pacotão sai do quarto colocando os brincos, já montada, e encara a amiga.

LARI PACOTÃO - Tá pronta, mona? Bora bater perna que hoje o babado vai render.

VIVI VENENO - (soltando a fumaça) Não vou hoje, bicha. Preciso dar um jeito de falar com a Carolina. Não dá mais pra segurar esse babado.

A porta se abre com um estrondo. Entra Nanny Who, poderosa, exuberante, vestida de oncinha, com um jeito todo escandaloso, misturando humor e autoridade em sua fala.

NANNY WHO - O que que tá pegando, minhas piranhas?! Vocês duas com cara de velório (T) Cadê o close certo da noite?

LARI PACOTÃO - (CHEGANDO PERTO DELA) Nanny, escuta essa novela. A Vivi achou uma mulher IGUALZINHA a ela na internet. Igual! A tal da Carolina Godoy Bueno (T) tu lembra do babado do gineco que se matou? É ela mesma, mona!

NANNY WHO - (MÃO NO PEITO) Não brinca com a minha cara botocada! Deixa eu ver essa marmota!

Vivi entrega o celular. Na tela, o Instagram de Carolina – fotos com Marco Aurélio em jantares chiques, momentos carinhosos com Aurora, viagens, sorrisos congelados. Nanny Who arregala os olhos.

VIVI VENENO - Essa baranga tem minha cara, Nanny. O mesmo ossinho da bochecha, o mesmo olho de gata, até o beiço é parecido! Tô toda cagada com isso.

Vivi abre o chat e digita. A câmera mostra Carolina sentada no escritório clássico, entre livros e móveis de época. O celular vibra. Ela vê a mensagem:

CAROLINA - (LENDO) "Oi, desculpa o susto, mas acho que a gente se parece demais."

Ela entra no perfil de Vivi. Observa as fotos. Franze a testa, curiosa. Escreve de volta:

CAROLINA - (DIGITANDO) Isso foi gerado por IA? Ou você existe mesmo?

A câmera volta para Vivi lendo.

VIVI VENENO - (LERDA, DEPOIS GARGALHA) Gerado por IA? Ai, mona eu existo mais que muito homem hétero por aí. Puta que pariu...

Ela digita de volta.

VIVI VENENO - (DIGITANDO) Se quiser eu provo.

A câmera mostra Carolina relutante. Suspira. Clica na chamada de vídeo.

CORTE RÁPIDO – TELA DO CELULAR Vivi atende. As duas se encaram pela primeira vez. É como se o tempo congelasse.

VIVI VENENO - (BOQUIABERTA) Puta (T) que (T) pariu.

NANNY WHO - (ATRÁS DELA, QUASE DESMAIANDO) Jesus, Maria, travesti!

LARI PACOTÃ - (OLHOS ARREGALADOS) É o espelho, mana (T) o espelho do babado!

As três se olham, enquanto a imagem de Carolina continua firme na tela. Ela também parece sem palavras.

CORTA PARA:

  

FIM

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário