A INTRUSA
CAPÍTULO 25
UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI
CENA 1. MANSÃO DOS GODOY BUENO. ESTUFA. INT. NOITE
SONOPLASTIA — DO I WANNA KNOW? – ARCTIC MONKEYS - INSTRUMENTAL
Vivi está dentro da estufa. A cena diante de seus olhos é grotesca e hipnótica: Lucinha jaz no chão de pedras, o corpo coberto por cortes profundos. Um dos cacos cravado na jugular pulsa lentamente com o sangue que já começa a secar. Os olhos, ainda abertos, miram um vazio eterno. Ao redor, o verde antes exuberante agora se curva ao horror.
A respiração de Vivi trava. O ar parece denso como fumaça. Ela tenta recuar, mas os joelhos fraquejam.
O som abafado da própria pulsação domina seus ouvidos. A estufa gira em câmera lenta. Cada vaso quebrado, cada planta rasgada, cada raio de luar filtrado pelo teto estilhaçado adquire um peso insuportável.
A dor começa no peito. O desespero sobe pela garganta como um enjoo súbito. O corpo inteiro dela entra em colapso emocional. Vivi tenta gritar, mas sua voz morre ainda no peito. O som que sai é um soluço rouco, animal.
Ela avança trôpega até a porta. Cada passo é uma batalha. O vestido roça nos cacos do chão, deixando fiapos presos no vidro quebrado. Sangue escorre de seu calcanhar ferido, marcando o chão como uma trilha frágil de vida.
Quando finalmente consegue alcançar a saída, ela empurra a porta com força. O vento da madrugada invade a estufa como um alívio gélido. Vivi cambaleia para fora, arfando. O mundo exterior a engole com sombras e silêncio.
No jardim iluminado por luzes discretas, ela avista Laura — a mulher que todos conhecem como Selma.
Laura está de pé como uma escultura viva. Impecável. O rosto impenetrável, frio como o mármore que cerca as colunas da mansão. O robe de seda preta ondula levemente com a brisa. Seus olhos não expressam surpresa — apenas contemplação.
Vivi se arrasta em direção a ela, como uma náufraga na areia, e tenta formar palavras:
VIVI - (voz sufocada) A-ajuda, P-por favor...
Os braços falham. O corpo desaba no chão, aos pés de Laura. A cabeça pende para o lado. Desmaia.
Laura observa a cena como quem assiste ao epílogo de uma ópera — satisfeita. A música ganha corpo. A guitarra reverbera como um sussurro venenoso no fundo da cena. Ela sorri. Um sorriso pequeno, contido. Um sorriso de predadora saciada.
Aquela queda, para ela, é justiça. É catarse.
O silêncio é quebrado por um grito:
MARCO AURÉLIO - Selma! Chame a ambulância!
Marco Aurélio irrompe pelo jardim, ofegante. Ele corre até Vivi, se ajoelha com pressa, e tenta erguê-la nos braços.
MARCO AURÉLIO - Carolina? Fica comigo (pausa) fica comigo
Laura permanece por um segundo em pé, imóvel, antes de se virar e caminhar lentamente para dentro da casa. O sorriso já não está mais nos lábios. Mas nos olhos — sim. Os olhos ainda brilham.
CORTA PARA:
CENA 2. MANSÃO DOS GODOY BUENO. ESCRITÓRIO. INT. NOITE
SONOPLASTIA – REQUIEM – LACRIMOSA - MOZART
A noite engole a mansão. O escritório é um refúgio de sombras e móveis antigos, com sua penumbra elegante, dominada pelo cheiro denso de couro, uísque e orquídeas frescas. As janelas fechadas abafam o mundo exterior. Um quadro de cavalos árabes observa tudo com impassível altivez.
Valquíria, vestida com um robe de seda chumbo, anda de um lado a outro. Fuma com fúria, a ponta do cigarro tremendo levemente entre os dedos enluvados. Sua expressão é um campo minado de contenção. A raiva é silenciosa — por enquanto.
Laura está sentada em uma poltrona de veludo vinho, as pernas cruzadas com calculada indiferença. Ela gira lentamente o gelo no copo de uísque. Os olhos estão distantes, como se a confusão não lhe dissesse respeito.
VALQUÍRIA - (ferina, explosiva) Você é uma idiota! Uma completa imbecil! Seu plano fracassou, Laura. De novo! E sabe o que vai acontecer agora? Vamos estampar as manchetes — outra vez.
LAURA - (entredentes, calma perigosa) Lucinha está morta. Ela descobriu tudo. Se eu não tivesse agido, ela teria contado pra Carolina. Ou pior pra imprensa.
Valquíria dá uma gargalhada seca, quase masculina. Cruel.
VALQUÍRIA - Parabéns. Matou a única pessoa que podia ser dissuadida com um bom advogado e dois zeros num cheque. E ainda deixou a outra viva. Brilhante.
LAURA - (ereta, fria) Foi por pouco.
VALQUÍRIA - (irônica) “Por pouco” é o nome do livro que vão escrever sobre sua decadência. Porque agora os médicos vão querer saber o que causou o acidente. A estufa. O sistema elétrico. Os sensores. E vão descobrir que tudo foi manipulado.
Laura se levanta. A postura firme. O olhar de aço. Por um instante, sua altivez domina a sala.
LAURA - (acusadora) Você não me ajudou. Deixou tudo nas minhas mãos. E agora quer lavar as suas?
VALQUÍRIA - (aproximando-se, gelo no olhar) Eu não vou afundar com você, Laura. Isso é uma decisão. Não uma ameaça.
As duas se encaram. Um silêncio cortante se instala. O velho relógio suíço na parede marca os segundos com um tique-taque sinistro.
LAURA - (sarcástica) Você está com medo?
VALQUÍRIA - (séria, imperiosa) Não. Eu estou lúcida. O que você fez não é mais jogo de poder. É crime. E crime amador.
Laura se aproxima. Encara Valquíria com raiva contida. O sorriso é fino, venenoso.
LAURA -Eu construí tudo isso. Cada detalhe. Eu estava tornando essa mansão um lugar melhor para nós duas. E você vai me abandonar?
VALQUÍRIA - (cortando, como lâmina) Você construiu um castelo de espelhos. Agora que eles começam a rachar, não venha me pedir pra colar os cacos.
Laura se cala por um instante. Depois ergue o copo de uísque, como um brinde fúnebre.
LAURA - O mundo nunca admirou mulheres discretas, Valquíria.
VALQUÍRIA - O mundo admira as que sobrevivem, Laura. Só as que sobrevivem.
Valquíria dá as costas. Apaga o cigarro num cinzeiro de cristal. O som da brasa morrendo é seco, simbólico. Ela sai com o andar firme de quem encerrou uma aliança.
Laura permanece imóvel por um momento. Depois, senta-se novamente. A câmera se aproxima devagar do rosto dela. O sorriso vacila. A tensão, enfim, aparece.
SONOPLASTIA — O REQUIEM AUMENTA SUTILMENTE.
CORTA PARA:
CENA 3. SÃO PAULO / RIO DE JANEIRO. EXT. AMANHECER
SONOPLASTIA – PADAM PADAM – KYLIE MINOGUE
A madrugada começa a morrer nos braços do amanhecer. A câmera desliza pelos céus cinzentos de São Paulo, sobrevoando uma cidade ainda ofegante da noite anterior. Os primeiros raios de sol arranham os espigões metálicos da Avenida Faria Lima. Um jato particular pousa com elegância em Congonhas. A escada se estende ainda antes de o avião parar completamente. Um homem de terno escuro aguarda, imóvel, com luvas que cintilam na luz tênue. O clique seco de saltos altos rasga o silêncio do hangar. A figura feminina que desce — sem pressa, com o mundo sob os pés — carrega uma bolsa vermelha como se carregasse um veredicto. Os olhos, escondidos por enormes óculos escuros, não demonstram cansaço. Apenas estratégia.
Corta-se bruscamente para o Rio. A cidade se exibe voluptuosa e cínica como uma diva envelhecida. A praia de Copacabana ainda está deserta, os garis recolhem garrafas vazias que contam histórias de exagero e decadência. No alto de um edifício, em uma varanda com vista para o mar, um copo de uísque esquecido reluz contra o vidro. Um robe de seda esvoaça ao vento. Dentro da cobertura, um tablet vibra sobre uma mesa de centro — notificação atrás de notificação, manchetes que surgem com voracidade: “Socialite sofre acidente em estufa”, “Morte suspeita ou falha técnica?”, “Família Godoy Bueno em silêncio”.
No silêncio de uma mansão isolada, o tempo parece suspenso. A claridade matinal invade uma sala monumental, coberta por cortinas douradas e móveis em estilo imperial francês. Tapetes espessos amortecem qualquer som. A mesa de café da manhã está posta com requinte, mas ninguém tocou no cristal, na prata, no pão fresco. Na cabeceira da sala, em pé, fumando com a naturalidade de quem fuma diante da própria consciência, Isabelle Leclerc contempla o jardim com a impassividade de uma imperatriz exilada. O robe branco com as iniciais IL bordadas a ouro cintila sob a luz do lustre de cristal veneziano. Ela segura o celular com leveza, como se esperasse por aquilo há décadas.
Ao ler a manchete que pisca no visor, os lábios se curvam num sorriso lento. Não é um sorriso de satisfação, mas de reconhecimento. Como se a história — essa amante velha e traiçoeira — finalmente estivesse de volta às suas mãos.
Ela solta a fumaça e diz, quase em sussurro, com sotaque estrangeiro e veneno brasileiro:
ISABELLE - (PARA SI MESMA) Siempre es cuestión de tiempo.
Enquanto a música cresce, a câmera se afasta. Primeiro da sala, depois dos vitrais, até alcançar a fachada colossal da mansão: mármore branco, colunas imensas, portões de ferro forjado com brasões entalhados. Os jardins simétricos se estendem como um campo de batalha. No alto, a inscrição antiga em letras douradas sobre a entrada principal: “Maison Leclerc”.
A luz do amanhecer a banha com uma reverência trágica. A música explode no refrão, enquanto a câmera congela na fachada.
CORTA PARA.
CENA 4. MANSÃO DE ISABELLE LECLERC. PISCINA. INT. DIA
A câmera sobrevoa a mansão no alto da encosta, descendo até a área da piscina como se estivéssemos prestes a presenciar um duelo nobre. A vista para o mar é cinematográfica, mas a verdadeira guerra está prestes a começar à mesa do café da manhã.
Isabelle Leclerc está sentada diante de uma mesa impecavelmente posta: frutas cortadas geometricamente, taças de cristal, jornal francês ao lado. Seu vestido preto é um monumento à elegância silenciosa — midi, gola alta, costas nuas, o cabelo preso com precisão. A aristocracia em carne e osso.
A porta de vidro se abre. Lari Pacotão surge. Vestido tigrado recortado, barriguinha de fora, colares, unhas longas, bocão vermelho. Uma visão que desafia códigos. Ela não anda: desfila com ginga de quem é dona do Brasil.
ISABELLE - (sin mirar, gélida como uma rainha de gelo) Siéntate.
LARI - (pára, uma mão na cintura, voz como tapa com glitter) Tô belíssima assim, amore. Quem precisa de cadeira é alma cansada.
ISABELLE - (mirando, com desprezo refinado) Insisto. Las mujeres que se quedan demasiado de pie, suelen caer.
Lari sorri com escárnio. Senta-se com ares de afronta. Joga o cabelo para o lado com teatralidade.
ISABELLE - Vine a Brasil por negócios y para descubrir quién era la nueva novia de Armand.
LARI - (tom debochado, olhos arregalados) Pois agora que a senhora já deu close e viu que a boneca aqui é real, pode arrumar a bolsinha e zarpar, né?
Isabelle pousa sua xícara com precisão assassina.
ISABELLE - Ahora que te vi estoy convencida de que necesito quedarme.
La elección de Armand es baja. Vulgar.
Tú no perteneces a mi familia.
Tienes aura de prostituta y encima de todo, eres transexual.
O mundo parece congelar por um segundo. Lari encara, sem piscar. E quando fala, sua voz é doce como veneno com glitter:
LARI - Ah, entendi (irônica) Cê veio me esculhambar achando que eu ia chorar no cantinho, né? Escuta aqui, madame: ser trans, ser travesti, ser viada, ser o que for — não é vergonha pra quem tem brilho. Vergonha é ser rica e baixa. Eu ouço preconceito de machinho escroto todo dia na rua. Mas da barbie eurocêntrica metida a fina? Aí não, né. Que deselegante.
ISABELLE - (com frieza cortante) ¿Cuánto quieres para desaparecer de la vida de mi hijo?
LARI - (rindo alto, como uma deusa do caos) Ah não, mana! Agora tu se superou. Se eu quisesse money, eu já tinha feito pix reverso no seu neto. Tô com ele porque ele me trata como eu mereço: como uma deusa, uma rainha do babado. E se isso te incomoda, junta teus cristais e vai fazer reiki no deserto, porque aqui a boneca não arreda o pé.
Ela se levanta. Olha Isabelle de cima. Não com superioridade — mas com a dignidade de quem venceu.
LARI - E mais uma coisa. Tua família não me aceita? Ótimo. Porque eu também não aceito racista travestifóbica na minha vida.
Se enxerga, baranga de luxo.
Lari sai. Os saltos batendo no piso soam como o fim de uma ópera.
A câmera foca Isabelle, que permanece sentada, tentando manter a pose. Mas há um leve tremor em sua mão — o único sinal da derrota.
Câmera recua discretamente e revela Armand, escondido atrás da porta que dá para a piscina. Ele escutou tudo. E seus olhos dizem mais do que qualquer fala: ele nunca mais verá a avó da mesma forma.
CORTA PARA.
CENA 5. APARTAMENTO DE LARI PACOTÃO E VIVI VENENO. SALA. INT. DIA
Luz baixa, tom amarelado. A sala tem uma mistura kitsch e fashionista: almofadas de oncinha, quadros de divas pop e velas aromáticas. O som de uma chaleira elétrica anuncia um instante de pausa na manhã que promete ser agitada.
Nanny Who está de turbante florido, bata esvoaçante e uma caneca cor-de-rosa com glitter que diz “NÃO NASCI PRA SER SILENCIADA”. Ela mexe o café com calma de quem já viu o mundo acabar algumas vezes.
Madson, mais contida, camiseta branca e calça de moletom, toma o café olhando para a janela. Há algo de esperançoso e quebrado nela.
MADSON - (sorrindo, quase tímida) Ontem foi perfeito, Nanny. O Marcos, ele é tão diferente.
NANNY WHO - (senta no sofá, cruzando as pernas) Menina, pelo jeito tu tá toda trabalhada no encantamento! Mas segura a peruca, que o boy magia pode virar boy feitiçaria.
MADSON -(rindo de leve) Ele é um cavalheiro, de verdade.
Abriu a porta do carro, fez um jantar maravilhoso (pausa) Me escutou, sabe? Eu não tava acostumada a ser ouvida.
A fala de Madson pesa no ar. Ela abaixa os olhos. O sorriso desaparece, substituído por um reflexo de dor.
MADSON - (olhar perdido) Às vezes eu ainda acho que... que se eu cruzar a esquina errada, alguém vai me bater. Quando um homem me olha na rua, eu ainda penso em correr. É como se o meu corpo lembrasse antes de mim.
NANNY WHO - (se aproxima, coloca a mão sobre a dela) Ê, mona. O bofe da dor te deixou cheia de cicatriz no peito, mas cê não é mais prisioneira desse babado, não. Tu saiu da jaula, agora voa. O trauma é teu, sim, mas a liberdade também.
MADSON - (engolindo o choro) Eu sei. Mas eu tenho medo. E se eu me enganar de novo?
NANNY WHO - (séria, mas doce) Tu vai. Todo mundo se engana.
Mas nem todo mundo tem coragem de tentar de novo. Vai com calma, vai com fé. E se o Marcos for firmeza mesmo, ele vai entender teu tempo. E vai ficar.
MADSON - (sorri, tímida) Ele falou da história dele. A mãe era costureira, do Méier. O pai morreu há anos. Se chamava Luisão.
O nome entra na sala como um fantasma. Nanny Who, que até então estava relaxada, perde toda a cor. Seus olhos ficam distantes, o sorriso desaparece. Ela engole em seco.
MADSON - (não percebe, continua) Marcos disse que o pai era muito querido no bairro. Que morreu jovem.
Por que essa cara, Nanny?
NANNY WHO - (rapidamente recompõe o rosto, força um sorriso) Nada, nada, mona. Só deu um tilt no cérebro. Luisão, nome forte, né? Nome de gente que marca.
MADSON - (suspeita de algo) Você conheceu alguém com esse nome?
NANNY WHO - (sorri, mas os olhos estão nublados) Conhecer? Ah, mana. Nesse mundão, a boneca aqui já viu muito Luisão que era levinho e muito levinho que era um peso. Deixa isso pra lá.
Madson ri, sem entender o que se passou. Mas a câmera permanece em Nanny Who, que segura a xícara com firmeza, tentando disfarçar o tremor. O olhar fixo no nada. O passado voltou, e ela ainda não sabe o que fazer com ele.
CORTA PARA:
CENA 6. MANSÃO DOS GODOY BUENO. ESTUFA. INT. DIA
A luz do sol invade a estufa através dos vidros partidos, projetando sombras irregulares e inquietantes. A cena é de um requinte macabro. Flores raras, samambaias exuberantes, vasos de orquídeas — tudo sujo de sangue. Há cacos por todos os lados. No centro, o corpo de Lucinha jaz estirado no chão, um estilhaço de vidro ainda cravado em sua jugular, o rosto pálido e sem vida. Sangue seco escorre pelo pescoço e tinge os azulejos brancos como se fossem porcelana rachada.
Três policiais — todos de terno, discreto mas gasto — caminham entre os destroços com máscaras de desdém e ironia profissional. Um deles segura uma máquina fotográfica, outro faz anotações. O terceiro está de braços cruzados, observando tudo com ar cínico.
POLICIAL 1 - (olhando ao redor, entre incrédulo e enojado) Mansão dos Godoy Bueno. Igual propaganda do governo brasileiro. Na TV parece um paraíso. Na vida real, é só podridão bem decorada.
POLICIAL 2 - (sem levantar os olhos do caderno) Igual verba pública. Entrar é uma maravilha. Mas sair pela porta da frente? Só com escolta ou milagre.
POLICIAL 3 - (rindo seco) Ou caixão de luxo.
O som da câmera fotográfica disparando é constante. O clique ritmado capta o cenário como se fosse um ensaio editorial da decadência.
POLICIAL 1 - (se agacha perto do corpo) Sabia que a porta da estufa foi manipulada? O sistema eletrônico foi adulterado pra provocar o colapso dos vidros. Coisa fina. Assassinato com assinatura.
POLICIAL 2 - (sério, quase admirado) Só em novela ou na alta sociedade mesmo pra inventarem morte com efeito cênico.
POLICIAL 3 - (sorri torto) Pelo visto os Godoy dessa vez estão mesmo encrencados. E não tem dinheiro nem sobrenome que limpe isso aqui.
Câmera se aproxima — Close no rosto sem vida de Lucinha, sereno como uma boneca de louça rachada. O sangue seco molda as feições num silêncio absoluto. O estilhaço de vidro cravado em sua jugular brilha à luz do dia como uma joia trágica.
CORTE PARA:
CENA 7. APARTAMENTO DE LUCINHA. SALA. INT. DIA
A luz que entra pela janela é fria, difusa, como se o mundo lá fora também estivesse de luto. Na sala simples, mas aconchegante, há vestígios de vida recente: uma manta jogada sobre o sofá, uma xícara esquecida na mesinha de centro, uma bolsa aberta. Tudo está em suspenso.
Patrícia está de pé, inquieta, roendo uma unha sem perceber. O rosto apreensivo, os olhos vermelhos — ela não dormiu. Ela ouve a chave girando na fechadura e se vira, imediatamente.
Rubinho entra. Ele parece exausto. Os olhos baixos. A camisa amarrotada. Fecha a porta devagar, como se qualquer barulho pudesse quebrá-lo por dentro.
PATRÍCIA - (quase num sussurro desesperado) Rubinho me diz que ela tá bem. Me diz que ela tá viva...
Runinhp não responde. Apenas a encara com dor nos olhos. O silêncio é um punhal.
PATRÍCIA - (tenta negar com a cabeça, a voz embargada) Não faz isso comigo. Fala, Rubinho! Fala que é mentira! Fala!
Ela começa a entrar em pânico, cambaleia, as mãos no rosto. O choro rompe com violência.
Rubinho a segura, firme, mas afetuoso. A abraça forte. Ela chora contra o peito dele, soluçando como uma criança perdida.
PATRÍCIA - (gritando, sem força) Agora que a gente tava se entendendo. Agora que a gente ia se acertar. Isso não podia acontecer! Não podia!
RUBINHO - (voz baixa, firme, uma ternura triste) Eu tô aqui. E vou continuar aqui. A gente vai passar por isso. Juntos.
PATRÍCIA - (ele a segura no rosto, ela o olha) Rubinho, me perdoa por tudo que eu fiz. Por tentar afastar você dela. Por não aceitar o amor de vocês...
RUBINHO - (sem hesitar) Isso agora não importa mais. A gente precisa ser forte. E enfrentar tudo isso como gente civilizada.
PATRÍCIA - (desesperançada, mas sincera) Mas eu não sou forte. Eu nunca fui.
RUBINHO - (seco, mas doce) Então começa agora. Por ela. Por você.
Eles se abraçam. O silêncio volta, denso. Só o som abafado da cidade entra pela janela.
A câmera se afasta lentamente, revelando a sala vazia atrás deles — um espaço que agora carrega ausência, e não apenas objetos.
CORTA PARA:
CENA 8. HOSPITAL ALBERT EINSTEIN. QUARTO DE VIVI. INT. DIA
SONOPLASTIA — DO I WANNA KNOW? – ARCTIC MONKEYS – INSTRUMENTAL
A câmera percorre o quarto com lentidão quase indecente. O espaço é asséptico, silencioso, um luxo que cheira a morte velada. O monitor cardíaco pulsa baixo, ritmado, como um tambor longínquo. O sol de fim de tarde invade pelas frestas da persiana e desenha listras brancas sobre os lençóis, como grades.
Vivi está desacordada na cama. O rosto tem hematomas sutis. Os braços, cobertos por faixas brancas, denunciam os cortes dos estilhaços de vidro. O soro pinga lentamente. Uma beleza ferida, suspensa entre o delírio e a sobrevivência.
A maçaneta gira. A porta se abre devagar. Surge uma figura de branco, passos calmos, firmes, metódicos. Sapatos baixos, touca sobre os cabelos ruivos. Um estetoscópio falso pendurado no pescoço. Um disfarce montado com o cuidado de um figurino teatral.
Só no reflexo do espelho lateral é que a vemos por inteiro: Laura.
A mulher por trás do disfarce. O olhar felino, maquiado com perfeição. O batom carmim. A boca entreaberta num sorriso de vilania entorpecida. Ela se encara no espelho e sussurra — para si mesma, para o prazer que só a crueldade refinada proporciona:
LAURA - (sussurrando, rindo baixo) Cachorra (pausa) gostosa pra caralho. O anjo da morte mais lindo que esse mundo já viu.
A câmera se aproxima de seu rosto. O olhar é de prazer quase erótico. Ela está saboreando o momento.
Do bolso do avental, retira uma seringa. O líquido cintila dentro da ampola. Ela ergue com precisão, ensaiando o gesto com elegância cirúrgica.
A agulha aproxima-se do tubo da intravenosa. A ponta está prestes a perfurar.
E então — uma interrupção súbita. Um sussurro frágil, rouco.
Quase inaudível. Mas devastador.
VIVI - (OFF, baixa, confusa) nde eu tô?
Laura congela. Fica imóvel, com a seringa suspensa no ar. O plano inteiro — o crime perfeito — vacila. A tensão morde o ar. A câmera gira em volta dela. Lentamente, Laura vira de costas para a cama, sem mostrar o rosto. O corpo permanece ereto, mas há um leve tremor no ombro esquerdo.
O silêncio agora pesa como chumbo.
Ela guarda a seringa de volta no bolso. Sem dizer palavra.
Sem se virar.
A câmera fecha em sua nuca.
O soro continua pingando.
CORTA PARA:
FIM
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