A INTRUSA
CAPÍTULO 24
UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI
CENA 1. MANSÃO DOS GODOY BUENO. ESTUFA. INT. NOITE
SONOPLASTIA — DO I WANNA KNOW? - ARCTIC MONKEYS – INSTRUMENTAL
A câmara se move devagar, penetrando a penumbra da estufa como um intruso. O som abafado da respiração de Laura — que todos ainda acreditam ser Selma — guia a tensão. A iluminação é tênue, quase teatral: apenas o brilho dos refletores laterais que destacam a umidade das folhas e o vidro suado das janelas.
Ela veste um robe cinza-chumbo, quase monástico, os cabelos presos num coque impecável. Os olhos fixos, frios como bisturis.
Suas mãos, protegidas por luvas de couro finíssimo, manipulam com precisão cirúrgica fios metálicos e dispositivos manuais. Trabalha no sistema da porta da estufa com a frieza de quem já matou antes. Quando termina, um fio puxa discretamente a estrutura superior de sustentação das janelas de vidro. Um mecanismo artesanal, mas letal: ao ser acionado pela abertura da porta, os vidros da claraboia irão despencar como guilhotinas de cristal.
Ela dá um passo para trás e observa sua obra com prazer contido. É uma mulher que nunca se permite o luxo da euforia. Apenas o da superioridade.
Ela tira as luvas lentamente e respira fundo, sentindo o cheiro denso das orquídeas em flor e da terra molhada. Um cheiro de morte travestido de beleza.
Fala sozinha, como se narrasse sua própria peça:
LAURA - (sussurrando, quase doce) Logo, logo, você vai poder me chamar de mãe, Aurora (sorri) E você, Marco Aurélio, de esposa. Você é um homem fácil de dobrar. Basta deixá-lo acreditar que tem o controle.
Ela sorri. Um sorriso que nunca chega aos olhos. A música cresce.
A bateria da música pulsa, o som de vidro sendo tensionado ecoa como um prenúncio.
Laura fecha a estufa com calma. Tranca. Dá dois passos para trás e observa como quem contempla um túmulo recém-fechado.
LAURA - (murmura, amarga) É tão fácil destruir quando ninguém suspeita de você.
Ela apaga a luz da estufa. A câmera a acompanha em plano médio enquanto ela se afasta pelo jardim, engolida pela escuridão. A silhueta é elegante, firme, letal.
CORTA PARA:
CENA 2. APARTAMENTO DE LUCINHA. SALA DE ESTAR. INT. NOITE
Lucinha calça os sapatos com movimentos secos, precisos. Veste um vestido cinza-grafite, ajustado ao corpo, mas sem brilho — como se a pressa a impedisse de pensar em vaidade. O batom, inacabado, mancha o canto do copo de vinho sobre a mesa.
Alguém bate na porta. Três toques ansiosos.
Ela respira fundo, fecha os olhos por um segundo. Vai até a porta e abre. É Rubinho. Terno amarrotado, olhos ainda úmidos de expectativa.
RUBINHO - (sincero, aflito) Vim assim que você mandou a mensagem. Que foi que aconteceu?
Lucinha o observa por um instante. Longo. Como se precisasse ter certeza, como se finalmente estivesse enxergando de verdade o homem à sua frente. Depois, suaviza. Um sorriso curto, melancólico.
LUCINHA - (sussurrando) Já sei da verdade. E eu te devo desculpas, Rubinho.
Rubinho avança um passo, os olhos vivos, emocionados. Ela recua, não por medo, mas por pudor.
LUCINHA - (continua) Eu me deixei enganar. Não devia ter acreditado na Patrícia. Mas agora eu entendo. Ela não queria você pra ela. Não é isso. (uma pausa, voz embargada) Ela ainda não processou a morte do pai. E te culpar era mais fácil do que aceitar que a vida seguiu pra mim.
Rubinho tenta dizer algo, mas Lucinha encurta a distância e o beija. Um beijo breve, mas denso. Uma confissão. Um perdão.
Ela se afasta sem olhar diretamente nos olhos dele, como se temesse se deixar seduzir pelo conforto. Está decidida.
RUBINHO - (sem entender) Lucinha, espera. Que tá acontecendo?
Lucinha pega sua bolsa, a chave do carro, o celular. Movimentos ágeis, quase automáticos.
LUCINHA - (olhos vidrados, urgência) Eu preciso ver a Carolina. Agora.
RUBINHO - Mas por quê? Que que houve?
Ela para na porta, finalmente encara Rubinho. O olhar é um turbilhão de emoções: fúria contida, medo, revelação iminente.
LUCINHA - (tensa, críptica) Logo você vai saber. Mas o que eu encontrei muda tudo.
Rubinho tenta insistir, mas ela já está fora, atravessando o corredor com passos firmes, quase militares.
A porta fica entreaberta. O copo de vinho sobre a mesa vibra levemente, como se o mundo estivesse prestes a ruir.
CORTA PARA:
CENA 3. MANSÃO DOS GODOY BUENO. ESCRITÓRIO. INT. NOITE
SONOPLASTIA — DO I WANNA KNOW? – ARCTIC MONKEYS – INSTRUMENTAL
O escritório está imerso em penumbra. Apenas a luz da luminária sobre a mesa reflete nas paredes de madeira nobre. Livros caros. Silêncio denso. Decadência elegante.
Laura, ainda vestida como na cena estufa, ergue um copo de cristal com uísque envelhecido. Ela está impecável. Cabelos presos com precisão cirúrgica. Um broche antigo em forma de serpente preso ao ombro — um detalhe que diz tudo.
Valquíria, sóbria e fria, se serve com mais parcimônia. Observa a outra mulher com olhos de raposa experiente. Está de tailleur branco, sem um fio fora do lugar. Ela cruza as pernas lentamente e sorve o uísque com calma, como quem degusta o erro alheio.
LAURA - (um sorriso nos lábios, olhos brilhando) Amanhã… quero todos de preto. (pausa dramática) O luto vai ser oficial. E, finalmente, eu vou me livrar da Carolina.
Valquíria não reage de imediato. Apenas a levíssima arqueada da sobrancelha revela o impacto da frase. Então, ela repousa o copo no braço da poltrona.
VALQUÍRIA - (cínica) Desde que o serviço seja bem feito. Não temos espaço pra amadorismo, Laura.
LAURA - (tensa, sem desviar o olhar)
Selma.(pausa curta)
Meu nome é Selma. Laura morreu com a identidade que eu destruí.
VALQUÍRIA - (tom glacial) E tomara que tenha sido uma morte convincente. Porque se restar qualquer traço daquela mulher é o seu funeral que vão anunciar amanhã.
Laura sorri, mas é um sorriso vazio. Como uma máscara prestes a se despedaçar.
LAURA -(com autoconfiança venenosa) Eu sei o que estou fazendo.
Cada passo, cada olhar, cada palavra foi milimetricamente calculado. Carolina vai cair — e levar com ela tudo o que ainda liga essa família ao passado.
VALQUÍRIA - (tom seco, impiedoso) O problema de quem confia demais em si mesma é que esquece (olhos fixos) que o mundo não perdoa a soberba. A vida cobra. Sempre cobra.
LAURA - (ergue a taça, zombeteira) Brindemos, então. À vida que cobra (pausa amarga) e às mulheres que pagam com estilo.
Valquíria sorri. Lenta. Cruel. Elas brindam em silêncio.
A câmera fecha no tilintar dos cristais, depois nos olhos de Laura, que brilham feito lâmina. A câmera então se move, passeando pela estante, parando num porta-retrato antigo de Carolina ainda adolescente — o único objeto levemente empoeirado da sala.
O instrumental da música entra em seu auge, como um sussurro que avisa: sangue será derramado.
CORTA PARA:
CENA 4. MANSÃO DOS MONTESINO. SALA DE ESTAR. INT. NOITE
SONOPLASTIA — ÁGUAS DE MARÇO - ANTONIO CARLOS JOBIM - INSTRUMENTAL
A câmera desliza pela sala elegante e antiga. Cortinas pesadas dançam levemente com a brisa que entra por uma janela mal fechada. Um relógio de pêndulo marca o tempo com regularidade fúnebre. Um abajur em tom âmbar revela uma Cecília envelhecida não apenas no rosto, mas na alma.
Ela está sentada com postura digna, mas cansada. A xícara de chá treme entre seus dedos finos. Ela fecha os olhos por um segundo — talvez uma prece silenciosa, talvez medo.
Ouve-se o barulho da porta da frente abrindo. Passos firmes, decididos. Salto alto. Perfume caro invade o ar.
Lívia surge na sala como uma presença. Casaco de grife, cabelo intacto, olhar gélido. Uma mulher que aprendeu cedo a usar o sarcasmo como escudo.
CECÍLIA - (suavemente, alívio na voz, mas também culpa) Graças a Deus. Onde você estava, meu amor? Já passa da meia-noite.
LÍVIA - (tirando o casaco, sem sequer olhar para a mãe) Num lugar onde não sou obrigada a ser o que vocês sonharam.
Um silêncio denso paira. A música continua, quase imperceptível, como uma lembrança teimosa.
CECÍLIA - (baixando a xícara, medindo as palavras) Lívia, às vezes é tão difícil ser sua mãe.
Lívia ri. Uma risada seca, desprovida de qualquer doçura.
LÍVIA - Difícil é ser sua filha. Sorte sua que tem a Carolina. (DEBOCHADA) A queridinha. A órfã de novela das seis que vocês adotaram pra preencher o vazio — e quando eu nasci, o vazio já tava ocupado.
CECÍLIA - (olhos marejados, sem agressividade) Não fale assim da sua irmã. Carolina nunca foi um preenchimento. Ela foi escolha. Amor.
LÍVIA - (aproximando-se, baixando o tom, ferina) Mentira. Ela foi o ensaio. E eu? A obra inacabada. O erro de cálculo. A filha legítima que nunca coube no papel de redentora.
CECÍLIA - (levantando-se, olhos nos olhos, firme mas quebrada por dentro) Você foi o milagre, Lívia. O milagre que eu e seu pai imploramos aos céus por mais de uma década. Carolina veio quando a esperança tinha se esgotado. Mas foi você quem chegou quando já não se esperava mais.
Você foi o ponto final da nossa oração.
Lívia a observa. Por um breve momento, o olhar fraqueja. Mas ela logo recua, assumindo novamente o escudo do desprezo.
LÍVIA - (debochada, quase com pena) Que pena que esse ponto final veio sem parágrafo. Boa noite, mamãe.
Ela vira as costas e sai. Os saltos ecoam como estocadas. A música se intensifica — agora o piano carrega uma nota mais grave, mais emocional.
Cecília permanece de pé por um instante, como se esperasse que Lívia voltasse. Mas não volta.
Ela se senta lentamente. A lágrima não cai — escorre com a dignidade das mulheres que aprenderam a sofrer em silêncio. Ela não soluça. Apenas respira fundo. E chora com os olhos. Como uma mãe em silêncio.
CORTA PARA:
CENA 5. MANSÃO DOS GODOY BUENO. SALA DE ESTAR. INT. NOITE
O silêncio da casa aristocrática é cortado por uma campainha grave, quase um trovão abafado. A luz amarelada de um lustre impõe sombras longas no piso de mármore. É uma noite que parece sussurrar segredos antigos.
Laura, elegante e impenetrável, caminha lentamente até a porta. Seus passos ecoam pela casa como os de alguém que não teme nada — mas que esconde tudo. Ela abre. Lucinha está ali. Molhada de orvalho, os olhos em brasa. Frágil como uma camponesa, mas com a força de quem já perdeu tudo.
LAURA - (voz baixa, cortante) Você tem noção da hora?
LUCINHA - (sem hesitar) Tenho. A hora certa de pôr um fim nisso.
Laura sorri de lado, aquele sorriso lento de quem acredita estar dois lances à frente no xadrez. Cruza os braços.
LAURA - Você não vai acordar ninguém. A vida aqui é muito delicada pra ser contaminada com escândalos.
LUCINHA - (um passo à frente, voz firme, quase doce) Você fala como quem ainda acredita que pode controlar a narrativa.
Laura ergue o queixo. Lucinha crava os olhos nela. E diz, como quem revela o verdadeiro nome de um demônio:
LUCINHA - Cale a boca (FATAL) Laura.
O nome explode no ar. A postura de Laura vacila — por um segundo. Ela recua, imperceptivelmente, como uma serpente encurralada. A tensão enche o cômodo como gás venenoso.
LAURA - (baixa o tom, seca) Você não sabe o que está dizendo.
LUCINHA - Eu sei exatamente. Você não é Selma. Você é Laura. A esposa. A viúva do Doutor Roberto que ficou trancada atrás de tratamentos, instituições e vergonhas após sua morte. E agora você voltou. Mas não pra reconquistar o que perdeu.
Pra destruir a vida que nunca teve: a da Carolina.
Laura desvia o olhar por um breve segundo. Aquilo a atinge. Lucinha percebe e empurra mais.
LUCINHA - Você acha que eu sou burra? Eu fui criada à margem, mas eu vejo. Cada gesto seu tem veneno. Você não está aqui por amor. Está por revanche. E não vai usar a Carolina como munição nesse jogo doente.
Laura, acuada, tenta recompor o rosto. Tenta ser superior, mas sua voz sai trincada:
LAURA - Não faça escândalo, Lucinha. Nada disso precisa sair daqui.
Se você me expõe quem perde é ela
Lucinha se aproxima. Agora as duas estão quase encostadas. Lucinha sussurra como quem sentencia:
LUCINHA - Ela já perdeu, meses da vida acreditando em você.
Chegou a hora de tirar a venda dos olhos.
Silêncio. Um silêncio com gosto de fim. Laura fecha os olhos. Respira. E enfim, como quem assina uma rendição amarga:
LAURA - Ela está na estufa.
Lucinha vira-se sem dizer mais nada. Os passos dela se afastam com urgência — não de desespero, mas de uma coragem que nasceu da dor.
A câmera permanece com Laura. Por um instante, ela desmorona por dentro. Mas logo recompõe a máscara. Fria. Altiva. Um sorriso mínimo se forma. A tragédia foi apenas adiada.
No alto da escada, Vivi aparece — confusa, jovem, com a beleza de alguém que ainda não entende o próprio valor.
VIVI - (voz baixa, hesitante) O que está acontecendo?
Laura vira-se com elegância cruel. O rosto plácido como porcelana. A mentira já formulada.
LAURA - Lucinha. Teve um surto e parou aqui. Foi até a estufa. Disse que queria ver você.
Vivi a observa, sem saber se acredita. Há um desconforto. Um pequeno espelho racha dentro dela.
A câmera se afasta lentamente. A mansão permanece silenciosa, mas algo mudou. Como se os fantasmas ali tivessem acordado.
CORTA PARA:
CENA 6. MANSÃO DOS GODOY BUENO. ESTUFA. INT. NOITE
SONOPLASTIA — DO I WANNA KNOW? – ARCTIC MONKEYS - INSTRUMENTAL
A câmera acompanha Lucinha caminhando pelo jardim sombrio da mansão. As sombras das palmeiras altas dançam sob a luz difusa da lua. Cada passo dela é tenso, decidido. Sua silhueta, delicada, contrasta com a escuridão opressora.
Ela alcança a porta de ferro da estufa. O trinco range como um presságio. Ela hesita por um segundo — instinto puro. Mas ignora. Abre a porta com força.
TRAVELLING LENTO – CÂMERA ATRÁS DE LUCINHA.
No exato momento em que a porta se abre, um estalo agudo rasga o silêncio. Um disparo silencioso de ar comprimido. O mecanismo se ativa.
Em câmera lenta, todos os vidros da cúpula da estufa — centenas de pequenos painéis — se estilhaçam em um efeito dominó brutal e quase coreografado. Uma chuva de lâminas de cristal despenca como se o céu estivesse colapsando sobre Lucinha.
Ela levanta os braços por reflexo. Mas não há defesa contra aquilo. Um corte preciso atravessa seu pescoço. A jugular. O sangue jorra com violência. Vermelho sobre o verde das plantas raras. Vermelho sobre o branco do vestido simples. Vermelho sobre a brutalidade do silêncio.
Lucinha ainda tenta falar. A boca se move. Um som gutural. Um nome? Um segredo? Ela cai de joelhos. Os olhos arregalados. O corpo tombando com estranha delicadeza entre orquídeas e samambaias. A morte chega sem poesia — só com a estética da tragédia.
A música continua. Guitarras ecoando como ecos de culpa e conspiração.
Um novo som: passos apressados. Salto alto. Correndo sobre o cascalho.
VIVI - (tensa, fora de quadro) Lucinha?
A câmera foca o rosto de Vivi ao surgir na porta da estufa. Ela congela. O sangue. Os cacos. O corpo inerte.
Close no rosto de Vivi. O horror absoluto. A mente em pane. A alma se partindo. Ela tenta falar, mas o grito não vem. Apenas um sussurro quebrado.
VIVI - Meu Deus...
Ela entra, devagar, como uma criança num pesadelo. A mão trêmula toca os cabelos de Lucinha. O sangue escorre pelos dedos dela. Vivi cai de joelhos. A respiração descompassada. O mundo ao redor dela desaba, mas por dentro.
A música se transforma em ruído abafado. A câmera sobe, aos poucos, deixando para trás a estufa transformada em matadouro, com flores exóticas tingidas de vermelho e uma jovem que, sem saber, acabou de perder a única verdade que conhecia.
CORTA PARA:
FIM
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