A INTRUSA
CAPÍTULO 21
UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI
CENA 1. APARTAMENTO DE LUCINHA. QUARTO DE LUCINHA. INT. DIA
Continuação direta da cena anterior. A porta entreaberta. A luz do dia atravessa as cortinas de linho, projetando sombras elegantes sobre os lençóis revirados. Rubinho está estirado na cama, suado, atordoado, o corpo mole como se carregasse o peso de um erro irreversível.
Lucinha entra em um rompante. O rosto devastado, os olhos marejados. Fúria e dor misturam-se em cada gesto.
LUCINHA - (grita, em desespero) Rubinho! Acorda, miserável! Você tá me ouvindo?
Ela arranca o lençol de cima dele com violência. Rubinho desperta aos poucos, olhos turvos, fala embolada. Patrícia, semi deitada, começa a pentear o próprio cabelo com os dedos, impassível.
PATRICIA - (debochada, com voz doce e venenosa) Nossa, mãe. Que barulho. Ele só fez o que qualquer homem faria. Preferiu carne fresca. Mais firme, mais jovem.
Lucinha gira em seu próprio eixo e a mão estala no rosto de Patrícia. Um tapa seco, carregado de décadas de sacrifício.
LUCINHA - (tremendo, com voz embargada) Você é minha filha! Minha filha, Patrícia!
PATRICIA - (sem perder o tom, passando o dedo no rosto marcado)
Filha, sim. Mas também herdeira. Metade desse apartamento é meu. Presente do meu pai. Lembra dele? Ou você apagou da memória como apagou os cheques que ele deixou?
Lucinha entra em transe. Abre o closet com fúria. Puxa ternos, camisas, cuecas de marca e atira tudo no chão. O quarto se transforma num campo de batalha emocional.
LUCINHA - (gritando para Rubinho) Pra rua! Agora! Você acha que me enganou? Eu me humilhei. Me iludi. Sempre achei que eu não era suficiente por ser mais velha. E eu tava certa, né?
Rubinho tenta reagir. Cambaleia. A voz é pastosa, as pálpebras pesadas.
RUBINHO - (sonso, confuso) Eu juro que não lembro de nada...
LUCINHA - (berrando, com lágrimas caindo) Nem pra trair você presta, Rubinho! Nem pra isso!
Ela sai batendo a porta com força. Rubinho permanece parado, cercado por suas roupas no chão. O quarto em ruínas, como a relação. Patrícia se estica preguiçosamente sobre o travesseiro, com um sorriso pérfido nos lábios.
PATRICIA - (sussurrando, com ironia) Todo império começa com uma queda. E eu tô pronta pro trono.
CORTA PARA:
CENA 2. SÃO PAULO. EXT. ANOITECER
SONOPLASTIA – PADAM PADAM – KYLIE MINOGUE.
Planos da cidade em transição. O céu já tingido de tons arroxeados, os prédios ganham contornos dourados sob os últimos raios de sol.
O trânsito começa a pesar, buzinas ecoam, luzes vermelhas piscam nas avenidas.
A música cresce. Corta para a fachada espelhada da Godoy Bueno Exportações, imponente e fria contra o caos ao redor.
A câmera se aproxima, em movimento elegante, refletindo a noite que chega — e os segredos que se adensam.
CORTA PARA:
CENA 3. GODOY BUENO EXPORTAÇÕES. CORREDOR. INT. NOITE
O corredor está silencioso, iluminado por luzes frias. Portas fechadas, passos abafados. Vivi caminha com expressão tensa, saltos ecoando. Daniel surge na outra extremidade.
Eles se encaram. O tempo parece parar. Ao fundo, “Amor, Meu Grande Amor” de Angela Ro Ro começa a tocar suavemente.
DANIEL - (aproximando-se, com o olhar vulnerável) Você tá bem?
VIVI - (fria, contida) Tô, sim. Me recuperei do acidente.
DANIEL - (dolorido, sincero) Acho que nunca fiquei tão nervoso na vida. Quando vi o que tinha acontecido, achei que ia te perder.
VIVI - (engole seco, desviando o olhar) Você já perdeu, Daniel. Eu tô voltando com o Marco Aurélio.
O rosto de Daniel se quebra por dentro. Mas ele não recua.
DANIEL - (dando um passo à frente, voz baixa, firme) Você pode mentir pra ele, pra mim, pro mundo inteiro. Mas não mente pra você, Carolina. A gente se ama. Eu sinto sua falta todos os dias. Você me atravessa, entende? Você me atravessa.
A música cresce sutilmente. Os olhos de Vivi brilham. Ela tenta resistir, mas está tocada. Os dois se encaram por longos segundos. Silêncio. Apenas o som da canção e as respirações entrecortadas.
Daniel se aproxima devagar. Muito devagar. Os rostos a centímetros. O beijo é iminente.
Mas Vivi recua. Um passo atrás. Respira fundo. Vira-se e vai embora com pressa.
Daniel fica parado no corredor, olhando para o nada. Um sorriso melancólico se desenha no canto da boca.
DANIEL - (baixinho, com ironia e ternura) Ainda me ama (ri) Só não sabe mais o que fazer com isso.
CORTA PARA:
CENA 4. GODOY BUENO EXPORTAÇÕES. ESCRITÓRIO DE DANIEL. INT. NOITE
Daniel entra sorridente, ainda sob o efeito do encontro com Vivi. Fecha a porta, tira o paletó com leveza. Vai até sua mesa. A cadeira executiva está virada de costas. Ela gira lentamente.
LÍVIA - (sentada, com um sorriso debochado) Boa noite, doutor Galã.
DANIEL - (surpreso, fechando a expressão) Lívia? O que você tá fazendo aqui?
LÍVIA - (se levanta, teatral) Vim te dar uma notícia maravilhosa. Ou devastadora. Depende do ponto de vista.
Daniel cerra os olhos, desconfiado.
DANIEL - (seco) Fala logo.
LÍVIA - (abrindo os braços, fingindo felicidade) Parabéns, Daniel. Você vai ser papai.
Silêncio. O sorriso de Daniel desaparece. Ele dá um passo para trás, atônito.
DANIEL - (choque, quase sem ar) Você tá brincando (RI) Isso não pode estar acontecendo.
LÍVIA - (fingindo ofensa, irônica) Nossa, que recepção calorosa. Eu ensaiei um discurso todo dramático, pensei até em chorar. Mas não deu tempo.
DANIEL - (revolto) Não agora, Lívia. Justo agora que eu tenho uma chance de reconquistar a Carolina.
LÍVIA - (ri, cortante) Carolina, Carolina. Meu amor, você devia ter pensado nisso antes de (faz um gesto sugestivo) tirar o cinto e esquecer a camisinha.
Daniel vira-se de costas, passa a mão no rosto, atordoado.
DANIEL - (baixo, tentando se recompor) Eu sempre quis ser pai. De verdade. Mas não assim. Não com você.
LÍVIA - (finge ofensa, cruza os braços) Nossa! Que romântico, Daniel! Quase pedi um violino. Mas deixa eu te lembrar: você também estava lá. Aliás, bem empolgado.
DANIEL - (seco, sem paciência) Você tem certeza de que esse filho é meu?
LÍVIA - (aproxima-se, olho no olho) Tenho. E se quiser duvidar, fique à vontade. Mas aviso logo: vai fazer papel de cafajeste, e eu sou ótima em expor cafajestes.
Ele suspira, derrotado. Senta na cadeira. Lívia sorri com gosto.
LÍVIA - (fazendo charme, como quem dita as regras) Se quiser fazer parte da vida do bebê vai ter que aceitar a mãe também. E pode começar escolhendo um anel. De noivado.
Daniel levanta os olhos, pasmo. Lívia sorri vitoriosa.
LÍVIA - (sussurra, triunfante) Bem-vindo à paternidade e ao inferno.
CORTA PARA:
CENA 5. GODOY BUENO EXPORTAÇÕES. ESCRITÓRIO DE MARCO AURÉLIO. INT. NOITE
O ambiente é elegante, moderno, luz baixa. Marco Aurélio trabalha concentrado, camisa branca com as mangas dobradas, tenso. A porta se abre com suavidade.
VIVI - (interrompendo com firmeza) Posso?
MARCO AURÉLIO - (olha, sorri) Sempre. Você nunca atrapalha, Vivi. Você me traz felicidade.
Um silêncio significativo. Eles se encaram. Vivi baixa o olhar por um instante, recompõe-se, senta-se de frente para ele.
VIVI - A gente precisa focar no que importa agora. Descobrir a verdade sobre a Carolina.
Marco franze o cenho, atento.
VIVI - (cont.) A Lívia pode ser tudo, menos assassina. E se ela não matou Carolina, alguém matou. E alguém muito próximo.
MARCO AURÉLIO - (duvidoso) Você acha que foi Lucinha?
VIVI - (pausa tensa) Lucinha sempre me olhou como se soubesse que eu não era a Carolina. Mas nunca disse nada. Sempre calada, atenta. E o ciúme dela por Rubinho, doentio. Ela nunca aceitou que ele preferisse outra mulher.
INSERT
MANSÃO DOS GODOY BUENO. SALA. INT. NOITE
Luz tênue. A lareira projeta sombras trêmulas nas paredes. O pêndulo do relógio marca o tempo com precisão cruel. A porta se escancara — Lucinha entra como uma tempestade, descomposta, o celular tremendo entre os dedos. Um casaco felpudo cobre um vestido de festa. Ela respira com dificuldade.
LUCINHA - (grita) CAROLINA?! A GENTE PRECISA FALAR AGORA!
VIVI - (senta com a elegância de quem se preparou a vida inteira pra esse papel, levanta lentamente a taça de vinho) Ih, mona, já chega gritando? Aqui é casa de rica, não núcleo popular da novela das nove.
Lucinha se aproxima, mãos trêmulas, exibe a tela do celular.
LUCINHA - (entre surtada e furiosa) É isso aqui. Essa foto com o Rubinho (berra) Você tá traindo o Marco Aurélio?!
FIM DO INSERT
MARCO AURÉLIO - (mexido, tentando racionalizar) Mas a Lucinha, ela amava a Carolina. Você sabe disso. Ela foi praticamente uma segunda mãe.
VIVI - (afiada, voz baixa e cortante) Justamente. Amor demais também mata, Marco. Ainda mais amor frustrado, disfarçado de cuidado. Ciúme é um monstro. E Lucinha (pausa) Lucinha é muito mais perigosa do que parece.
CORTA PARA:
CENA 6. BAR. INT. NOITE
SONOPLASTIA – ESCADA DO PRÉDIO – MARINA SENA E PEDRO SAMPAIO
A câmera acompanha Lucinha entrando no bar. O rosto dela está um desastre: maquiagem borrada, olhos vermelhos e fundos — um misto de raiva, desespero e exaustão. O cabelo desgrenhado parece não ter sido penteado há dias. Seu passo é errático, quase cambaleante, mas cheio de uma determinação perigosa.
Ela se senta no balcão, o corpo tenso, como uma fera encurralada, encara o garçom com olhos de fogo.
LUCINHA - (boca seca, voz rouca e cortante) Me traz uma dose da coisa mais forte que tiver.
Num só gole, ela engole a bebida, como se fosse veneno e remédio ao mesmo tempo. O copo bate vazio no balcão com força. Sem perder tempo, pede outra. A voz já começa a tremer, a mistura de ansiedade e desafio é palpável.
Ela percebe os olhares masculinos na sua direção. Sorri com uma malícia amarga, como quem sabe que perdeu o controle, mas não está nem aí.
Engole a segunda dose com urgência. O copo vazio vai ao balcão numa batida seca. Pede mais uma, agora com risada curta e nervosa.
Sem hesitar, se levanta com um movimento abrupto, desequilibrado, e caminha até um grupo de homens no canto. Sua aproximação é tão direta quanto insana.
Ela se joga no braço de um deles, o corpo meio desajeitado, meio sedutor, um equilíbrio frágil entre a loucura e a provocação.
LUCINHA - (sem cerimônia, olhando fixamente nos olhos do homem) E aí, quem vai bancar as bebidas pra essa senhora aqui?
Risos altos e descontrolados escapam de seus lábios, enquanto ela se enlaça ao tiracolo do homem. Os demais homens trocam olhares confusos — entre o divertimento, o choque e a dúvida sobre até onde aquela tempestade vai chegar.
O bar parece girar, o clima denso, quase palpável — como se o mundo de Lucinha estivesse se despedaçando diante de todos.
CORTA PARA:
CENA 7. APARTAMENTO DE LARI PACOTÃO E VIVI VENENO. SALA. INT. NOITE
SONOPLASTIA – POEMA DOS OLHOS DA AMADA - CAETANO VELOSO – INSTRUMENTAL.
A sala é pequena, iluminada com abajures e luz morna. Quadros coloridos nas paredes, almofadas exageradas, e um aroma quente de cozinha invade o ar.
Madson entra. Os cabelos presos às pressas, os ombros caídos. Carrega o peso da própria ausência.
Na cozinha americana, Nanny Who, de turbante roxo e avental com estampas tropicais, está de costas, dançando suavemente enquanto frita bolinhos numa frigideira velha.
NANNY WHO - (sem olhar, com um sorriso) Sofia, mona. Fiz bolinho de feijão. Tu curte, né?
MADSON - (voz baixa, com esforço) Curto.
Nanny vira-se devagar. Ao ver o rosto da amiga, desarma-se. Larga a colher no prato.
NANNY WHO - (se aproximando) Ai, mana... que que houve com essa tua carinha de enterro real oficial?
MADSON - (suspiro) Não é fácil assistir ao seu próprio velório. Ver as pessoas que você ama despencando.
Nanny segura a mão dela com força e carinho. Os olhos dela brilham, firmes, solidários.
NANNY WHO - (voz doce, mas afiada) Bicha, escuta a mana aqui:
Você ia ficar num rolê com aquele boy lixo, só pra agradar a sociedade?
Deus me dibre! Aquilo não era casamento, era sentença.
Madson baixa os olhos, tocada.
NANNY WHO - (agora intensa) Ninguém ia botar fé na bailarina, só no macho premiado. Fingir a morte foi o lacre. Foi teu renascimento, mana.
Isso aqui, ó (encosta a mão no peito dela) é coragem pura, não covardia.
As duas se abraçam forte. Madson fecha os olhos, encontra abrigo.
A música instrumental de Caetano cresce suavemente, como se embalasse a cicatrização de uma dor.
CORTA PARA:
CENA 8. GODOY BUENO EXPORTAÇÕES. ESCRITÓRIO DE VALQUÍRIA. INT. NOITE
SONOPLASTIA — DO I WANNA KNOW – ARCTIC MONKEYS – INSTRUMENTAL.
A penumbra do escritório é cortada por pontos de luz dourada. Cortinas pesadas, móveis em nogueira e um bar de cristal com garrafas caríssimas. A atmosfera é elegante, quase cinematográfica.
Valquíria veste um robe de seda bordô, cabelos presos com precisão cirúrgica. Ela manuseia o shaker com a frieza de quem calcula o destino de outros. Seus olhos, cobertos por um delineado felino, não piscam.
Laura, que Valquíria conhece como Selma, está sentada com as pernas cruzadas, observando. Usa um vestido preto simples, mas com postura de quem não veio apenas para beber.
Valquíria serve dois drinques. No instante em que vira de costas para Laura, suas mãos deslizam uma substância translúcida no copo da convidada. O gesto é discreto, quase coreografado.
VALQUÍRIA - (sorrindo, entregando o copo) Você sabia, Selma que gosto de você? Você é uma força da natureza. Inconveniente, desafiadora, magnética.
Laura sorri e bebe. Valquíria saboreia o momento como quem assiste a uma ópera em sua cena final.
VALQUÍRIA - (se aproximando lentamente, voz baixa, sibilante) Eu me vejo em você. Mas sou narcisista demais pra permitir que alguém como você exista perto de mim.
Pausa.
LAURA - (encarando-a, firme) Você realmente acha que o veneno que pôs na minha bebida vai fazer efeito?
Silêncio. O copo escorrega da mão de Valquíria. Seus olhos, pela primeira vez, traem surpresa. O controle absoluto rui em segundos.
A batida grave de Arctic Monkeys cresce, como um coração acelerado.
Valquíria não responde. O jogo virou.
CORTA PARA:
FIM
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