A INTRUSA
CAPÍTULO 18
UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI
CENA 1. MANSÃO DOS GODOY BUENO. GUARUJÁ. BANHEIRO. INT. DIA
Luz filtrada por venezianas invade o banheiro de mármore branco, desenhando sombras diagonais nas paredes. O espelho embaçado reflete Vivi, imóvel, com os olhos cravados na própria imagem. Ela retoca o batom com precisão mecânica, mas sua expressão denuncia o abismo interior — como se cada camada de maquiagem fosse uma tentativa de colar uma identidade estilhaçada.
Ela solta um suspiro quase inaudível. O silêncio é absoluto, cortado apenas pelo leve som de água gotejando da torneira. Um ruído sutil atrás dela: a porta se entreabre.
Daniel surge, como um fantasma do passado que se recusa a partir. Ele se aproxima lentamente, o olhar febril, os gestos contidos por um fio de autocontrole que parece prestes a arrebentar. Sem dizer uma palavra, ele a toma pela cintura e a beija com urgência.
VIVI - (se esquivando, gélida) Que diabos você tá fazendo aqui?
DANIEL - (olhar fixo) Eu não aguento mais esse silêncio, essa distância. Parece que você morreu.
VIVI - (ácida)Talvez eu tenha morrido. Ou talvez você esteja confundindo amor com obsessão.
DANIEL - (dolorido) Não fala assim comigo. Eu te conheço. Sei o que a gente tinha. A Carolina de antes jamais me trataria assim.
Ela se aproxima, a respiração próxima ao rosto dele. Seu olhar é frio, metálico.
VIVI - (amarga, cortante) Me diz, Daniel o que mais você faria por amor?
DANIEL - (inseguro) Qualquer coisa.
VIVI - Qualquer coisa?
VIVI - (ela sorri, sombria) Até me matar?
O silêncio volta a tomar o ambiente. Daniel recua levemente, como se tivesse levado um golpe.
DANIEL - (baixo) Nunca. Eu te amo. Mesmo sendo outra.
VIVI - (inclinando-se, sussurrando ao ouvido dele) Essa é a parte que deveria te assustar.
Ela passa a mão devagar pelo rosto dele, como quem se despede de um cadáver. Abre a porta e sai, deixando Daniel sozinho, atônito, diante do espelho.
A imagem dele se reflete quebrada, partida em três fragmentos no espelho embaçado — como se o próprio estivesse rachando por dentro.
CORTA PARA:
CENA 2. MANSÃO DOS GODOY BUENO. GUARUJÁ. SALA DE ESTAR. INT. DIA
O ambiente exala luxo. Tapeçarias italianas, vasos chineses, móveis de época impecáveis — e no centro da cena, sobre a mesa de centro de vidro, a bolsa de couro grifada de Valquíria. A tarde se arrasta com uma luz dourada filtrada pelas cortinas de linho, criando uma cena quase onírica, mas carregada de tensão invisível.
Laura, disfarçada sob a falsa identidade de Selma, observa ao redor com olhos treinados. Está só. Sem hesitar, abre lentamente o zíper da bolsa de Valquíria e, de maneira meticulosa, deposita dentro um revólver calibre .32 de cabo branco. Um gesto calculado, cruel, quase sensual. Como se plantasse uma orquídea envenenada.
Ao ouvir passos se aproximando, ela fecha a bolsa rapidamente e se recompõe com a maestria de uma atriz premiada. É Vivi, que todos ainda acreditam ser Carolina, quem atravessa o corredor em direção à sala. Laura a chama com doçura ensaiada.
LAURA - Carolina...
Vivi a encara, desconfiada. No mesmo instante, Laura finge um tropeço estudado e se apoia na mesa. A bolsa de Valquíria vira levemente e o revólver cai, como se o destino conspirasse por espetáculo.
Vivi se aproxima, olhos arregalados. A tensão se solidifica.
VIVI - (baixando o olhar para o chão) Isso caiu da bolsa da Valquíria?
LAURA -(fingindo escândalo) Eu acho que sim. Meu Deus, que horror!
Valquíria entra no cômodo como um felino aristocrático. Seu olhar vai do revólver à mão de Vivi.
VIVI - (erguendo a arma com firmeza) O que você pretendia com isso, Valquíria? Me matar?
Valquíria dá uma gargalhada seca e elegante, como quem ouve uma anedota de salão.
VALQUÍRIA - Você ainda não me conhece, não é? Se eu quisesse você morta, minha querida, já estaria enterrada há muito tempo. Mas isso só me daria dor de cabeça e pesadelos midiáticos. E francamente, eu odeio manchetes vulgares mais do que odeio você.
Vivi sustenta o olhar, furiosa, e sai em direção ao jardim, a passos duros.
Valquíria observa sua saída com um sorriso enigmático. Depois, encara Laura, que tenta disfarçar a ansiedade. A veterana caminha devagar até ela, felina, predadora. E então segura firme seu braço com força.
VALQUÍRIA - (baixa, gélida) Menina, eu não mato com balas. Elas são muito barulhentas. Eu gosto de mortes silenciosas. Agonizantes. (ri) Me excita.
Laura tenta manter a pose, mas seus olhos denunciam o terror.
VALQUÍRIA – (debocha) Será que eu vou me excitar vendo você morrer?
As duas trocam um olhar cortante, um duelo entre víboras travestidas de damas da alta sociedade. O clima é de puro veneno — elegante, letal e deliciosamente teatral.
CORTA PARA:
CENA 3. MANSÃO DOS GODOY BUENO. GUARUJÁ. PISCINA. EXT. DIA
O sol do meio-dia reflete nas águas turquesa da piscina com uma beleza quase cruel. Vivi, ainda abalada, está encostada na mureta de pedra, respirando com dificuldade. O impacto de encontrar a arma ainda pulsa em sua mente. Seu rosto está imóvel, mas seus olhos entregam o pânico sofisticado de quem aprendeu a sofrer em silêncio.
De repente, surge Lari Pacotão, exuberante em sua transparência holográfica, uma diva pós-moderna saída de um editorial de revista e mergulhada no melhor do pajubá.
LARI PACOTÃO – Mana, tá viva? Ou foi a cara que caiu de podre?
VIVI - (sorri com cansaço) Quase morta. Quase viva. Um estado intermediário (debocha) muito Carolina, aliás.
LARI PACOTÃO - (gargalha, depois suaviza) Tem treta, né? Eu senti. Você tá com um olhar de quem tá num baile funk cercada de ex.
VIVI -Todo mundo aqui pode ser o assassino, Lari. Mas a Lívia, aquela me olha como quem já me enterrou umas três vezes.
Lari observa Vivi com atenção. O momento se carrega de um silêncio eloquente.
LARI PACOTÃO - Então chegou a hora da verdade, mana. Só vocês duas. Tu e ela. Tá na hora de tirar a teima.
VIVI - (olha no fundo dos olhos de Lari) Eu sei. Mas antes tem uma coisa que Carolina nunca deixaria de fazer. Uma tradição. O Parasailing.
LARI PACOTÃO - (torcendo o nariz) Parasailing, gata? Tem noção de como aquilo é? Cordinha no cu e motor no mar?
VIVI -(séria, quase sombria) É mais perigoso não fazer. Era uma das poucas coisas que dava prazer real à Carolina. Se eu recusar, as pessoas vão desconfiar. E a gente não pode se dar a esse luxo.
As duas se encaram. O barulho das ondas do mar ao fundo mistura-se ao silêncio da tensão. Lari bebe o último gole do espumante. Vivi recoloca os óculos escuros. O sol brilha, mas tudo é sombra.
A imagem congela por um instante nos rostos das duas — intensas, aliadas, e ainda assim, desconhecidas uma para a outra.
Uma amizade costurada com medo e segredos.
No ar, paira a pergunta: até onde vai o teatro?
CORTA PARA:
CENA 4. MANSÃO DOS GODOY BUENO. PÍER. EXT. DIA
SONOPLASTIA – ANOTHER DAY IN PARADISE - CAT VS CAT & JOYNER
A trilha soa melancólica, cortando o glamour do cenário com uma vibração sombria.
O sol derrama seu ouro cruel sobre o píer privativo da mansão. Tudo ali parece perfeito demais para ser seguro.
No centro da imagem, está disposto com precisão o equipamento de parasailing: colete, cordas, arnês, tudo impecável, como em um ritual. A brisa marinha embala as faixas de tecido colorido do paraquedas, que tremulam como bandeiras prestes a tombar.
A câmera fecha num plano apertado —
uma mão enluvada, precisa, masculina ou feminina (não sabemos) — surge de trás do jet ski ancorado.
A mão segura uma faca pequena, mas afiada. Com movimentos silenciosos e calculados, a lâmina desgasta sutilmente as alças principais do equipamento.
Não é um corte bruto. É arte. É premeditação.
O tipo de sabotagem que mata em câmera lenta.
A câmera se aproxima do tecido sendo desfiado...
A tensão aumenta, o som da faca contra a cinta se mistura com a música e o ruído do mar.
CORTA PARA:
CENA 5. MANSÃO DOS GODOY BUENO. GUARUJÁ. SALA DE ESTAR. INT. DIA
A sala está vazia, mas carregada de ecos do que acabou de acontecer. A luz entra filtrada pelas cortinas de linho cru.
Laura, ainda ofegante, recompõe-se diante de um espelho lateral.
O batom retoque, o olhar calculado. Ela sorri para si mesma. Mas não está sozinha.
Da porta entreaberta, Lucinha surge devagar.
Braços cruzados, os olhos semicerrados como quem já viu essa peça antes — e não gostou do final.
LUCINHA - (voz cortante) Sabe que eu vi tudo, né?
Laura se vira lentamente, ainda mantendo o teatro da inocência.
LAURA - (fingindo surpresa) Viu o quê, querida? Está me parecendo um pouco confusa.
LUCINHA - (aproxima-se, firme) Não me chama de confusa. Eu vi você colocando a arma na bolsa da Valquíria. Eu vi você fingindo tropeçar. Eu vi a sua cara quando a Carolina achou aquela desgraça.
Laura desvia o olhar, mas não responde.
LUCINHA - (aperta o braço dela) Se você machucar um fio de cabelo da Carolina eu acabo com você. (ríspida, ameaçadora) Eu te mato, Selma. Do jeitinho que você nem imagina. (sussurra, ácida) E eu sei matar bonito.
Laura tenta soltar o braço, mas Lucinha só larga quando quer.
Ela fala com voz baixa, cheia de tensão, como se mordesse cada sílaba com desprezo e charme. Lucinha sai, como uma sombra elegante e letal.
LAURA - (sussurrando para si, sarcástica) Mais uma pra manipular. Isso tá ficando divertido.
Câmera fecha no rosto de Laura. O sorriso dela é sutil e perverso. O jogo está só começando.
CORTA PARA.
CENA 6. MANSÃO DOS GODOY BUENO. PÍER. EXT. DIA
SONOPLASTIA – TOKITÔ – GAIA, MARINA SENA E NENNY
O píer da mansão está em ebulição. O sol estoura em tons de ouro sobre a superfície espelhada do mar, e os convidados parecem saídos de uma campanha de moda com orçamento ilimitado. Chapéus exagerados, tecidos translúcidos, pulseiras brilhantes como algemas de luxo. Tudo é pose. Tudo é performance.
A elite decadente da trama está toda ali, esperando o espetáculo: Valquíria, fria como mármore importado; Marco Aurélio, suando nervoso em linho italiano; Daniel, olhos cravados em Carolina com a dor dos que sabem demais; Lucinha, atenta como uma pantera; Rubinho e Patrícia, bêbados de champanhe e falsidade; Lívia, Carlos, Laura (ainda fingindo ser Selma), Lari Pacotão, Armand, Rudolfe, Madson — todos socialmente agrupados como peças num tabuleiro prestes a virar.
Vivi, trajando o figurino que Carolina usaria num de seus momentos de glória, se posiciona. O equipamento de parasailing está preso ao seu corpo como uma armadura improvável. Ela sorri, mas é o sorriso de alguém que sabe que está se jogando do alto sem rede de proteção — um número de circo mortal.
Marco Aurélio se aproxima, a voz trêmula, como se pressentisse a tragédia.
MARCO AURÉLIO — Você tem certeza disso?
VIVI — A Carolina teria.
O barco arranca. A corda se estica. Vivi é erguida ao céu como uma heroína grega lançada aos deuses — ou talvez aos lobos.
Lá do alto, o mundo parece pequeno e fácil. Vivi sorri, dança no ar, faz manobras desajeitadas, improvisando uma segurança que não possui. O público no píer assiste em suspense, fingindo desprezo, sentindo inveja.
Close em Valquíria, que observa como uma vilã clássica dos anos 80.
Close em Laura, com os lábios curvados num quase-sorriso — algo entre triunfo e medo.
Close em Lívia, que observa Vivi no ar com um olhar gélido e fixo — uma esfinge com gloss nude e um segredo irreversível.
Close em Lari Pacotão, que morde os lábios, sem saber se vibra ou reza.
De repente, algo falha.
Uma alça do equipamento cede. Um som agudo rasga o ar como uma nota dissonante. O barco reduz a velocidade bruscamente. Vivi perde o eixo. O pano se solta. O paraquedas se contorce como um animal ferido.
Vivi despenca.
É um momento de silêncio ensurdecedor. Os corpos correm, os gritos vêm abafados pela batida eletrônica que insiste em tocar. O mundo se move em câmera lenta. Vivi atinge a água como uma boneca largada por uma criança mimada. Seu corpo boia, inerte, envolto em véus e espuma. Um quadro melancólico e belo.
MARCO AURÉLIO - (em desespero) CAROLINA?
Todos se aproximam, mas ninguém mergulha. O medo paralisa. O escândalo paira no ar como uma nuvem espessa.
Close no rosto de Vivi, olhos fechados, os cílios longos como penas molhadas. Não há resposta. Apenas o som das ondas e o peso de tudo que ainda está por vir.
CORTA PARA:
FIM
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