A INTRUSA - CAPÍTULO 34 - (02/10/2025)

      

A INTRUSA

CAPÍTULO 34

UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI


CENA 1. MANSÃO DOS GODOY BUENO. SALA DE ESTAR. INT. DIA

A luz do fim de manhã penetra pelos vitrais art déco da mansão, tingindo o chão de mármore com tons dourados e rubros — como se o sangue do passado insistisse em se infiltrar no presente. A vitrola, esquecida num canto, toca um bolero instrumental ao longe, quase como um suspiro abafado de tragédia.

Aurora, pequena e absorta, brinca no tapete com peças de LEGO. Monta um castelo disforme com dedicação obsessiva, apenas para destruí-lo segundos depois com as mãos impacientes. Um gesto inocente. Ou não.

Vivi, ainda sob o disfarce de Carolina, ajusta a alça da bolsa com tensão discreta. Está diante de Patrícia, que parece engolir a própria saliva com dificuldade. Os olhos de ambas brilham com cumplicidade — e medo. Patrícia arruma uma mecha do cabelo, quase um tique nervoso.

VIVI (baixo, firme) Te encontro às onze. No apartamento da Lucinha.

PATRÍCIA - (sem conseguir disfarçar o nervosismo) Dá tempo de baixar tudo da nuvem, Já consegui o e-mail. E a senha.

Vivi segura o ombro de Patrícia. É um toque firme, quase fraternal, mas carregado de urgência.

VIVI - (sussurrando) Isso pode ser a chave. Pra entender quem matou a Lucinha, o Rubinho, a Lívia.

Um silêncio denso cai entre elas. E é nesse instante que a câmera nos conduz até Laura, que todos conhecem como Selma. Sentada numa poltrona vintage, como uma madona corrompida, ela acaricia lentamente os cabelos de Aurora, que está sentada em seu colo. O gesto é delicado demais para ser honesto.

Seu olhar, que à primeira vista parece sereno, carrega uma sombra viva. Algo ferve por trás do sorriso. Um rancor antigo. Um plano em construção.

Aurora levanta uma peça vermelha de LEGO e diz com doçura:

AURORA - Olha, um castelo!

Laura sorri. Um sorriso sem dentes. Um sorriso que não alcança os olhos. Depois pigarreia como se anunciasse uma peça de teatro macabra.

LAURA - (voz baixa, zombeteira) Olha, um castelo cheio de rainhas.
(uma pausa venenosa) Pena que nesse jogo, minha flor,  nenhuma sobrevive até o fim.

Ela solta uma risada fina, descompassada, que flutua no ar como um zumbido incômodo. E então, com a delicadeza de uma noiva em luto, se ergue e sobe a escada devagar, cada passo como um presságio.

Aurora observa a escada com curiosidade, mas logo volta ao seu castelo desmontado. Vivi e Patrícia trocam um olhar silencioso, como quem acaba de testemunhar o diabo fazendo carinho numa criança.

CORTA PARA:

 

CENA 2. DELEGACIA. SALA DE REUNIÕES. INT. DIA

 

A luz fria das lâmpadas de néon empresta à sala um ar de cansaço. Clara está diante de um grande quadro branco, rabiscado com conexões vermelhas e fotos coladas com fita adesiva: Rubinho, Lívia e Lucinha, com setas e observações escritas à mão. Há uma imagem central, de Laura, identificada ainda como Selma, ao lado de um ponto de interrogação.

Clara está de pé, braços cruzados, olhos fixos no quadro como se tentasse arrancar dele uma confissão silenciosa.

CLARA - (sem se virar) Vamos lá, atualizem a novela.

POLICIAL 1 - O enredo da Selma Dumont é digno de Emmy, doutora. A identidade é perfeita, mas como todo bom esquema de corrupção, deixa rastros.

POLICIAL 2 - Tudo sobre ela foi plantado na internet há menos de dois meses. Até o diploma de psicologia é mais falso que anúncio de Black Friday.

POLICIAL 3 -Invadiram o sistema da PUC-SP e criaram a ficha como se ela tivesse se formado lá. É tipo o triplex do Guarujá: todo mundo sabe, todo mundo viu, mas ninguém consegue provar.

Clara sorri com amargura, ajeitando os punhos da camisa branca como quem se prepara para uma cirurgia — ou uma vingança.

CLARA - (sibilando) É sempre assim, o crime muda de rosto, de nome, de endereço. Mas o ego sempre deixa a porta entreaberta.

Ela se volta para os policiais. A tensão é discreta, elegante — o silêncio cúmplice de quem está à beira de algo.

CLARA - E a empregada dos Montesinos?

POLICIAL 1 - Já está com o retratista. Ele saiu há pouco pra mansão.

Clara se aproxima do quadro, encara a imagem de “Selma”, a toca com os dedos, quase como um gesto de carinho doentio — ou desprezo contido.

CLARA - (baixo, carregada de subtexto) Agora, meu amor. Agora eu te pego.

Ela sorri de leve. Um sorriso frio, técnico. Uma ponta de batom num lenço branco.

CORTA PARA:

 

CENA 3. MANSÃO DOS GODOY BUENO. SALA DE JANTAR. INT. DIA

 

SONOPLASTIA – "WINTERSUN" – BOND QUARTET

 

O ambiente é luxuoso, elegante, porém pesado de tensão. A mesa de jantar reluz com talheres de prata e taças de cristal, mas o ar está carregado, quase palpável em sua inquietação. Daniel, Valquíria, Vivi (que todos acreditam ser Carolina), Marco Aurélio, Armand e Lari Pacotão sentam-se em silêncio solene. O único som além da música refinada é o tilintar contido das facas nos pratos.

Isabella entra triunfante, como uma diva que já venceu antes do ato começar. Seu vestido extravagante combina com a expressão de prazer quase teatral que domina seu rosto.

ISABELLA - (com voz firme e um sorriso cruel) A pesar de la ineficiencia de la policía para resolver asesinatos, hay una cosa que sé hacer mejor que nadie: exponer secretos. Y hoy será un show.

Valquíria fecha os olhos, visivelmente incomodada.

VALQUIRIA - Corta isso, Isabella. Já temos problemas demais.

ISABELLA - Vas a agradecerme, cariño. És sobre tu difunto esposo, José Luiz y su bastardo. Armand.

Armand quase deixa o talher cair, congelado.

ARMAND - ¿Mi padre? ¿No era un modelo?

Isabella sorri amarga.

ISABELLA - Era un modelo de corrupción. Y su padre José Luiz, tuvo un affaire con mi hija, Maristela. Ustedes jugaban en el mismo jardín, mi amor. Y fíjense: también comparten ADN.

Valquíria ri, debochada, empurrando a taça de vinho.

VALQUIRIA - José Luiz tem dois filhos comigo. Daniel e Marco Aurélio. Fim da história.

ISABELLA - Ay, Valquiria. Pensaste que estaba jugando? Hice mis pruebas.

(INSERT)

MANSÃO DOS GODOY BUENO. SALA DE ESTAR. INT. NOITE

 

Isabella observa Daniel subindo as escadas, seus olhos brilham como os de uma caçadora. Do bolso do robe, tira uma luva cirúrgica, calça-a com precisão cirúrgica. Caminha até a mesa, recolhe o copo que Daniel usou, coloca-o dentro de um saco plástico transparente e o lacra, como quem sela o destino de uma família.

(FIM DO INSERT)

ISABELLA - Comparé con el ADN de Armand. Resultado: incompatibilidad.

Valquíria ajeita-se na cadeira, vitoriosa.

VALQUIRIA - Então sua teoria morreu. José Luiz não é pai do Armand. Fim da ópera.

ISABELLA -(sorrindo como quem já prepara o segundo ato) Amadora. Hice lo mismo con Marco Aurélio.

 

(INSERT 2)

 

MANSÃO DOS GODOY BUENO. SUÍTE DE MARCO AURÉLIO E CAROLINA. BANHEIRO. INT. NOITE

 

Isabella, ainda com o robe e a luva, entra silenciosa como um espectro no banheiro da suíte de Marco Aurélio. Pega sua escova de dentes, cheira como se fosse perfume, e sorri.

(FIM DO INSERT)

Isabella joga os papéis na mesa, como cartas de um royal flush.

ISABELLA - Compatibilidad total. José Luiz vive en Marco Aurélio. Y tú, Daniel, solo eres un error de cálculo.

Silêncio cortante. Daniel olha para Valquíria como se visse um estranho.

DANIEL - Quer dizer que sou filho de quem?

VALQUIRIA - Do meu amante, Serpentinha. Seu verdadeiro pai.

Lari Pacotão arregala os olhos.

LARI PACOTÃO - Monamu, Valquíria trepou com a própria espécie! Uma víbora pariu outra!

Daniel levanta-se abruptamente, quase derrubando a cadeira. Seu rosto revela nojo, confusão e mágoa.

DANIEL - Preciso respirar.

Vivi tenta segui-lo com o olhar, mas Marco Aurélio segura sua mão discretamente.

Valquíria permanece sentada, imperturbável, como uma imperatriz no fim de seu baile. Isabella a encara com o sorriso vitorioso de quem venceu o primeiro round. O duelo das duas é uma dança cruel de mulheres sob cristais e ressentimentos.

CORTA PARA:

CENA 4. HOSPITAL ALBERT EINSTEIN. ALA PSIQUIÁTRICA. QUARTO DE OLÍVIA. INT. DIA

 

SONOPLASTIA — “LOST CAUSE” – BILLIE EILISH – INSTRUMENTAL


A canção sussurra pelas paredes como se brotasse do inconsciente de Olívia. É um lamento, um eco que insiste em existir, mesmo quando ninguém mais escuta.

O quarto é um retrato de assepsia e solidão. As persianas filtram uma luz baça, quase cruel. Olívia está deitada na cama, olhos arregalados, perdidos em algum ponto entre o passado e o abismo.

Ela brinca com os fios do monitor cardíaco como quem borda um segredo. Os dedos são finos, quase elegantes — mesmo no delírio, há algo de aristocrático nela. O bip da máquina acelera. Depois cessa.

O alarme do monitor dispara.

Uma enfermeira jovem entra às pressas, aflita:

ENFERMEIRA - Senhora Olivia! Tudo bem? A senhora...

Antes que termine a frase, Olívia salta da cama com uma energia desconcertante. Os olhos brilham de euforia.

OLÍVIA - (rindo, rouca) Tudo bem? Eu tô ótima, querida. Melhor que ontem. Pior que amanhã.

Ela avança com rapidez e tira, com um gesto preciso, o cartão de acesso do bolso da enfermeira.

OLÍVIA - (acenando com o cartão) Roubar cartão de enfermeira. Isso sim é terapia ocupacional!

A enfermeira tenta segurá-la, mas Olívia já está na porta.

OLÍVIA - Não me espera pro jantar, tá? (grita) Aliás, cancela o Rivotril. Hoje eu sou a estrela!

Ela sai, rindo como se dançasse um balé interno só dela.

CORTA PARA:

 

CENA 5. CORREDORES DO HOSPITAL. INT. DIA

 

Os corredores da ala psiquiátrica, antes silenciosos, agora vibram em tensão. Olívia caminha com altivez, descalça, vestindo o casaco de um jaleco que pegou do cabide como se fosse um manto.

A sonoplastia continua. Agora mais forte, como se pulsasse com o coração dela, guiando-a.

Duas enfermeiras passam correndo, em direção contrária. Ela se esconde atrás de uma divisória de acrílico e observa, fascinada.

OLÍVIA - (sussurrando para si, teatral) Uma mulher fugindo do próprio destino ou correndo pra ele?

Ela prossegue em direção à saída de emergência. No reflexo do vidro, vê a si mesma por um instante.

OLÍVIA - (encarando o reflexo, firme) Vivi tá viva. A outra também. (sorri) Mas quem é que vai se salvar no fim da peça?

Ela desaparece ao fundo do corredor como um espectro. O hospital, por um instante, parece menor do que a loucura que escapou de dentro dele.

CORTA PARA:

 

CENA 6. PARATY. ANOITECER. EXT.

 

SONOPLASTIA — “NÃO NEGUE TERNURA” – ZÉ MANOEL FEAT. LUEDJI LUNA

 

O céu de Paraty mistura tons de âmbar e lilás, enquanto a cidade histórica respira seu romantismo melancólico. A trilha, suave e cheia de saudade, embala o caminhar de Marcos e Madson pelas pedras irregulares das ruas do centro. Eles andam de mãos dadas, rindo, se encostando de leve. Há cumplicidade e frescor — como se o amor estivesse nascendo pela primeira vez.

Madson, com uma echarpe leve nos ombros, aponta os casarões antigos. Marcos, fascinado, observa mais ela do que a arquitetura.

Atrás deles, envolto na penumbra das sacadas coloniais, Rudolfe os observa. Os olhos fixos, a expressão carregada. Como uma sombra que se move sem ser notada, ele os segue — silencioso, ameaçador, com a fúria de um cisne ferido.

Ele sussurra para si mesmo, entre os dentes, com sotaque francês carregado:

RUDOLFE (sussurrando)- Comme le cygne noir, gracieux, mais né pour mourir. Et elle mourra."

A analogia com O Lago dos Cisnes não é à toa. Madson sempre foi seu cisne — o cisne branco de sua imaginação, agora, traidora, se transmutando no cisne negro da realidade. Ele a vê rindo, sendo feliz com outro homem, e aquilo é insuportável.

O carro de Marcos e Madson estaciona numa estrada de pedras mais afastada. Eles descem animados, quase adolescentes. Ao fundo, uma mansão colonial isolada, envolta por palmeiras. O refúgio de um novo amor.

Rudolfe permanece no carro, seu rosto iluminado apenas pelo letreiro da farmácia distante. Ele retira do espelho retrovisor uma boneca negra de bailarina, pendurada por um fio. Seus dedos tremem. Com um estalo seco, ele a quebra no joelho. A cabeça da boneca rola pelo painel do carro.

É um gesto simbólico. Um presságio.

Ele respira fundo e sussurra, com frieza:

RUDOLFE Ce n'est que le début.

O amor deles se firma, mas a morte já está à espreita.

CORTA PARA:

 

CENA 7. APARTAMENTO DE LUCINHA. INT. NOITE

 

SONOPLASTIA — “DO I WANNA KNOW?” – ARCTIC MONKEYS – INSTRUMENTAL

 

A porta se abre com um estalo seco. Laura entra, os cabelos ainda desalinhados da emboscada que escapou horas antes. A expressão é de uma calma letal, como se cada passo fosse parte de uma dança ensaiada com a morte. Ela fecha a porta devagar e observa o ambiente — olhos de águia, ouvidos atentos. Tudo parece quieto demais. Silêncio que cheira a emboscada.

Laura desliza até a cozinha, abre o registro de gás com um giro meticuloso e perverso. O chiado do gás se espalha no ar como uma promessa de tragédia. Ela respira fundo, quase sentindo prazer na antecipação. Em seguida, segue em passos felinos até o quarto de Patrícia.

Começa a vasculhar. As mãos tiram roupas das gavetas, jogam papéis no chão, derrubam perfumes e cartas antigas. Na escrivaninha, ela remexe como quem procura provas, segredos, ou talvez apenas controle.

Até que para, tensa. A mão toca o trinco da porta do closet.

Laura abre. Uma pausa.

De dentro, como num espetáculo grotesco e brilhante, surgem Lari Pacotão, Patrícia e Vivi — que ela acredita ser Carolina. A cena parece saída de um filme noir bizarro, um confronto entre farsas prestes a explodir.

LARI — (sorrindo com deboche) E aí, Selminha, perdeu alguma coisa, mona?

PATRÍCIA — Tá vasculhando a casa da morta agora? Que chique.

VIVI — A gente te esperava na Broadway, não no armário. Mas tudo bem, o show vai começar.

Laura, pega no flagra, engole a raiva com um sorriso falso e venenoso. O gás continua a escapar da cozinha. A tensão, como o ar, está prestes a explodir.

CORTA PARA: 

FIM

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