A INTRUSA - CAPÍTULO 37 - (06/10/2025)

         

A INTRUSA

CAPÍTULO 37

UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI


CENA 1. MANSÃO DOS GODOY BUENO. FACHADA. JARDIM. DIA

 

A manhã em São Paulo pesa, úmida, abafada. Atrás do pomar, o chão revolvido revela um segredo que há muito tempo lutava para ser enterrado de vez. Um grupo de policiais em trajes civis escava com determinação. A terra, escura e densa, se mistura com o cheiro ácido da decomposição.

Um saco preto já foi parcialmente desenterrado. Próximo à vala, Clara observa tudo com os braços cruzados, mas o olhar afiado.

POLICIAL 1 - (sem tirar os olhos da escavação) Os Godoy Bueno são mais perigosos pro mundo que o Alexandre de Moraes pros bolsaristas.

POLICIAL 2 - (abrindo um saco de evidência) Essa família gosta tanto de gente viva quanto o Trump de imigrantes.

POLICIAL 3 - (ao fundo, zombeteiro) Aqui, a vida vale menos que a moeda grega antes do euro. Esses Godoy Bueno vão ter que encontrar um euro pra salvá-los e com juros.

Clara se aproxima da cova, segura a emoção. Os policiais continuam com o humor ácido, mas os olhos estão atentos.

CLARA - (séria) Me atualizem. Agora.

POLICIAL 1 - (chegando com uma prancheta) Pelo estado de decomposição, tá morta há, no mínimo, dois meses.

POLICIAL 2 - Tentamos tirar impressões da mão,  mas nada. Muito comprometido.

POLICIAL 3 - (ajoelhado, limpa um pouco da terra com luvas) Meu Deus (olha para Clara) Delegada. acho que temos um rosto. Ou o que sobrou dele.

A câmera se aproxima. A cova revela, em meio à lama, um rosto de feições corroídas, mas claramente femininas. Os traços — mesmo cobertos de morte — lembram os de Carolina Godoy Bueno.

Clara estremece.

CLARA - (espantada, quase em sussurro) Isso é impossível. Eu acabei de ver a Carolina.

POLICIAL 1 - (brinca, com humor mórbido) Ou a gente tá num dramalhão mexicano daquelas gêmeas: uma viva, uma morta.

Clara fixa os olhos no cadáver. Um silêncio sepulcral toma conta da cena. A trilha começa a pulsar, baixa, tensa.

CLARA - (para si mesma) Resta saber quem é essa que morreu.

Fade out. A atmosfera pesa com um mistério que volta a se agigantar.

 

CORTA PARA:

 

CENA 2. SÃO PAULO. EXT. DIA

 

SONOPLASTIA — “ANOTHER DAY IN PARADISE” – CAT VS CAT & JOYNER – INSTRUMENTAL

 

A câmera plana por sobre São Paulo, cortando os edifícios como navalhas afiadas de concreto. O céu está limpo demais para uma cidade suja de segredos.

Um carro preto importado dobra a esquina silenciosamente e para diante da mansão dos Godoy Bueno, nos Jardins. O portão se abre como se reconhecesse seus donos. Do carro, descem Marco Aurélio e Vivi — que todos ainda acreditam ser Carolina. Em silêncio, com gestos contidos.

Aurora vem entre eles, envolta em um cobertor caro demais para esconder sua expressão enigmática. Seus olhos miram o nada, mas carregam o mundo. Não se sabe se o que ela viu foi um pesadelo — ou uma memória.

A família entra em casa sem trocar palavras. Apenas o som da trilha embala o desconforto e a dúvida.

A cidade segue indiferente.
A câmera sobe novamente, revelando a mansão como um castelo sitiado por verdades não ditas.

 

CORTA PARA:

 

CENA 3. MANSÃO DOS MONTESINOS. SALA DE ESTAR. INT. DIA

 

SONOPLASTIA — “INSENSATEZ” – TOM JOBIM – INSTRUMENTAL

 

A câmera nos conduz por um travelling lento da porta de entrada até Cecília e Carlos, que entram com passos contidos, vestindo preto. O luto não está apenas na roupa, mas em cada gesto. O silêncio da casa parece pesar sobre os ombros dos dois, como se as paredes também estivessem de luto.

Cecília retira os óculos escuros com um movimento brusco, quase enraivecido, como quem quer enxergar o caos com clareza.

CECÍLIA - (áspida, amarga) Enterrar Lívia no meio desse inferno que Carolina tá vivendo não foi uma boa ideia. Foi cruel.

CARLOS - (suspira, exausto) A gente precisava encerrar esse capítulo, Cecília. Pelo menos um. Agora a gente precisa olhar pras filhas que ainda estão vivas.

Ela vira o rosto, ofendida com o uso da palavra.

CECÍLIA - (feroz) Você está mesmo se referindo à Carolina? Você não ousaria, não depois de tudo o que ela passou correndo atrás daquela mulher, daquela Olivia.

Carlos respira fundo, como quem tenta manter a compostura diante do abismo.

CARLOS - (baixo, firme) Eu tô falando da Olivia, sim. A gente falhou com ela no passado, Cecília. Fechamos os olhos pros sinais. Fingimos que era fase, que ia passar. E agora ela fugiu do hospital.

CECÍLIA - (engole em seco) Ela era sua filha também, não era? A sua preferida.

CARLOS - (se aproxima, quebrado) Ela é nossa filha. Ainda é. E a gente não vai cometer o mesmo erro duas vezes.

Ele a abraça. Cecília resiste por um segundo, depois cede. Chora em silêncio, o rosto escondido no peito de Carlos.

A câmera gira em volta dos dois lentamente, como se registrasse o luto não apenas por Lívia, mas por tudo o que foi perdido — e que talvez nunca volte.

CORTE PARA:

 

CENA 4. MANSÃO DOS GODOY BUENO. SUÍTE DE MARCO AURÉLIO E CAROLINA. INT. DIA

 

SONOPLASTIA — “AMOR, MEU GRANDE AMOR” – ANGELA RO RO

 

A luz da manhã invade o quarto com suavidade. O lençol desalinhado, a colcha escorregada pelo chão, o perfume da noite anterior ainda parece pairar no ar.

Vivi, vestindo apenas um roupão, está de costas, os cabelos úmidos sendo secados com uma toalha branca. Seus movimentos são lentos, quase meditativos. Há uma serenidade melancólica em seu rosto.

A porta se abre com brusquidão. Daniel entra, os olhos vermelhos, o corpo tenso. Ele a vê e vai em sua direção sem hesitar.

DANIEL - (abraçando-a, desesperado) Você tá bem? Me perdoa, por tudo. Por não ter estado aqui. Por não ter protegido você nem a Aurora.

Vivi o envolve num abraço, com cuidado. Há ternura no gesto, mas também uma contenção clara.

VIVI -Daniel, a gente tá passando por muita coisa. Eu e Aurora vamos ficar bem, sim.

Ela o guia até a beirada da cama e faz sinal para que ele se sente. Ela se senta ao lado, encara-o com doçura e firmeza.

VIVI - Você sabe o quanto eu tenho carinho por você. A gente viveu muita coisa. Mas agora agora você tá redescobrindo quem é. Descobriu que não é filho de José Luiz. Isso muda tudo. Eu quero te ajudar. Quero estar do seu lado, mas como amiga.

Daniel baixa a cabeça. O choro começa contido, depois o engole.

DANIEL - Você tá com ele, né?

VIVI - (simples, serena) Estou. Marco Aurélio é meu marido. É com ele que eu quero ficar. É quem escolhi.

Eles se abraçam de novo. Um gesto limpo, digno. A dor de Daniel é silenciosa, mas profunda.

A câmera desliza suavemente, revelando Marco Aurélio do outro lado da porta do banheiro entreaberta. Ele escuta tudo, sem expressão, mas seus olhos brilham discretamente. Há alívio. Há vitória. Há amor.

CORTA PARA:

 

CENA 5. PARATY. EXT. DIA

 

SONOPLASTIA – “NÃO NEGUE TERNURA” (FEAT. LUEDJI LUNA) – ZÉ MANOEL

 

O céu está límpido, de um azul profundo, e as ruas de Paraty exalam a poesia de uma cidade parada no tempo. O sol reflete nas pedras do calçamento, criando pequenos espelhos que dançam nos pés dos passantes. A câmera passeia pelos casarões coloniais, atravessa os arcos de flores que enfeitam a entrada de um teatro charmoso — o Teatro Espaço, discreto e acolhedor.

Madson e Marcos caminham de mãos dadas, rindo de algo íntimo, partilhando uma leveza que parece rara nos tempos recentes. Madson veste uma bata branca com estampas florais, o rosto iluminado, como se tivesse voltado à vida. Marcos está apaixonado, quase bobo — seus olhos não desgrudam dela.

MADSON - (olhando para o céu) Hoje nem parece que o mundo lá fora existe. Aqui tudo é paz...

MARCOS - Porque o mundo que eu quero é esse — onde você existe.

Eles trocam um beijo rápido, sem pressa, como quem tem tempo.

Ao entrarem no Teatro Espaço, a penumbra os engole suavemente. A câmera, porém, não os acompanha. Ela fica para trás. E então vemos. Um vulto. Um homem elegante, de terno bege claro e expressão cerrada. Rudolfe.

Ele surge no quadro como uma sombra que o sol não consegue apagar. Os olhos varrem o entorno com ansiedade. Ao longe, ele os vê entrando. Seus passos seguem os deles. Mas com outra intensidade. Outro propósito.

A música continua tocando, doce, mas agora é quase um contraponto trágico.

A leveza da paixão prestes a colidir com o peso da verdade.

CORTA PARA:

 

CENA 6. TEATRO ESPAÇO. PALCO. INT. DIA

 

A luz do sol atravessa as janelas altas, projetando feixes dourados entre a poeira suspensa. Cada raio de luz desenha sobre o palco um quadro fantasmagórico de glória esquecida. As cortinas, imóveis, parecem guardar segredos antigos, e o chão gasto carrega marcas de danças que o tempo tentou apagar.

Madson entra devagar, como quem invade o próprio passado. Os olhos marejados denunciam o peso da lembrança. O palco é uma catedral sagrada — e ela é a última crente.

MARCOS — (sorrindo, gentil) Fiz uma surpresa. Não é o palco do Municipal, eu sei, mas talvez possa matar um pouco da saudade.

Ela se vira, emocionada. Os olhos dizem tudo que a voz não ousa dizer. Um beijo suave sela o reencontro — não só com Marcos, mas com a si mesma.

Ela se aproxima do centro do palco, e ali, ao lado de um refletor empoeirado, repousam as sapatilhas. Como relíquias à espera de um novo ritual.

Ela as calça. Com reverência. Com saudade.

Mas o momento sagrado se desfaz num segundo de dor aguda.

MADSON — (berrando) AHHHHH!

Ela arranca as sapatilhas num gesto instintivo, jogando-se ao chão. Fragmentos de vidro tilintam no palco como risos de um destino sádico.

MARCOS — (assustado) Meu Deus. O que é isso?

Madson não responde. O olhar perdido no nada. Um som seco ecoa das coxias. Algo entre um passo e uma sentença.

SONOPLASTIA – “SWAN LAKE, OP. 20 – ACT II, PART 1” – TCHAIKOVSKY

Rudolfe surge das sombras. Não caminha — desfila. O casaco preto arrasta-se como uma capa de tragédia. A bengala de prata, impecável. O rosto é o de um deus grego ferido de orgulho.

RUDOLFE — (duro, frio) Eu não te ensinei nada, Madson? Como se coloca uma sapatilha sem olhar dentro?

Ela congela. O tempo volta, cruel. O medo ganha rosto.

MARCOS — (indo em sua direção) Quem é você?

Rudolfe ergue a bengala. Com um gesto seco, retira o cabo e revela a lâmina oculta — algo entre uma relíquia e uma maldição.

Num só movimento, ele atravessa Marcos com precisão monstruosa. O som é seco. O sangue, imediato.

MADSON — (grita, desesperada) MARCOOOOOS!

Rudolfe sorri com o sadismo de quem acredita que está escrevendo o final da história.

RUDOLFE — Você fugiu, fingiu estar morta, mas ninguém me engana, Madson. Ninguém.

Ele a agarra com as duas mãos. Os dedos ao redor do pescoço. Levanta-a do chão, como uma bailarina macabra num último ato suspenso.

Madson se debate. Os pés procuram o chão que não vem.

MADSON — (sufocada, rouca, mas firme) Eu preferia morrer de verdade do que passar mais um dia sendo sua mulher.

A frase o fere mais do que qualquer lâmina. Ele aperta com mais força.

Mas então — um espasmo. Rudolfe treme. Baixa o olhar. A ponta da bengala está agora cravada em seu peito. Sangue escorre pelo tecido caro.

Ele cambaleia. Olha para Madson. Depois para Marcos — ainda vivo, arfando, ajoelhado, segurando o punho da arma improvisada.

MARCOS — (voz fraca) Sabia que ainda dava pra um último ato...

Rudolfe cai com um baque surdo. A poeira sobe ao redor como cortina de fim.

Madson se atira ao chão ao lado de Marcos. Pressiona a ferida, desesperada.

MADSON — (quase sussurrando) Não me deixa, por favor,  você me tirou da escuridão.

A música se confunde com o choro. O sangue tinge o palco como tinta sobre tela. O Teatro Espaço volta a ser altar — não de arte, mas de redenção e tragédia.

CORTA PARA:

 

CENA 7. MANSÃO DOS GODOY BUENO. ESCRITÓRIO. INT. DIA

 

SONOPLASTIA – “LES FILLES DÉSIR” – VENDREDI SUR MER

 

O escritório de Valquíria é um templo de luxo gélido, com móveis de madeira escura e livros que nunca foram abertos. Isabella está à mesa, falando ao telefone, luvas de couro cinza, cabelo impecável. A luz entra em feixes oblíquos, acentuando a atmosfera opressiva.

ISABELLA — (com voz cortante) Todo tiene que salir perfecto. Que parezca natural, sin fisuras. Quiero que crean esas voces, que se traguen la mentira entera. Y tú, claro, intercepta cada llamada de esa tal Lari Pacotão. No quiero sorpresas, ¿entendido? (pausa, seca) Buen trabajo. Hasta luego.

Desliga com frieza, gira o uísque no copo, bebe como se fosse veneno, esbanjando controle e desprezo — uma verdadeira rainha do veneno.

A porta se abre com um estrondo seco. Lari Pacotão entra como um furacão: vestido justo, salto alto, atitude de quem chegou pra mandar no pedaço. O clima corta como navalha.

LARI — (cheia de sarcasmo) Ai, amiga, me chamou pra essa reunião de tribunal? Vem dizer que minha cova ainda tá longe, que eu não morri no último episódio?

ISABELLA — (afiada) Quiero saber cómo es que sigues con vida después de haber estado a un paso del abismo con Carolina y Marco Aurélio. Corriste, esquivaste balas, y sin embargo, aquí estás... montada, intacta.

LARI — (rindo, com desdém) Tô igual barata, miga: pisa, pisa, pisa... que eu sigo inteira, reluzente, e com meu brilho na cara.

ISABELLA — (gelada, ameaçadora) Deja el drama. Yo te ofrezco una salida elegante. Una vida cómoda, con dinero en mano. Pero eso sí, tienes que decir adiós a todo lo demás.

LARI — (em pajubá, firme) Nem morta, minha filha. Não vendo meu cu, vendo meu sangue e minha história. E essa alma? Essa é do Armand, já tem dono.

ISABELLA — (com voz baixa, venenosa) Respeto el poder. Y el verdadero poder viene de lo que tienes bajo la falda. Pero tú... ni eso tienes de verdad.

Um silêncio pesado preenche o ar. Lari mantém o olhar firme, sem se abalar, cheia de orgulho, a dona da própria narrativa.

LARI — (fria e cortante) Já fui expulsa de muitos palácios por ser quem sou. Agora ser menosprezada por uma pseudo-dama? Por alguém que só sabe falar bonito e esconder podre? Isso é que é humilhante.

ISABELLA — (com escárnio) No me molestaría si fueras solo una ex acompañante. Muchas empezaron en ese camino y terminaron bien. Pero tú? No eres dama, ni de lejos. No perteneces aquí.

LARI — (erguendo o queixo, desafiadora) Se acostuma, querida. Porque vou estar nos quadros, nos jantares, nas fofocas, e você vai ter que engolir isso com sua cara de superior.

Isabella sorri, mas é um sorriso de derrota. Lari sai com o salto ecoando no mármore, um aviso claro de que essa guerra só está começando.

 

CORTA PARA:

 

CENA 8. MANSÃO DOS GODOY BUENO. ESTUFA. INT. DIA

 

SONOPLASTIA — "MON MANÈGE À MOI (TU ME FAIS TOURNER LA TÊTE)" – ÉTIENNE DAHO – INSTRUMENTAL

 

A estufa está em ruínas. Vidros estilhaçados espalhados pelo chão refletem a luz em padrões inquietantes que dançam sobre folhas murchas e plantas sufocadas pelo abandono. O ar é pesado, carregado de segredos não ditos.

VALQUIRIA, elegante e fria, caminha lentamente entre as plantas moribundas. Seus olhos brilham com frieza calculista. Ao seu lado, Serpentinha, reptiliano e astuto, observa, sua voz sussurrada, venenosa.

SERPENTINHA - (sussurrando, desconfiado) Você sabe o que está fazendo, Valquiria?

Valquiria para, o sorriso cruel se formando lentamente em seu rosto.

VALQUIRIA - (com segurança absoluta) Sei sim. Vivi vai estar ocupada demais tentando provar sua inocência para perceber o que realmente aconteceu. Carolina não morreu à toa, e ninguém vai descobrir o que ela viu — o esquema de corrupção, a fraude nas obras de caridade da Godoy Bueno Exportações. (PAUSA) Revelamos o corpo na hora exata. 

Valquiria se aproxima de Serpentinha, beija-o com uma mistura de controle e agradecimento. A tensão entre eles é palpável.

Ela recua, encara o espaço como uma rainha soberana, ciente do poder que tem em mãos.

O peso das palavras paira no ar, a cena carregada de refinamento e maldade calculada.

 

CORTA PARA:

 

CENA 9. TEATRO ESPAÇO. PALCO. INT. DIA

 

SONOPLASTIA — “DO I WANNA KNOW?” – ARCTIC MONKEYS – INSTRUMENTAL

 

O palco transformado em cenário de tragédia. As luzes de emergência projetam uma dança vermelha sobre o chão sujo e as cortinas puídas. O corpo do segurança jaz ao fundo, coberto por um lençol. A ambulância está com as portas abertas. Marcos, inconsciente, já acomodado, respira com dificuldade. MADSON, ao lado da maca, cambaleante, os cabelos colados de suor, o sangue seco no canto da boca, parece fora do tempo. A alma, estraçalhada. Mas viva.

Ela está prestes a subir, quando o som de sapatos de salto alto corta o ambiente como uma lâmina de vaudeville.

Nanny Who surge no portal do teatro como uma entidade saída de outro plano — vestida de preto, olhos como faróis, o salto ecoando com a autoridade de quem já foi ignorada demais. Ela rompe o bloqueio policial com a fúria de quem cansou de pedir licença ao mundo.

Madson, ao ver a amiga, congela. Um sopro de humanidade reaparece em seu rosto. Ela desce da ambulância e corre até Nanny. O abraço é bruto, necessário — um gesto mais potente que qualquer fala.

NANNY WHO — O que aconteceu, mona?

MADSON - (engolindo o choro) Foi o Rudolfe. Ele me espancou. Matou o segurança. Ia matar o Marcos também, mas ele me salvou.

Madson se desfaz em lágrimas no peito de Nanny. Nanny a segura com a firmeza de quem conhece abismos.

NANNY WHO — E você se salvou, mana. Igual aquele dia no Guarujá lembra? Quando você achou que tava se afogando e era só a maré te batizando de novo.

Madson sorri entre o pranto.

MADSON — E você também se salvou. Quando entrou naquele hospital como o Luisão e saiu Nanny Who.

Nanny ri, mas é um riso doído. Os olhos marejam.

NANNY WHO — Luisão era o nome do pai do Marcos.

Madson, lenta, junta os cacos do raciocínio. Uma pausa. A ficha cai.

NANNY WHO — E sim, gata, sou eu. O pai que ele acha que morreu.

O tempo para. A câmera gira em torno delas. Tudo desaparece por um instante. Apenas a revelação permanece, densa como fumaça.

MADSON — Você veio por ele?

NANNY WHO — Não, mana. Vim por você. Quando vi a ambulância senti. Algo dizia que era com você. Mas agora você precisa vir comigo pra São Paulo. Urgente.

Madson hesita. Olha para Marcos, imóvel, quase menino.

MADSON — E ele?

NANNY WHO — Ele vai entender. Porque é parte de você. E porque ele vai ter que saber. Toda a verdade.

MADSON — Que verdade?

NANNY WHO - (olhando no fundo dos olhos dela) Carolina morreu há dois meses.

Madson recua. O peito afunda.

MADSON — Não. Isso não é verdade. Eu fugi com ela, ela me salvou.

NANNY WHO — Não foi a Carolina, mana. Foi a Vivi. A irmã. A única que ainda pode sobreviver nesse jogo de fantasmas.

O silêncio se torna físico. O mundo de Madson desaba de novo. Mas ela, atriz, segura. Nem todas as tragédias têm cortina.

A câmera se afasta lentamente. A ambulância começa a fechar as portas. Marcos respira. Madson ainda não respondeu. Mas seu olhar já partiu.

NANNY WHO — Anda logo, mana. Essa novela não vai acabar sem você.

A câmera sobe. Lá fora, o céu de São Paulo parece mais cinza que nunca. A cidade pulsa, indiferente. Mas algo, dentro daquele teatro, mudou para sempre.

CORTA PARA:

 

CENA 10. MANSÃO DOS GODOY BUENO. SALA DE ESTAR. INT. DIA

 

A luz do sol entra pela janela com violência. O luxo da casa parece frio, hostil. A escada principal é uma passarela de tensão.

Vivi, ainda sob o peso da noite anterior, desce os degraus com passos hesitantes. O celular vibra. Ela lê a mensagem no visor, a tela iluminando seu rosto já devastado:

MENSAGEM: “Continue jogando e você não irá para a cadeia.”

O sangue some de seu rosto. Os olhos piscam como quem acorda dentro de um pesadelo. Um misto de raiva e medo atravessa sua expressão.

Uma empregada surge discretamente, avisando com o olhar que há uma visita. A porta se abre. Clara, a delegada, entra firme, sem cerimônias. Carrega a autoridade de quem sabe que está chegando perto demais da verdade.

CLARA - (com frieza contida) Precisamos conversar.

Vivi tenta manter a pose. Mas sua respiração falha.

CLARA - Ainda não conseguimos identificar o corpo oficialmente. (pausa, saca o celular) Mas encontramos isso na cova em Campos do Jordão.

Ela mostra a tela para Vivi. Um rosto aparece. A Carolina verdadeira. O mundo de Vivi treme.

VIVI - (sussurrando, em choque) Ela é igual a mim.

CLARA - É. Mas é a versão morta.

As palavras cortam como navalha. Vivi sente o peso da revelação. Sua boca tenta formar frases. Hesita. A imagem da mensagem ainda vibra em sua memória. Um recado claro: não fale.

CLARA -Tem algo que você queira me contar?

Um segundo de silêncio pesa toneladas. Vivi, entre o luto e o instinto de sobrevivência, engole a verdade.

VIVI - Não. (engole em seco) Mas estou tão interessada quanto você em resolver isso, delegada. Quero justiça.

Clara a encara. É impossível dizer se acredita ou se apenas observa como uma caçadora paciente. O silêncio entre as duas é tão ruidoso quanto uma confissão.

CLARA - Tudo bem. (se vira para sair) Mas voltaremos a conversar. Logo.

A delegada desaparece pela porta com a mesma precisão com que entrou. Vivi permanece ali, imóvel, como uma estátua rachada.

O celular ainda está em sua mão. A mensagem, agora como uma sentença.

Ela se deixa cair no sofá, o choro vindo finalmente. Um choro feio, libertador. A certeza que agora não há mais como fingir. Carolina está morta. E o jogo, se não acabou, ficou muito mais perigoso.

CORTA PARA:

 

CENA 11. MANSÃO DE HELENA. PISCINA. EXT. DIA

 

SONOPLASTIA — “ANOTHER DAY IN PARADISE” – CAT VS CAT & JOYNER – INSTRUMENTAL

 

O céu de São Paulo arde num azul sem nuvens. O sol doura os azulejos da piscina como se o tempo estivesse suspenso.

Helena, elegante mesmo sob o calor, repousa numa espreguiçadeira branca, com um suco de laranja recém-espremido nas mãos. Ela folheia distraidamente uma revista de arquitetura, mas seu olhar está distante. O ambiente parece tranquilo, até demais.

De repente, um ruído estranho vindo dos arbustos quebra a calma. Helena se levanta com cautela, atravessa o jardim em silêncio, os saltos baixos afundando levemente na grama. Ela se aproxima, hesitante. Um gato foge. Suspiro de alívio.

Mas ao se virar — Olivia está ali. Pálida. Assustada. Um fantasma do próprio corpo.

HELENA – (assustada) Olivia? O que está fazendo aqui?

Olivia treme, mas seus olhos estão cravados em Helena.

OLIVIA – (sincera, desesperada) Eu preciso de ajuda.

HELENA – (tentando manter o controle) Você fugiu do hospital. Não pode estar aqui. Precisa voltar.

OLIVIA – (com um sorriso triste) Ninguém vai acreditar em mim. Nunca acreditaram. Sempre me viram como uma louca. Mas você, Helena, você me ouviu. Você me tratou como gente.

Helena se aproxima, mais atenta do que alarmada. O tom de Olivia muda — menos frenético, mais lúcido. Isso a assusta ainda mais.

HELENA – Você é uma pessoa, Olivia. Com uma doença. E precisa ser tratada com cuidado com seriedade.

OLIVIA – (quase em sussurro) O que eu vou te contar vai parecer insano. Mas é a verdade.

Silêncio. A brisa sopra as folhas das palmeiras. O mundo prende a respiração.

OLIVIA – Você lembra quando eu dizia que tive gêmeas?

HELENA – (pausa) Sim, mas depois ficou claro que você teve só a Carolina.

OLIVIA – (balançando a cabeça) Não. Eu entreguei Carolina pra Cecília e Carlos. Mas Vivi eu tentei criar sozinha.

O rosto de Helena muda. Um abismo se abre atrás dos olhos dela.

HELENA – Isso é impossível.

OLIVIA – Hoje eu a vi. Segui minha filha até Campos do Jordão. Eu vi ela lutar pela vida naquela casa maldita com Laura. Eu sei o que vi. Eu sei quem ela é. Carolina está morta.

Helena recua um passo, como se estivesse diante de um abismo. Mas a psiquiatra logo assume o controle.

HELENA – (com firmeza) Carolina está viva, Olivia. Se existe um corpo, pode ser da sua outra filha.

OLIVIA – (olhos marejados) Não. Quem está viva é a Vivi. Porque mãe reconhece. Mesmo no caos. Mesmo depois de tudo. Eu a vi. Eu a senti.

Helena encara Olivia, e nesse instante, o delírio cede lugar à emoção crua, palpável. A dor de uma mãe que carrega o peso do abandono e do amor tardio.

Helena a abraça. Um gesto raro. Quase maternal.

HELENA – (sussurrando) Eu vou te ajudar.

A câmera sobe lentamente, deixando para trás o abraço improvável e comovente. Uma médica. Uma paciente. Duas mulheres envolvidas por um segredo que pode mudar tudo.

CORTA PARA:

 

CENA 12. SÃO PAULO. ANOITECER. EXT.

 

SONOPLASTIA – “PADAM PADAM” – KYLIE MINOGUE

 

A luz dourada do entardecer pinta os prédios de São Paulo com tons de mel e sangue, enquanto a cidade pulsa com sua pressa costumeira e suas tragédias elegantes. O céu começa a escurecer, mas as luzes da cidade parecem prometer que nada será esquecido esta noite.

Um carro preto luxuoso cruza a avenida arborizada. Dentro dele, Lari Pacotão — toda de preto, mas com brilhos nos olhos e no vestido — conversa animadamente com Carolina, que todos acreditam ser Vivi. Lari está eufórica, como se a dor dos últimos dias tivesse sido transformada em purpurina. Carolina, por outro lado, observa pela janela, em silêncio, como se estivesse tentando decifrar o mapa da própria alma.

O carro estaciona diante do Café de la Musique, cujas luzes douradas brilham como promessas de esquecimento. Lari salta com um riso debochado e oferece a mão para Carolina. Elas caminham em direção à entrada, atraindo olhares.

A música aumenta, o mundo ao redor desacelera. São duas mulheres à beira do abismo — mas vestidas para o sucesso. Uma noite perigosa acaba de começar.

CORTA PARA:

 

CENA 13. CAFÉ DE LA MUSIQUE. INT. NOITE

 

SONOPLASTIA — “GIMME! GIMME! GIMME!” – ABBA

 

O clube vibra em neon. Paredes espelhadas, luzes estroboscópicas. A música pulsa como um coração em êxtase. Em meio a corpos suados, dançantes, homens seminuos equilibram bandejas com shots fluorescentes.

Lari Pacotão, no centro de tudo, veste um vestido brilhante que parece ter sido costurado com raios de glitter. Vivi, que todos acreditam ser Carolina, está com ela — as duas brindam, riem alto, dançam como se a vida dependesse disso.

VIVI - (erguendo o copo) Se isso for o fim do mundo, quero morrer com esse gin!

LARI PACOTÃO - (batendo o copo no dela) Axé, monamu! Hoje a casa vai cair, viado!

Elas gargalham. A câmera gira com elas, embriagadas de alegria. A luz vermelha corta a cena, e a trilha desacelera quando duas figuras surgem na entrada.

Madson entra primeiro — imponente, cabelo preso, olhar firme. Ao lado dela, Nanny Who, montada com perfeição, salta com um leve drama teatral e veste um terno prateado sem camisa por baixo.

A música parece diminuir. Lari e Vivi congelam por um segundo.

LARI PACOTÃO - (olhando, quase sem voz) Eita...

VIVI - É ela?

As duas caminham até Madson. O reencontro carrega um peso difícil de traduzir. A alegria agora está contida, deslocada.

LARI PACOTÃO – ( séria) A gente soube do babado em Paraty. Você tá bem?

MADSON - (firme, olhando direto pra Vivi) Tô viva, graças à sorte e à força de vontade. E vim porque te devo isso, Vivi.

O nome ecoa. Vivi arregala os olhos, surpresa.

VIVI - (sussurrando) Você sabe?

MADSON - (simples) Sei. Tudo. E não acho que você matou a Carolina.

Vivi engole seco. A câmera foca sua expressão, entre alívio e medo.

NANNY WHO - (entrando no clima) A mana ressuscitou igual Jesus pop. Vim montada no close e pronta pra barraco!

LARI PACOTÃO - (se abrindo num sorriso nervoso) Então vamo descobrir quem é a górdia por trás desse babado todo!

As quatro se olham. Um pacto silencioso. Mulheres no fio da navalha, unidas por segredos, vinganças e sobrevivência.

Sonoplastia retorna com força 

CORTA PARA:

FIM

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