A INTRUSA - CAPÍTULO 14 - 09/09/2025


A INTRUSA

CAPÍTULO 14

UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI


CENA 1. MANSÃO DOS GODOY BUENO. ESCRITÓRIO. INT. NOITE

SONOPLASTIA - SONATA Nº 29 "HAMMERKLAVIER", III. ADAGIO SOSTENUTO - BEETHOVEN

O piano entra como um sussurro trágico, espesso, elegíaco. A música paira sobre o ambiente como uma névoa — densa e carregada de presságios.

Close em Ana Maria, estendida sobre o tapete persa. O rosto sereno. O batom impecável. A morte lhe caiu como uma luva.
Na mão ainda cerrada, um resquício de dignidade — ou talvez apenas tédio.

Flash de câmera. A luz rasga o quadro em branco.

Plano aberto do escritório. Ambiente sóbrio, imponente. Livros de capa dura, móveis de madeira nobre, uma poltrona que carrega segredos demais.

Três policiais ocupam o espaço como cirurgiões em um teatro de tragédia burguesa. Usam luvas. Mas não para evitar manchas. Para não absorver os pecados do lugar.

Um deles retira um bilhete dobrado de dentro de um exemplar de Neruda.
NO BILHETE, em espanhol rabiscado:
“Si no puedo vivir con él, ninguno de los dos debe vivir.”

A música cessa.
O silêncio é brutal.

POLICIAL 1 - (com humor cínico) Isso aqui virou tragédia shakespeariana, só que com sotaque caribenho. 

POLICIAL 2 - (ríspido) Eu, no lugar dela, também preferia a morte do que voltar pra ditadura de Caracas.

POLICIAL 3 - (sem olhar para eles, mordaz) Caracas, Brasília... só muda o idioma da humilhação. E o preço do gás.

Um silêncio embaraçado. Os três se entreolham. Ninguém rebate.

A sonata retorna. Baixinha. Solene. Como se o piano também estivesse de luto.

Eles retomam a busca. Um copo de cristal, o anel de Valquíria no canto do bar. Um porta-retrato de Aurora virado para baixo.

Câmera desliza até a porta entreaberta. Ali, de pé, imóvel como uma sombra: Laura.

Ela não respira. Ela assiste. E nós entendemos: ali começa o verdadeiro drama.

 

CORTA PARA:

 

CENA 2. MANSÃO DOS GODOY BUENO. SALA. INT. NOITE

 

Silêncio absoluto. A câmera estática. Close-up em Vivi: o olhar fixo, perdido em algum ponto para além da sala.
O tempo parece suspenso, como um relógio quebrado.
Nenhuma trilha. Nenhuma respiração. Apenas tensão.

FLASHBACK — MANSÃO DOS GODOY BUENO. JARDIM. EXT. NOITE

Vivi e Marco Aurélio atravessam o jardim. Os convidados os observam com a frieza típica de quem se alimenta do fracasso alheio.
Sorrisos contidos. Câmeras discretas. A queda iminente tem gosto de champanhe.

O TIRO. Cruel. Preciso. Silencioso por um instante.
Marco Aurélio cambaleia. Cai como uma verdade inconveniente.
O sangue escorre pelo mármore como uma assinatura em contrato de poder.

Vivi paralisa. O grito morre na garganta.
Um segurança a agarra pelo braço — mais protocolo que proteção.

FIM DO FLASHBACK.

CECÍLIA - (em OFF, baixa, elegante) — Trouxe um chá, Carolina.

Vivi pisca. Volta ao presente. A xícara pousa à sua frente, perfumada e frágil. A câmera revela o ambiente por completo:
Carlos à esquerda, encostado na lareira, imóvel. Lívia no sofá, de pernas cruzadas, entediada como quem já leu o roteiro da vida de todos os presentes.

Vivi segura a xícara com as duas mãos.
A etiqueta disfarça o tremor. Mas não esconde o colapso.

VIVI - (voz rouca)  Preciso ir ao hospital. Marco Aurélio precisa de mim.

LÍVIA - (sem desviar o olhar do próprio esmalte) Ou talvez precise de extrema-unção. Você que sabe.

VIVI -  (irritada, se levantando) Você é um monstro, Lívia. Um monumento à vaidade sem conteúdo.

Lívia ri. Um som breve, sofisticado, venenoso. Levanta-se devagar, caminha até Vivi. Fica bem próxima.

LÍVIA - (sussurra, mantendo o sorriso)  Calma, maninha(pausa) Você é a próxima. Se não baixar essa bola.

O silêncio volta. O mundo ao redor desaparece. Só resta o olhar de Vivi — agora dilacerado.

CORTA PARA:

CENA 3. APARTAMENTO DE LUCINHA. SALA. INT. NOITE

O apartamento de Lucinha é um reflexo de sua personalidade: sofisticado, mas sem ostentação. O ambiente tem um charme antigo, com móveis de linhas clássicas, cortinas de linho bege que dançam levemente com a brisa noturna, uma iluminação suave que mistura abajures e velas. Há quadros de arte moderna nas paredes e uma música instrumental suave ao fundo, recém-interrompida ao entrarem.

A porta se abre. Lucinha entra primeiro. Veste um vestido preto elegante, mas sem afetação — a beleza é natural, o magnetismo inevitável. O rosto carrega uma inquietação contida.

Atrás dela entram Rubinho, ar blasé e uma elegância quase vencida pelo tempo, e Patrícia, maquiada demais, tentando disfarçar sua ansiedade com afetação.

Lucinha larga a bolsa sobre uma poltrona de couro clara, sem olhar para os dois.

LUCINHA - (sem rodeios) Vou tomar um banho e seguir pro hospital. Quero ver o Marco Aurélio antes que vire notícia de rodapé.

Ela já se dirige ao corredor quando Rubinho se apressa, tentando parecer útil.

RUBINHO - Quer que eu vá com você?

Lucinha para, de costas para eles. Silêncio breve. Então, gira levemente o rosto, sem sorrir.

LUCINHA - (irônica) Acha mesmo que ele vai querer te ver, Rubinho? Vai ser ótimo: eu chorando e você pedindo desculpa por existir.

Ela desaparece no corredor com um riso seco, deixando no ar um perfume caro e um clima carregado.

Na sala, Rubinho permanece imóvel. Patrícia se aproxima com passos leves, quase felinos. Há algo no olhar dela que mistura provocação e saudade.

PATRICIA - (baixo, no ouvido dele) Você podia ficar se quiser. Eu ainda sei esquentar uma noite fria.

Ela se afasta devagar, os olhos nos dele. Um jogo silencioso. Ele a observa por um segundo — expressão indecifrável — e então se afasta, sem uma palavra, em direção à janela.

O passado pulsa ali. Intacto. Mas ele prefere ignorá-lo.

Patrícia suspira, amarga. Senta-se devagar, cruzando as pernas. E acende um cigarro que não chega a tragar.

CORTA PARA:

 

CENA 4. MANSÃO DOS GODOY BUENO. SALA DE ESTAR. INT. NOITE

 

A sala de estar da mansão é grandiosa e austera. Um ambiente silencioso onde cada móvel parece ter sido posicionado com régua. Tapetes orientais cobrem o mármore frio, e cortinas pesadas de veludo bordô escondem parcialmente as janelas altas. No centro, um lustre de cristal ilumina o espaço com uma luz difusa e levemente dourada, conferindo um ar teatral à cena.

Ao fundo, a escadaria monumental. E por ela desce Vivi, no papel de Carolina, apressada e visivelmente abalada. Veste-se com elegância, mas sem vaidade — uma blusa de seda clara, calça preta ajustada, o cabelo preso de forma prática. Carrega a urgência nos olhos, a fragilidade nos gestos.

Ao chegar à base da escada, ela para bruscamente.

No meio da sala, como se já estivesse ali há muito tempo, está Laura, que Carolina conhece como Selma. Ela veste roupas discretas, mas bem escolhidas, e segura nas mãos um livro infantil — um gesto estudado, quase simbólico.

VIVI - (surpresa) Selma? O que você tá fazendo aqui, a essa hora?

LAURA - (voz calma, doce) Fiquei preocupada com a Aurora. Com tudo isso acontecendo. A babá que se matou, Marco Aurélio no hospital (pausa) Achei que a menina podia precisar de alguém por perto.

Vivi baixa um pouco o olhar, tocada, mas claramente cansada.

VIVI - (sincera) Obrigada. Eu mal consegui olhar para ela hoje. Não sei nem o que dizer. Só quero que isso acabe logo.

Laura dá alguns passos, sempre suave. Os olhos fixos em Vivi, mas com algo escondido atrás do tom solidário.

LAURA - Se você quiser, posso ficar. Passo a noite aqui e cuido da Aurora. Só até as coisas acalmarem. Se isso te ajudar.

Vivi hesita por um segundo, mas cede. O gesto parece aliviar algo dentro dela.

Vivi - (suspira) Seria ótimo. De verdade, obrigada, Selma.

Vivi se aproxima, segura a mão de Laura por um breve momento. Um gesto automático, de confiança. Depois, solta. Caminha até a porta com pressa, pega a bolsa sobre uma das poltronas. Ela abre a porta da frente. O vento frio da noite invade a sala.

CAROLINA - Até amanhã. Cuida dela, por favor.

LAURA - (com um sorriso contido) Como se fosse minha.

Vivi sai. A porta se fecha com um leve baque.

Silêncio. Laura permanece imóvel por um instante. Depois, lentamente, ergue os olhos em direção à escada. O sorriso que se forma em seu rosto é sutil — mas cheio de intenções. Triunfante. Calculado.

Ela está exatamente onde queria estar.

CORTA PARA:

 

CENA 5. HELICÓPTERO. INT. NOITE

 

O som das hélices domina o ambiente, abafado pelo isolamento interno da cabine. Luzes da cidade brilham lá embaixo, como um tapete de estrelas invertidas. O interior do helicóptero é sofisticado, com bancos de couro escuro e acabamento em aço escovado. A atmosfera, porém, é tensa.

Lari Pacotão, exuberante, com um vestido justo e maquiagem impecável, encara a escuridão pela janela. Seus olhos, normalmente vivos e sarcásticos, agora carregam uma sombra de frustração. Ela mastiga a raiva, o orgulho ferido. Seus dedos batucam nervosamente sobre o joelho cruzado.

Ao lado dela, Armand, europeu, maduro, elegante, observa com preocupação. Seu terno impecável contrasta com a informalidade da emoção no ar.

ARMAND - ¿Estás bien, Lari? Te noto diferente desde que salimos de la mansión.

LARI PACOTÃO - (sem virar, com o pajubá fluido) Tô passada, mona. Queria ter ficado com a Carolina. A energia tava bafo, tu viu? Mas me tiraram de lá que nem figurante de luxo.

Armand suspira, escolhe as palavras com cuidado.

ARMAND - Ustedes casi no se conocen. No hay intimidad. Nuestra relación con los Godoy Bueno es puramente comercial, nada más.

Lari se vira devagar. O olhar agora é mais duro.

LARI PACOTÃO - E o nosso é o quê, então? Um quê? Um contrato? Uma transação a céu aberto?

Armand fecha os olhos brevemente. Toca a têmpora, como se tentasse manter a calma.

ARMAND – Lari, basta con eso. Tú sabes que no es así. Para mí, nunca fuiste una mercancía.

Lari dá uma risada curta, sem humor. Os olhos se enchem de lágrimas, mas ela não desaba ainda. Encarando Armand.

LARI PACOTÃO - Você me pagou. Pra estar com você. Pra sorrir, cruzar as pernas, dizer que te amo. Isso tem nome, gato. Não esqueço que sou uma prostituta trans contratada pra acompanhar você. E nada mais.

Silêncio. As hélices continuam girando, impassíveis, acima do drama humano.

Armand vira-se para ela, com sinceridade crua nos olhos. Coloca a mão sobre a dela.

ARMAND - Hice eso porque quería una oportunidad para estar contigo. Para conquistarte. Pero yo quiero algo serio. Real. Contigo, Lari.

As palavras entram fundo. Lari tenta conter a emoção, mas não consegue.

Ela desvia o olhar, mas as lágrimas agora descem. Lentas, incontidas.

LARI PACOTÃO - (choro contido) Você sabe o que é crescer ouvindo que você nunca vai ser mulher de verdade? Que o máximo que te espera é um quarto pago, um cliente bêbado, uma vida escondida? (pausa, respira fundo) Eu me fiz sozinha, Armand. Com salto, silicone, dor e coragem. Eu sou tudo que disseram que era impossível. (olha pra ele) Mas às vezes, ainda acho que não mereço o que é bom.

Armand a puxa para um abraço. Lari hesita por um segundo, então se rende.

Os dois se abraçam, no meio da cabine iluminada apenas pelos reflexos da cidade. O helicóptero corta o céu enquanto Lari chora baixinho, e Armand segura firme, como se dissesse — sem palavras — que ela não está sozinha.

CORTA PARA:

CENA 6. HOSPITAL ALBERT EINSTEIN. SALA DE ESPERA. INT. NOITE

A sala de espera é ampla, minimalista e silenciosa, com móveis modernos em tons neutros. As luzes brancas denunciam a impessoalidade hospitalar. Plantas ornamentais tentam amenizar a frieza, mas tudo ali é tenso e carregado.

Valquíria, mulher refinada, bem vestida, mas visivelmente impaciente, anda de um lado para o outro com os braços cruzados. O salto alto ecoa no chão de mármore, marcando o ritmo de sua irritação.

VALQUÍRIA - (impaciente, em voz alta) Esse é o melhor hospital do Brasil? Imagina o resto. Deve ser um milagre sair vivo de um pronto-socorro...

Daniel seu filho, mais contido, veste uma camisa social ainda desalinhada da correria. Tenta conter a mãe, já esgotado.

DANIEL -Mãe, por favor (pausa) já está todo mundo tenso. Ficar reclamando não vai ajudar.

Valquíria revira os olhos e se senta bruscamente, cruzando as pernas com elegância forçada. Pega a bolsa como se quisesse sair a qualquer momento.

A porta da sala se abre.

Vivi entra decidida. Usa uma roupa prática, mas impecável. O cabelo preso denuncia a pressa. O olhar está cansado, mas firme.

VIVI - (alta, direta) Vocês já têm notícias do Marco Aurélio?

Valquíria levanta-se de imediato. Ia responder, mas é interrompida pela súbita entrada de um médico. Silêncio.

O médico, de jaleco branco e feições fechadas, caminha até o grupo. Todos se voltam para ele, como se o tempo congelasse. O tique-taque imaginário de um relógio bate no ar.

Carolina dá um passo à frente.

O médico para. Ensaia algo. Respira fundo.

MÉDICO – Ele (olha para todos, com gravidade)


CORTA PARA:

 

FIM

 

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