A INTRUSA
CAPÍTULO 13
UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI
CENA 1. MANSÃO DOS GODOY BUENO. SUÍTE DE CAROLINA E MARCO AURÉLIO. INT. NOITE
SONOPLASTIA – PORCELAIN – MOBY
Marco Aurélio encara Vivi, os olhos fixos, frios como aço. A luz baixa ressalta a tensão no ambiente. A festa ainda ecoa ao fundo, abafada pelas paredes espessas da mansão.
MARCO AURÉLIO - (frio) VOCÊ AINDA VAI TENTAR ME CONVENCER QUE É A CAROLINA?
VIVI - (tensa, respira fundo) EU SOU A CAROLINA.
MARCO AURÉLIO - (sarcástico, impaciente) Desde que voltou de Campos do Jordão, você está diferente. Fala diferente. Age diferente. Até o cabelo, o estilo, o jeito de se vestir…
VIVI - (tentando se controlar) Eu passei por muita coisa. Precisei mudar.
Marco Aurélio se aproxima. Intenso.
Segura-a pelo braço. Puxa. Beija com fúria. Ela retribui, o beijo é denso, carregado de desejo e fúria. Ele a vira. Beija-lhe o pescoço.
Subitamente, ele para. Ri. Um riso frio, cortante.
MARCO AURÉLIO — A CAROLINA TEM UMA MARCA DE NASCENÇA AQUI. (aponta o pescoço dela) VOCÊ NÃO TEM NADA.
Silêncio. Vivi paralisa. Desaba. O corpo treme.
VIVI - (sussurrando, em pânico) EU NÃO SABIA O QUE FAZER (PAUSA) EU NÃO SABIA!
MARCO AURÉLIO – (avançando) QUEM É VOCÊ?
VIVI - (tentando se recompor, mas sem forças) Eu vi uma notícia sobre a Carolina num jornal. Entrei em contato. Ela respondeu. Marcamos um encontro em Campos do Jordão. Quando cheguei ela não estava. Só encontrei o celular dela. E uma mensagem.
MARCO AURÉLIO - (duro, sem piedade) Então você achou brilhante se passar por ela?
(aproxima-se, agressivo) VOCÊ É UMA APROVEITADORA! UMA IMPOSTORA!
VIVI - (gritando, quase em transe) EU FUI CHANTAGEADA! TINHA UMA MENSAGEM NO CELULAR DELA DIZENDO PRA EU CONTINUAR COM O DISFARCE! (afunda no chão, aos prantos) SE EU DESISTISSE, EU IA MORRER!
Silêncio. Marco Aurélio recua. O olhar ainda duro, mas agora misturado com algo novo: dúvida.
MARCO AURÉLIO — POR QUE NÃO ME DISSE ANTES?
VIVI – (sem forças, a maquiagem borrada, os olhos perdidos) Eu não sabia em quem confiar.
MARCO AURÉLIO - (duro, objetivo) VAI SE TROCAR. A GENTE VAI PRA DELEGACIA. AGORA.
Vivi assente, em silêncio. A câmera fecha em seu rosto. O olhar apreensivo, os olhos marejados. O medo de algo maior. De que tudo, na verdade, esteja só começando.
CORTA PARA:
CENA 2. MANSÃO DOS GODOY BUENO. JARDIM. EXT. NOITE
SONOPLASTIA – LOVE’S THEME – THE LOVE UNLIMITED ORCHESTRA.
A música envolvente ecoa pelo jardim da mansão, contrastando com o clima de escândalo que paira no ar. O cenário da festa — que deveria ser um evento memorável de sofisticação — agora é uma composição desordenada de arranjos florais desfeitos, taças quebradas e convidados em murmúrios tensos.
Valquíria, em pé ao lado do palco parcialmente desmontado, mantém a postura ereta e o olhar fulminante. Sua elegância imaculada contrasta com o caos ao redor. Há um leve tremor em sua mão, mas ela não permite que ninguém perceba.
VALQUÍRIA - (baixa, precisa, venenosa) A noite foi um desastre. Um escândalo vulgar. E ao vivo.
Daniel, ao seu lado, visivelmente nervoso, tenta manter o controle, ajeitando a lapela do terno com dedos trêmulos.
VALQUÍRIA - (sarcástica, fria) Você já falou com o Relações Públicas?
DANIEL — Já. E com o jurídico também. Maseu juro que se eu cruzar com o Marco Aurélio agora, eu...
VALQUÍRIA - (interrompe, gélida) Vai fazer o quê? Partir pra ignorância como um estivador? (aproxima-se, mordaz) O que você sente pela Carolina não importa, Daniel. (olhos fixos, voz letal) Sentimento é um luxo que a nossa família não pode se permitir. Precisamos sair disso com elegância.
DANIEL — Você tá falando como se fosse uma coletiva de moda. É a nossa família.
VALQUÍRIA — Negócios são mais importantes que família. Sempre foram. Pergunte ao seu pai — se você ainda lembrar quem é.
CORTE RÁPIDO PARA A MESA DE LARI PACOTÃO E ARNOLD.
A mesa é uma ilha de cores, risadas contidas e olhares atentos.
Lari, deslumbrante em plumas discretas e um leque artesanal nas mãos, toma um gole de espumante com pose de diva e gira o leque com ironia.
LARI PACOTÃO — Monamu, eu PRECISO ver a Carolina. Essa bee tá virando o novo meme do jet set. Já já tão fazendo filtro com a cara dela.
Arnold, elegante e discreto, observa o movimento ao redor com olhos atentos. Seu sotaque é levemente carregado, um charme cosmopolita.
ARNOLD — Lari, mejor que no. Essa fiesta está en llamas, cariño. Vocês mal se conhecem, e a noite já tá una locura.
LARI — Conheço o suficiente pra saber que tem close errado vindo aí, viu? O olhar daquela mulher… é de quem tá guardando um segredo nível Cartas Chilenas.
ARNOLD - (sorri, sarcástico) Menos, Voltaire. Menos. No exageres.
LARI - (se inclinando, sussurra com malícia) Eu vou te contar uma coisa, aquela Carolina não é…
A CÂMERA SE MOVE RÁPIDA E ELEGANTE ATÉ A PORTA PRINCIPAL DA MANSÃO.
Ana Maria surge, cercada por flashes incessantes. Os jornalistas gritam seu nome. É um circo midiático, caótico e glamouroso.
REPÓRTER 1 — Ana Maria! É verdade o caso com Marco Aurélio?
REPÓRTER 2 — Você sabia que ele era casado? Diga alguma coisa!
Valquíria, ao ver a cena, se transforma numa muralha humana. Avança decidida, soberana.
VALQUÍRIA - (berrando, autoridade absoluta) CHEGA! ISSO AQUI É UMA CASA DE FAMÍLIA, NÃO UM PICADEIRO!
Ela agarra Ana Maria com força e a puxa porta adentro, sem esconder o nojo.
CORTE PARA LÍVIA, num canto do jardim, observando tudo. O sorriso dela é discreto, venenoso. Com passos leves e calculados, ela se afasta silenciosamente por uma lateral da casa. Sua fuga é invisível — planejada com maestria.
SONOPLASTIA AUMENTA. LOVE’S THEME CRESCE.
A CÂMERA SOBREVOA O JARDIM: convidados divididos entre a fofoca e o escândalo, repórteres furiosos, o palco vazio. A noite desaba sobre a alta sociedade como uma peça de moralidade em tempo real.
CORTA PARA:
CENA 3. MANSÃO DOS GODOY BUENO. SUÍTE DE CAROLINA E MARCO AURÉLIO. INT. NOITE
A suíte agora está sóbria. As luzes foram suavizadas. A cama está intacta. O abajur projeta uma luz amarela, quente, como numa peça de teatro decadente.
Vivi está sentada à beira da cama. Trocou o vestido de festa por uma calça jeans justa, camisa branca de algodão amassada, sem maquiagem, cabelo solto e despenteado. O glamour deu lugar a uma mulher crua, exposta, frágil e perigosa.
A porta se abre com firmeza. Marco Aurélio entra. Sério.
MARCO AURÉLIO — Quando estiver pronta, a gente vai pra delegacia.
Vivi o encara.
VIVI - (voz baixa, amarga) Você não quer saber meu nome verdadeiro?
MARCO AURÉLIO — É irrelevante.
Silêncio. Ela se levanta.
VIVI - (ri, trêmula) Meu nome é Vivi.
(pausa) Só Vivi. Sem sobrenome de família tradicional, sem brasão, sem monograma no lenço.
Ela anda pelo quarto. Olha o reflexo no espelho. Respira fundo. A voz começa firme, mas vai se rompendo, como vidro trincado.
VIVI — Eu sou prostituta. Quenga mesmo. Daquelas de esquina que sabem sorrir com o olho e cobrar com a alma.
(pausa) Fui deixada por uma mulher só com bilhete dizendo: “Não posso.” Cresci comendo pão duro, sonhando com vestido de festa que eu via na TV. Aprendi que "amor" era o nome do cliente mais valioso do salão. (pausa, amarga) E que afeto, monamu, é coisa que se paga por hora.
Marco Aurélio escuta em silêncio. Olhar fixo.
VIVI - (continua, mais suave) Quando vi a Carolina no jornal, eu travei. Parecia um espelho. Um espelho de ouro.
(pausa) Mandei mensagem. Ela me respondeu. Marcamos em Campos do Jordão. Mas quando cheguei. Sumiu.
Ela vira-se para ele. Olhar febril.
VIVI — Eu achei que a gente era irmã, sabe? Fiquei doida. Pensei: “Tem que ter um laço. Um sangue. Um DNA. Porque isso não pode ser só coincidência.” (pausa) Mas hoje eu acho que a gente era só sósia. Cecília e Carlos nunca abandonariam uma filha...
Silêncio absoluto. Marco Aurélio caminha até ela. Olhos fixos. Uma lâmina de desprezo e compaixão.
MARCO AURÉLIO — Carolina é adotada. (pausa) Carlos e Cecília não podiam ter filhos. Foi uma adoção discreta. Lívia veio depois, quando ninguém mais esperava.
Vivi congela. O rosto dela se esvazia. As mãos tremem. Um leve som de respiração presa.
VIVI - (sussurra) Adotada?
A CÂMERA FECHA NO ROSTO DE VIVI.
Seus olhos marejam, mas ela não chora. É como se algo dentro dela tivesse desabado sem estardalhaço.
CORTA PARA:
CENA 4. MANSÃO DOS GODOY BUENO. ESCRITÓRIO. INT. NOITE
O escritório é sóbrio, revestido de madeira escura, com estantes de livros alinhados e um tapete persa impecável.O relógio antigo marca pouco depois da meia-noite. A atmosfera é densa.
Valquíria está de pé, junto à janela. De costas. O reflexo da luz incide sobre sua aliança de ouro maciço.
Ana Maria, tensa, tenta manter a compostura. Veste um vestido simples, mas digno. Olhos úmidos, mas firmes.
VALQUÍRIA - (sem olhar para ela) Você tinha uma única função nesta casa, Ana Maria. (pausa) Cuidar da Aurora. Alimentar, trocar fralda, proteger do sol. Só isso.
ANA MARIA - (voz baixa, emocionada) Yo sé, señora Valquíria, pero me enamoré de Marco Aurélio...
Valquíria se vira lentamente. O olhar é um bisturi.
VALQUÍRIA — Apaixonada? (ri com desprezo) Você se apaixonou pelo meu filho enquanto carregava a minha neta no colo e lhe dava papinha?
ANA MARIA — Carolina lo rechazaba, ella no quería a su hija, no quería a él. Marco y yo nos aproximamos.
VALQUÍRIA - (cortante) Você é a funcionária. Ele, o herdeiro. Isso aqui não é uma novela das seis.
ANA MARIA — Igual, já se acabó. Marco Aurélio quer voltar con Carolina...
Valquíria caminha lentamente até o aparador de bebidas. Serve dois copos generosos de uísque. O silêncio pesa. Ela gira o anel no dedo com frieza, e — com um leve movimento — abre discretamente o anel, retirando um pó fino, esbranquiçado, que despeja num dos copos. Mistura com um mexedor de prata.
VALQUÍRIA - (sorri, fingindo leveza) Então vamos brindar.
(estende o copo envenenado a Ana Maria) Ao retorno com Carolina e à sua demissão, naturalmente.
Ana Maria hesita por um segundo, mas aceita. As duas erguem os copos. Brindam. Ana Maria bebe em um gole. Valquíria apenas encosta os lábios no seu.
VALQUÍRIA - (sorri, veneno puro) Diga uma coisa, você já pensou em voltar pra Venezuela?
ANA MARIA — Tengo miedo. No quiero volver. (pausa, sincera) Me gustaría que usted me ayudara a conseguir otro trabajo. No quiero regresar allá.
Valquíria caminha devagar até a escrivaninha, senta-se com elegância e crueldade.
VALQUÍRIA — Não se preocupe. (pausa) Você vai embora hoje mesmo. Mas deste mundo. (pausa seca) No inferno não pedem currículo, Ana Maria.
Ana Maria franze a testa.
ANA MARIA — ¿Cómo? No entiendo...
Ela cambaleia. Segura-se na cadeira. A mão treme. Um suor frio se forma na testa.
VALQUÍRIA - (debochada, deliciando-se) Mas que cara é essa, querida? Foi só um brinde. Nada mais elegante que morrer de uísque.
ANA MARIA - (voz fraca) ¿Qué me hizo? ¿Qué me diste...?
Ela perde as forças. Cai de joelhos. O copo escorrega da mão. O uísque se espalha sobre o tapete persa. Um som surdo.
Valquíria se levanta, vai até ela, observa de cima.
VALQUÍRIA — Patética até pra morrer.
Ana Maria tenta dizer algo. Os olhos se apagam. O corpo imóvel.
VALQUÍRIA - (sussurra com prazer) Um problema a menos.
Ela se vira, recomposta. Ajusta a blusa. Caminha até o bar. Serve outro uísque — desta vez puro — e toma calmamente.
CORTA PARA:
CENA 5. MANSÃO DOS GODOY BUENO. JARDIM. EXT. NOITE
A festa, antes um desfile de alianças e aparências, tornou-se um velório da hipocrisia. Entre arranjos de orquídeas e trilhas de champanhe francesa, o escândalo já se espalhou como perfume barato: Marco Aurélio se envolveu com a babá da própria filha. Os convidados não comentam — sussurram. Os sorrisos foram arquivados. O requinte agora é de tensão.
As portas da mansão se abrem. Um silêncio inquieto precede o desfile do casal.
Marco Aurélio surge primeiro. Altivo. Terno sob medida, gravata ligeiramente torta. O rosto é uma máscara de dignidade artificial. Ao seu lado, Vivi — ainda como Carolina — tenta manter a compostura, mas os olhos traem um pânico abafado. Ela veste jeans e uma camisa simples, destoando de tudo e de todos.
A imprensa já está posicionada. Como hienas ao redor da carniça. Microfones em punho. Câmeras com fome de tragédia.
JORNALISTA 1 - (gritando com sarcasmo velado) Doutor Marco Aurélio, foi amor ou apenas conveniência com a babá?
JORNALISTA 2 — Carolina, a senhora pretende se separar ou já perdoou a traição?
JORNALISTA 3 — A babá foi expulsa da casa? Ou apenas do coração do doutor?
Marco Aurélio não responde. Vivi finge não ouvir. Mas o silêncio é mais ensurdecedor que qualquer resposta.
Eles caminham entre os convidados que agora os observam como quem assiste a uma peça decadente: curiosos, implacáveis e levemente entediados.
E então, de algum ponto indefinido do jardim — um tiro.
SECO. CIRÚRGICO. DEFINITIVO.
Marco Aurélio é atingido. O impacto faz seu corpo dar um leve passo em falso para trás. Por um segundo, ele permanece de pé. Depois, como uma estátua tombando, ele cai.
O som que se ouve não é o do corpo no chão. É o de todas as certezas ruindo ao mesmo tempo.
Vivi solta um grito abafado. Tenta se abaixar, mas um segurança a segura pelo braço.
O sangue escorre. Vermelho. Quente. Sujando o mármore branco do caminho. Como se fosse necessário manchar aquilo tudo para tornar real.
Os convidados gritam. Fogem. Alguns apenas observam — fascinados pela tragédia alheia. Valquíria, de longe, não move um músculo. Sorri discretamente como quem já previa.
Close em Vivi. O olhar perdido. As mãos trêmulas. O choro preso na garganta.
SEGURANÇA (gritando) — Foi tiro! Ninguém se mexe! Cadê o atirador?
A confusão cresce. Sirenes ao fundo.
A câmera sobe em travelling aéreo, revelando a festa em colapso. Taças quebradas, saltos altos abandonados na grama, a piscina refletindo as luzes da tragédia.
MÚSICA NENHUMA. APENAS O SILÊNCIO DAS RUÍNAS.
CORTA PARA:
FIM
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