A INTRUSA
CAPÍTULO 41
UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI
CENA 1. DUPLEX DE CAROLINA. SALA DE ESTAR. INT. NOITE
SONOPLASTIA — “WINTERSUN” — BORN
A música invade o ambiente como um prenúncio gélido de que algo fatal está prestes a acontecer. A câmera desliza lentamente pelos objetos de decoração do luxuoso duplex, passando por cristais vibrando levemente no impacto das primeiras palavras. O ambiente, antes tenso, agora é um campo minado.
Serpentinha, com os olhos febris, saca a arma com precisão e a aponta diretamente para Clara. Ele sorri de canto, como quem sabe que cruzou o ponto sem retorno.
SERPENTINHA - Ninguém vai preso hoje.
Três policiais emergem com firmeza de uma porta lateral, com as armas erguidas, mirando Valquíria e Silveirinha. O ambiente se dilui entre o luxo e o risco iminente.
CLARA - (com desdém) Achavam mesmo que eu viria sozinha? Vocês assistem filme demais. Eu não sou heroína de cinema americano — sou funcionária pública com revolta e provas.
Valquíria revira os olhos, mas a mão esquerda treme imperceptivelmente. A tensão se materializa no ar.
POLICIAL 1 - Achavam que isso aqui era a farra das apostilas?
POLICIAL 2 -Agora a Godoy Bueno Exportações vai ter espaço nobre nas manchetes. Tipo mensalão — só que de dinheiro destinado a compra de leite de criança.
POLICIAL 3 - Podiam pelo menos ter tentado esconder melhor os rastros. Parecem amadores.
Valquíria, acuada e altiva, dá dois passos à frente. Sua máscara de poder está trincando. Em um gesto desesperado, arranca os papéis da mão de Clara, como se rasgar provas pudesse apagar a verdade.
CLARA - Não adianta, Valquíria. Agora todo mundo sabe. Você não só matou Carolina como nem foi discreta.
Valquíria encara Clara com o fogo da humilhação. O deboche vira escudo.
VALQUÍRIA - Antes de parar numa cela, eu paro no cemitério.
Ela gira o rosto, sem hesitar:
VALQUÍRIA - Atira, Serpentinha!
A ação explode. Um disparo ecoa como um trovão dentro do duplex. Os policiais revidam. A câmera gira com violência, acompanhando a troca de tiros. Serpentinha cobre Valquíria com o corpo, os dois correm entre móveis de grife, obras de arte tombando, cristais explodindo como pequenos fogos de artifício.
A cena agora é puro thriller. Clara se protege atrás do sofá, mas seus olhos seguem o rastro dos fugitivos. Um dos policiais tenta impedi-los, mas Serpentinha derruba uma estante com brutalidade.
Valquíria e ele escapam pela porta dos fundos. A música cresce — o caos parece coreografado.
A câmera para no rosto de Clara: suja, ferida, mas intacta. O jogo virou. Mas ainda está longe de terminar.
CORTA PARA:
CENA 2. PRÉDIO DUPLEX DE CAROLINA. ESCADARIA. INT. NOITE
SONOPLASTIA — “WINTERSUN” — BORN
O som metálico dos tiros ressoa como trovões dentro do prédio de concreto, reverberando em eco por cada andar da escadaria. Luzes de emergência piscam num tom avermelhado, iluminando rostos suados, o sangue fervendo de tensão e adrenalina.
Valquíria, impecável mesmo com os cabelos desfeitos e a maquiagem borrada, empunha uma pistola automática com precisão surpreendente. Ao seu lado, Serpentinha se move como um animal enjaulado, selvagem, ágil. Juntos, descem os degraus como se estivessem numa coreografia ensaiada — um se abaixa, o outro atira; um cobre, o outro avança.
POLICIAL - (ao longe, gritando) Eles estão descendo! Fechem o térreo!
Valquíria gira o corpo com uma elegância letal, dispara duas vezes sem hesitar. Um policial grita. O estampido da arma e o baque seco do corpo no chão marcam a urgência da cena.
SERPENTINHA - (sussurrando) Estamos quase lá, minha rainha.
VALQUÍRIA - (com frieza e charme) Só não tropece na escada do poder.
Mais um andar vencido. O salto de Valquíria quebra, mas ela segue, descalça, como uma pantera decidida a não morrer naquela noite.
Chegam ao primeiro andar. A luz da saída de emergência brilha como um portal. Valquíria respira fundo, e por um segundo, sorri. Um sorriso de quem sabe que ainda tem cartas na manga.
Eles atravessam a porta e desaparecem no escuro.
CORTA PARA:
CENA 3. FACHADA. PRÉDIO DUPLEX DE CAROLINA. EXT. NOITE
SONOPLASTIA — “WINTERSUN” — BORN
A música invade como um lamento elétrico, carregado de tensão e melancolia, misturando-se ao caos urbano como se a cidade inteira pressentisse que algo irreversível foi desencadeado.
A fachada imponente do prédio, antes símbolo de luxo e exclusividade, agora é palco de um pesadelo em câmera lenta. Sirenes rasgam o silêncio da noite como navalhas. Luzes vermelhas e azuis projetam sombras deformadas nos muros. A névoa espessa de fumaça e pólvora paira no ar como um véu sujo.
Um tiro. Outro. O som seco dos disparos ecoa pelas ruas dos Jardins, como se a verdade estivesse sendo expulsa a tiros daquelas paredes decoradas a ouro.
Serpentinha, ofegante, suando frio, irrompe pela portaria feito um animal acuado. O sangue escorre de sua camisa como tinta fresca. Em sua mão trêmula, a pistola vibra, ainda quente. Ele atira no escuro — um policial é atingido e desaba com o peso de quem nunca mais vai se levantar. A multidão, em choque, recua como um organismo único. Gritos abafados, gritos reais.
Valquíria surge do saguão com a frieza de uma viúva negra. Não corre. Caminha. Os olhos são gelo. A arma em punho, precisa. Mira. Dispara. A bala atinge o ombro da Delegada Clara, que se protege atrás de um carro da polícia, gritando ordens. O pânico se espalha como veneno.
Valquíria cambaleia, mas não para. Sangra — sim — mas não cede. Ela chega ao carro preto estacionado em frente. Quando abre a porta do motorista, Serpentinha tropeça até ela, ensanguentado, a morte já rondando seus olhos esbugalhados.
SERPENTINHA - (tremendo, implorando) Me leva, porra, me leva, tô morrendo...
VALQUÍRIA - (sem olhar, mordendo a dor) Morre com dignidade então, canalha. Já dei carona demais nessa vida.
Ela o encara por um segundo. O mesmo desprezo que um rei reserva a um traidor. Ele desaba no banco do carona, arfando. Valquíria entra, dá partida. O carro arranca com brutalidade. Fumaça. Pneus rangendo. Uma fuga que já nasceu condenada.
A Delegada Clara, ferida, mas furiosa, se levanta e grita:
CLARA - Sigam! Ela não vai sumir assim!
Viaturas engatam marcha. O ronco dos motores se mistura à trilha sonora que atinge seu auge: uma cidade à beira do colapso, onde o luxo se banha em sangue, e os monstros têm sobrenome.
Dentro do carro em fuga, Serpentinha luta para respirar. Valquíria acelera como se a cidade inteira a perseguisse — e talvez esteja. Ela fita o retrovisor com o sangue colando no volante, os olhos mais escuros que a noite.
A morte já está no carro. A tragédia ganhou asas.
E São Paulo — sempre altiva — assiste, impassível.
CORTA PARA:
CENA 4. MANSÃO DOS GODOY BUENO. SALA DE ESTAR. INT. NOITE
SONOPLASTIA — O SILÊNCIO DENSO DE UMA NOITE EM RUPTURA. UM METAL SENDO ENCAIXADO, ARMAS SENDO ENGATILHADAS À DISTÂNCIA. UM LUXO EM DECLÍNIO.
A sala repousa sob uma penumbra dourada, uma elegância morta-viva. A lareira ainda arde — discreta, quase cínica — lançando sombras nos rostos tensos de Marco Aurélio, Armand e Daniel, sentados ao redor de uma mesa de centro com copos de uísque intocados. Eles falam pouco. Quando falam, tropeçam nos silêncios. A noite tem gosto de algo prestes a azedar.
O clima não é apenas denso — é cúmplice.
De repente, o som seco de saltos na escada. Três pares de olhos se voltam. O tempo, mais uma vez, vira artifício. Tudo desacelera.
Vivi, de jaqueta de couro, entra como uma sentença. A arma em punho, os olhos ardendo. Ao lado dela, Nanny Who segura uma espingarda de cano serrado com o desprezo de uma justiceira cansada. Lari Pacotão, com um vestido que desafia o luto e o pudor, ostenta uma submetralhadora prateada, como se fosse uma clutch de luxo. Madson, de semblante glacial, traz uma Glock discreta à mão. Patrícia, trêmula mas decidida, segura um revólver com a mesma firmeza com que segurava a própria sanidade dias antes.
Elas não são um exército. São um grito.
VIVI — (firme, sem hesitação) Clara ligou. Valquíria fugiu da polícia. E se ela aparecer aqui, a gente recebe com chumbo.
Daniel se levanta. Está pálido. É a primeira vez que vê o medo do outro lado.
Armand murmura algo em espanhol — um som de rendição.
Marco Aurélio encara Vivi como quem vê a verdade sem maquiagem. E treme.
LARI — (em pajubá, levantando a arma com ironia venenosa) Se essa vaca entrar aqui, vai tomar pipoco no topete, mana!
NANNY WHO — (em inglês arrastado) I don’t care if she’s rich. I care if she breathes.
MADSON — (sem emoção) Ela matou Carolina.
PATRÍCIA — (com a voz falhando, mas firme) Se ela estiver metida com a Laura e mandou matar minha mãe (pausa) eu vou apagar o rosto dela com essas balas.
O momento é surreal, quase operístico. A elite, armada até os dentes, em guerra consigo mesma. A sala da mansão, palco de tantas farsas, agora é arena.
Marco Aurélio tenta falar, mas Vivi levanta a mão. Um gesto de silêncio. Um gesto de poder.
VIVI — (calma, quase maternal) Fica com os rapazes. Isso é entre mulheres.
Os homens congelam. Inúteis. O tempo agora pertence a elas.
A câmera sobe a escadaria. Lá em cima, uma vitrola gira sozinha — sem som, como se tivesse desistido de tocar. O silêncio reina, carregado de promessas de sangue e acerto.
CORTA PARA:
CENA 5. AVENIDA PAULISTA. EXT. NOITE
SONOPLASTIA — “WINTERSUN” — BORN
A trilha melancólica se impõe sobre o barulho das sirenes, criando um contraste quase poético: a tragédia que se desenrola em alta velocidade sob as luzes frias da Avenida Paulista.
Dois carros da polícia cortam o trânsito com brutalidade, abrindo caminho por entre os poucos veículos que ainda se atrevem a circular. À frente, o automóvel de luxo de Valquíria Godoy Bueno rasga a noite como um cometa negro. No banco do passageiro, Serpentinha pressiona o ombro ferido, o sangue escorrendo entre os dedos, o rosto pálido. Ele geme.
SERPENTINHA = (baixo, quase suplicando) Eu preciso de um hospital, Valquíria. Não vou resistir…
VALQUÍRIA - (sem tirar os olhos da estrada, fria) Você sempre foi tão dramático. Quase uma bailarina ferida.
Ela acelera. A cidade vira borrão.
A perseguição é um balé — carros deslizando, derrapagens controladas, curvas fechadas. Tudo filmado com câmera nervosa e edição pulsante, como num clipe dirigido por Lars von Trier em sua fase noir.
Valquíria desvia por uma viela estreita, sobe na calçada, corta por um terreno baldio escondido sob o viaduto e freia com violência. Serpentinha solta um gemido de dor.
Sem cerimônia, ela abre a porta do carro, pega o amante pelos cabelos e o arrasta para fora. O chão de terra úmida o acolhe como um túmulo aberto.
VALQUÍRIA - (ao pé do ouvido dele, quase um sussurro) Eu te amei, sim. Mas amo muito mais o meu pescoço.
Ela se afasta um passo. Depois outro.
VALQUÍRIA - (sarcástica) Você queria um hospital? Pois bem. Que seja esse. De barro, estrelas e abandono.
Ela entra no carro, liga o motor. O rugido do motor encobre os sons das sirenes que já se aproximam. Ao longe, as luzes vermelhas e azuis dançam como fantasmas em festa.
A viatura da delegada Clara chega. Ela desce com rapidez, arma em punho. Ao ver Serpentinha caído, ensanguentado, grita:
CLARA - Entrega a arma, agora!
Mas Serpentinha só levanta o olhar. A morte já o alcança, mas seus lábios ainda se movem.
CLARA - (ajoelhando-se, urgente) O que você quer dizer? Fala!
Com um fio de voz, ele se inclina, traz Clara para perto e sussurra algo no ouvido dela. Ela se afasta de supetão, os olhos arregalados. Clara respira fundo. O corpo de Serpentinha desfalece. Morto.
CLARA - (para os policiais) Vamos. Rápido. Direto pra mansão. Agora.
Ela entra no carro da polícia, bate a porta com força. O som das rodas queimando o asfalto explode na trilha sonora. A câmera sobe. De cima, vemos São Paulo se apagar lentamente.
CORTA PARA:
CENA 6. MANSÃO DOS GODOY BUENO. FACHADA. EXT. NOITE
SONOPLASTIA — “WINTERSUN” — BORN
A noite desce pesada, quase sufocante, envolvendo a mansão Godoy Bueno num manto espesso de sombras e silêncio tenso — como se o próprio ar segurasse a respiração. Valquiria desce do carro descalça, com a elegância cansada de quem carrega não só o corpo machucado, mas o peso de segredos capazes de enterrar impérios. O contato dos pés descalços no calçamento frio ecoa como um som seco e abrupto que corta a noite, marcando sua chegada como um ultimato velado.
A respiração pesada mistura-se ao cheiro úmido das árvores e ao frio que já pressagia tempestade. Dois carros pretos chegam como vultos de uma sentença, trazendo consigo homens com olhos de predador e mãos firmes no coldre. Eles não estão ali para cumprimentar, mas para garantir que a verdade não escape da sombra.
Valquiria observa, dura e fria, uma rainha cercada de lobos, ciente de que o jogo virou. Cada passo seu pelo jardim é uma declaração de guerra silenciosa — o contraste cruel entre a opulência da mansão, com suas luzes douradas, e a escuridão que cresce dentro dela, refletida na determinação implacável daquela mulher.
A câmera desliza lenta, quase reverente, pelo rosto de Valquiria, captando o fogo contido, o medo que se recusa a mostrar e a certeza amarga de que nada jamais será igual depois desta noite.
Essa é a noite onde se paga preço e se cobra dívida, em um duelo de poder e sobrevivência — onde o luxo é fachada e a traição, a moeda corrente.
CORTA PARA:
CENA 7. MANSÃO DOS GODOY BUENO. SALA DE ESTAR. INT. NOITE
SONOPLASTIA — O SOM SECO DE TIROS ECOA DISTANTE. UMA PORTA SENDO ARROMBADA.
O imenso salão da mansão, recoberto por tapeçarias persas e silêncios históricos, carrega agora o peso de uma tragédia anunciada. A opulência parece desbotada diante da tensão que escorre pelas paredes de mármore e espelhos bisotados.
De um lado da sala, os homens — Armand, Daniel e Marco Aurélio — estão sentados em poltronas de veludo vinho, paralisados, como se aguardassem sua sentença. Não há palavras, só olhos arregalados, que já viram demais e ainda assim não sabem de nada.
No outro extremo, dominando a cena como amazonas contemporâneas em salto agulha, estão Nanny Who, Madson, Patrícia, Lari Pacotão e Vivi. Cada uma empunha uma arma com uma mistura de elegância e convicção feroz. Não é mais um embate de classes — é guerra de sobrevivência.
A tensão silente é rasgada pela entrada de Valquíria, que surge triunfante como uma imperatriz romana atravessando o Coliseu em chamas. O casaco creme cobre seu corpo como armadura, e uma taça de vinho tinto dança entre seus dedos — ela reina até sobre o caos. Atrás dela, capangas armados com olhares inexpressivos cruzam o salão como a morte uniformizada.
VIVI - (apontando a arma, feroz) Renda-se, Valquíria. O jogo acabou.
VALQUÍRIA - (sorriso venenoso) Querida, o jogo só acaba quando eu disser.
Ela avança com a calma de quem sempre controlou os fios da marionete. O salto ecoa pelo mármore como o compasso da tragédia. Cada frase é um bisturi.
VALQUÍRIA - Você, Vivi, era só um artifício. Um diamante de segunda mão, pra substituir o original. Era pra ocupar o lugar da sua irmã e calar a boca. Mas não. A maldita da Laura teve que voltar dos mortos, cheia de fantasias de justiça.
Ela ri — o som é seco, cortante, como uma gargalhada de luto.
VALQUÍRIA - Tentei conter aquela louca, mas não, ela queria vingança. E saiu matando todo mundo.
PATRÍCIA - (gritando) Você ajudou a matar minha mãe, sua cobra!
VALQUÍRIA - (sarcástica, quase divertida) Se continuar gritando assim, garota, vai ser responsável pela sua própria morte.
Marco Aurélio se contorce na poltrona. Está desfeito. Um homem despido do mundo.
MARCO AURÉLIO - Mãe, pelo amor de Deus...
DANIEL = (sem fôlego) Você foi cruel. Eu amava a Carolina.
VALQUÍRIA = (tom glacial) Vocês amam mesmo é o dinheiro. Se o que ela sabia viesse à tona, todos vocês iam ter que trabalhar. Preferiram calar. Eu fiz o que tinha que ser feito.
Vivi está em combustão interna. O rosto trêmulo, os olhos de um vermelho que denuncia uma dor ancestral.
VIVI - Você tirou minha irmã de mim. Tirou a chance de eu conhecer ela. Me fez viver uma mentira!
VALQUÍRIA - (sorrindo com desdém) Ah, por favor e você adorou. Até na cama do Marco Aurélio você se meteu.
Marco levanta como se quebrasse em mil pedaços. Vivi tenta segurá-lo.
Então, Valquíria gira suavemente o braço e aponta a arma para Vivi. Um movimento felino.
VALQUÍRIA - Agora vou dar cabo da outra. Uma de cada vez.
A porta escancara.
CLARA entra. Firme. Arma em punho. Olhar em brasa.
CLARA - (grita) Não mata a minha irmã!
Silêncio absoluto. Um novo peso cai sobre a sala. Os capangas de Valquíria se viram. Tudo em suspenso.
VIVI - (em choque) Irmã?
CLARA – Sim. Serpentinha me contou antes de morrer. Meu pai, já falecido, morava em Santa Catarina antes de vir pra São Paulo. Ele se envolveu com Olivia e... vocês nasceram. As gêmeas. Ele nunca soube. Mas Valquíria sabia. Sempre soube. Desde o início do namoro com o Marco, ela investigou Carolina. Sabia da existência de você, Vivi..
VIVI - (ferida, brutal) Você podia ter me ajudado. Anos! Eu passei fome! Frio! Vendi meu corpo! E você assistiu de camarote!
VALQUÍRIA - (mortal) Minha querida, cada um joga com as cartas que tem. Você se saiu até bem. Melhor do que eu esperava.
CLARA - (arma firme) Baixa a arma, Valquíria. Ou eles atiram.
VALQUÍRIA - (sorri com um misto de altivez e desdém, como quem já sobreviveu ao pior) Minha querida, nem mesmo a morte tem força suficiente pra me dobrar.
Clara puxa o gatilho.
Um estampido seco corta o ar. O couro do casaco de Valquíria rasga com o impacto do projétil, que erra por milímetros a carne. Ela gira nos próprios calcanhares como uma pantera acuada — mas nunca frágil.
Os capangas reagem de imediato.
TIROS.
A mansão, até então um templo da sofisticação e do silêncio cúmplice, mergulha no caos. Tapeçarias centenárias voam como fantasmas agônicos. Estátuas de mármore tombam, rachadas. Taças de cristal explodem em estilhaços finos como neve de vidro.
Clara atira com precisão, recarregando como uma justiceira moderna. Uma luta por justiça.
Valquíria corre em direção à escadaria, sua silhueta envolta por uma aura de sombra e glória. O salto bate ritmado nos degraus, cada passada como uma nota dissonante na sinfonia do caos.
Marco Aurélio e Vivi correm atrás dela, tomados por uma adrenalina que mistura vingança, incredulidade e algo quase primal: a necessidade de pôr fim a um império de mentiras.
A câmera se afasta em travelling lento, deixando para trás um cenário de guerra: molduras tortas, sangue nos azulejos, ecos de gritos, estalos, promessas de que nada mais voltará a ser como antes.
O passado, enfim, invadiu o presente — não como lembrança, mas como sentença.
CORTA PARA:
CENA 8. MANSÃO DOS GODOY BUENO. SUÍTE DE VALQUÍRIA. INT. NOITE
SONOPLASTIA — “WINTERSUN” — BORN
O som grave da música atravessa as paredes espessas da mansão como um lamento moderno, abafado, quase um presságio. O travelling lento da câmera percorre o corredor silencioso até a suíte — um espaço de luxo opressivo, onde cada detalhe grita poder antigo tentando resistir ao colapso iminente.
Do outro lado da porta, Valquíria, outrora imbatível, agora sangra.
O ombro está estourado, a seda da blusa branca colada ao corpo feito segunda pele, encharcada de vermelho. Mas ela se move com uma dignidade quase teatral — como quem encena a própria queda num palco iluminado apenas pelo som de gotas se chocando contra o mármore.
Ela gira o disco de um cofre embutido com dedos trêmulos, mas firmes. O clique da abertura tem algo de final. De inevitável. De apocalipse íntimo.
Dentro, ela retira o passaporte como se fosse um talismã — a promessa de fuga, ou talvez só a ilusão de que o poder protege até a beira da morte. Seus olhos, mesmo turvos, brilham com a altivez dos que governaram impérios com um olhar — e perderam tudo numa única bala mal colocada.
De repente — a explosão da porta.
Vivi e Marco Aurélio entram. Os olhos dilatados, as mãos armadas, os corações em cacos. Eles estão ali para acabar com o que ainda sangra — ou talvez só para tentar impedir que tudo acabe.
VIVI - (seca, firme) Se rende, Valquíria. Ainda dá pra sair viva disso.
Valquíria não treme. Sorri com o canto da boca. Um sorriso enviesado, trágico, que tem gosto de ferro e orgulho. Há sangue nos dentes. Há veneno no olhar.
VALQUÍRIA - Ah, minha querida, viver no Brasil já é uma penitência. Imagina numa cadeia tupiniquim. Não, obrigada.
MARCO AURÉLIO - (movendo-se) Mãe, por favor acaba com isso. Abaixa a arma. A gente pode resolver, juntos.
VALQUÍRIA - Você (ri fraco) Se tivesse pensado com a cabeça de cima, Vivi já estaria morta. E nós dois, meu amor, já estaríamos em Genebra. Num chalé. Com neve na janela e champanhe no gelo.
Ela manca um passo. O sangue escorre pelo braço. Ainda assim, está ereta como uma rainha deposta que se recusa a curvar-se. O orgulho, intacto. O coração, uma bomba-relógio.
VALQUÍRIA - Eu sempre te protegi, Marco. Sempre. Cada merda tua, cada escândalo, cada chantagem. Eu cobri. Eu calei. E agora? Agora você me aponta uma arma?
Por um segundo, ninguém respira.
Então — o disparo.
Valquíria atira. A bala raspa a perna de Vivi, que cai com um grito sufocado. O sangue marca a manga de seu vestido como uma assinatura fatal.
O instinto vence a hesitação. Marco Aurélio atira de volta.
Valquíria é lançada contra a parede. A cabeça tomba. O corpo desliza como uma boneca que perdeu o fio que a mantinha em pé.
Ele corre até ela. Os braços a seguram no chão. O sangue jorra como se o corpo ainda lutasse contra a morte iminente.
MARCO AURÉLIO – Mãe, mãe, não, me perdoa...
VALQUÍRIA - (a voz falha, mas doce) Ainda bem que foi você e não ela, imagina, morrer no Brasil e pelas mãos de uma puta. Mas (tosse) dói. Dói saber que meu próprio filho, meu menino (pausa) foi quem me traiu.
A respiração cessa. O corpo pesa.
O silêncio que se segue parece eterno. Só se ouve o som do sangue se misturando ao mármore — e os soluços de Marco, despido do último fiapo de poder.
A câmera sobe.
De cima, vemos a arquitetura cruel daquela tragédia: o corpo da matriarca vencida, a herdeira sangrando, o filho ajoelhado num luto sem nobreza.
CORTA PARA:
CENA 9. SÃO PAULO. DIA / NOITE
SONOPLASTIA — “WINTERSUN” — BORN (INSTRUMENTAL)
A cidade pulsa, mas pulsa alheia — como quem segue viva por inércia. São Paulo gira, indiferente, enquanto os dramas humanos se esfarelam nas calçadas.
CEMITÉRIO – DIA
A luz dura do meio-dia recorta o pequeno cortejo. O enterro de Valquíria Godoy Bueno — outrora a mulher mais temida da elite paulistana — se dá com a mesma frieza com que ela destruiu reputações. Nada de flores, discursos ou lágrimas públicas. Apenas o vento e o barulho cru da terra encontrando o caixão.
Daniel, de óculos escuros, parece esculpido em mármore. Marco aurélio, à sombra, alterna o olhar entre o túmulo e o chão, como quem tenta entender em que momento deixou de ser filho e passou a ser sobrevivente. Nenhum dos dois reza. A ausência de fé é silenciosa e ensurdecedora.
CORTE RÁPIDO PARA:
ESCRITÓRIO – GODÓY BUENO EXPORTAÇÕES – INTERIOR – TARDE
Policiais federais circulam entre móveis de luxo. Pastas são empilhadas como cadáveres administrativos. Um agente retira da parede um retrato dourado de Valquíria sorrindo ao lado do falecido marido — símbolo de uma era agora extinta. A imagem vai para uma caixa de papelão, selada com fita adesiva. A dinastia foi desativada.
CORTE PARA:
AVENIDA PAULISTA – ENTARDECER
A multidão caminha como se nada tivesse acontecido. Cada rosto carrega sua própria tragédia invisível. No meio disso, Vivi, de preto, véu esvoaçante, atravessa a rua. O semáforo pisca verde. Ela pisa firme. Não chora. Não permite. Como aprendeu com Valquíria: o luto não deve ser exibido, deve ser usado como arma.
CORTE PARA:
FACHADA DO TEATRO MUNICIPAL – NOITE
O letreiro iluminado anuncia a estreia: O Lago dos Cisnes. No centro do cartaz, a figura imponente de MADSON, vestida como o Cisne Negro — símbolo de uma ressurreição. Viva. Outra. Melhor. O público se amontoa na entrada, alheio às tragédias reais que alimentaram aquela dança.
Um close na plateia revela rostos conhecidos: Clarisse, Lari Pacotão, Patrícia — todos em silêncio, como se entendessem que naquela noite, o espetáculo está além do balé. É a vingança da sobrevivência.
A trilha cresce. Na tela: UM MÊS DEPOIS
A câmera sobe, revelando a cúpula do teatro, a cidade pulsando abaixo como um organismo cheio de cicatrizes. Cada luz acesa é um segredo ainda não revelado.
E São Paulo segue. Impiedosa. Inesgotável. Inocente e cúmplice.
CORTA PARA:
CENA 10. TEATRO MUNICIPAL. PALCO. INT. NOITE
SONOPLASTIA — "SWAN LAKE" — ORQUESTRA FILARMÔNICA - AO VIVO
As luzes da ribalta recortam o palco em tons azulados. A névoa rasteira beija o chão envernizado enquanto Madson entra em cena. Seu corpo é pura precisão. Vestida como Odette, ela flutua — ou melhor, desafia o ar, fazendo de cada gesto um sussurro de dor e beleza. Seu rosto carrega uma serenidade trágica, como quem conhece a profundidade do amor impossível.
A câmera se aproxima de seu olhar — há nostalgia, há superação. Seus movimentos não dançam: contam. Contam a história de uma mulher que renasceu sob o disfarce da morte. Cada giro é um segredo revelado. Cada salto, uma cicatriz. A plateia prende o fôlego. Madson não interpreta — Madson expurga.
A transição começa. Ela gira, e a luz a engole. Quando reaparece, já é Odile — o cisne negro. Seus olhos agora têm raiva, seu corpo exala poder. A suavidade dá lugar à intensidade. O domínio do palco é absoluto. A música cresce, o delírio também. Odile triunfa. Mas Madson, por trás, parece travar sua própria guerra. Uma guerra silenciosa entre o que foi arrancado dela e o que ela decidiu devolver ao mundo.
E então vem o terceiro ato.
O teatro mergulha num silêncio tumular. A escada é iluminada como uma ponte entre o mundo real e o etéreo. Madson, ainda no personagem, ainda como a mulher que sobreviveu a tudo, sobe degrau por degrau como quem sobe uma sentença. Cada passo seu carrega memórias que o público desconhece — mas sente. Um espectro entre o mito e a sobrevivente.
No alto, ela para. E o tempo curva-se diante dela. Seus olhos percorrem a plateia. No centro, Vivi, emocionada, as lágrimas correndo sem pudor, como se toda a sua vida tivesse culminado nesse momento. Marco Aurélio, ao lado, segura sua mão. O toque é real, maduro — não de amantes, mas de quem compartilha segredos e cicatrizes.
Daniel, mais ao fundo, a observa com um olhar amargo, cheio de arrependimento. Não é mais desejo — é perda, pura e crua. Patrícia, altiva, ergue o queixo com a mesma força que já levantou do luto. Seus olhos estão secos, mas sua postura grita por justiça.
Nanny Who e Lari Pacotão, sentadas juntas, estão deslumbradas. A primeira contém o choro com um leque florido; a segunda, de vestido brilhante, sussurra um "é ela" para ninguém em particular — como se assistisse a uma divindade trans sair da cova e tomar o mundo.
Armand não se move. Um homem europeu, sem palavras para tanta brasilidade, apenas olhos marejados. Cecília e Carlos, enrijecidos, mantêm a compostura de quem carrega culpa. Sabem mais do que fingem e fingem menos do que gostariam.
Marcos, encostado na coluna lateral, é só orgulho. Um homem que viu a queda e agora testemunha o renascimento. Os aplausos dele não são para a bailarina — são para a mulher.
E então, Madson se lança. O corpo no ar, em câmera lenta, é pura abstração. A trilha cresce. O mundo silencia. A gravidade cede. O tempo desaparece. Ela mergulha no vazio como quem escolhe sua liberdade.
Cai sobre o colchão escondido. Um segundo. Dois. E então… levanta-se.
Viva. Inteira. Indomável.
A plateia explode. Palmas, gritos, lágrimas. Ovacionada. Madson está ali, sob a luz, não mais Odette ou Odile. Apenas Madson. A mulher que sobreviveu sendo todas.
CORTA PARA:
CENA 11. RESTAURANTE. INT. NOITE
SONOPLASTIA – “NÃO NEGUE TERNURA” (FEAT. LUEDJI LUNA) – ZÉ MANOEL
O restaurante é elegante, discreto, banhado em luz âmbar e sombras delicadas. O som dos talheres é abafado pela música suave e pelas conversas ao fundo. O mundo parece desacelerar quando a câmera encontra Madson e Marcos, sentados à mesa perto da janela. A cidade pulsa do lado de fora, indiferente ao que acontece ali dentro.
Madson sorri. Seus olhos brilham com algo entre alívio e encantamento. Ela segura a mão de Marcos por cima da mesa.
MADSON - Obrigada. Por ter salvado minha vida em Paraty. Sem você, eu jamais teria essa noite. É tão bom te ter por perto, mas é ainda melhor ter recuperado minha vida aqui em São Paulo.
MARCOS - (olhando para ela, firme, doce) Você pode ter as duas coisas. (pausa) Me ofereceram um cargo de chef aqui. Em São Paulo.
Madson arregala os olhos, genuinamente feliz.
MADSON – Marcos sso é incrível!
Ele sorri. Mas não solta sua mão.
MARCOS – Mas tem uma condição para mim aceitar.
Ela o encara.
MARCOS -Que você namore comigo.
Ela não responde com palavras. Apenas sorri e o beija. Um beijo cheio de verdade, de presente e futuro ao mesmo tempo. As pessoas ao redor desaparecem. Só os dois existem.
Neste momento, Nanny Who surge, impecável em seu vestido longo preto e brincos de pérola. Ela se aproxima da mesa com elegância discreta. Madson se levanta com delicadeza.
MADSON - Convidei ela pra jantar com a gente. Achei que vocês precisam conversar. (sorri para os dois) Com licença.
Ela se afasta, deixando os dois a sós. Marcos se mostra um pouco desconcertado. Nanny Who se senta. Ela observa o rapaz com ternura.
NANNY WHO - Conheci seu pai. O Luisão. (pausa) Era um bom sujeito. Amava muito a sua mãe.
Marcos abaixa o olhar. A dor é antiga, ainda não cicatrizada.
NANNY WHO - Mas o Luisão por mais que amasse a mulher, ele não amava a si mesmo. Não o corpo que tinha. (pausa) Ele sempre sonhou em ser Luisinha.
O tempo parece parar. A respiração de Marcos se suspende.
NANNY WHO - Ele abandonou sua mãe sem saber que ela estava grávida. Foi em busca de si. No começo, era uma travesti que batia ponto no calçadão. (sorri com tristeza) Depois, consegui fazer a cirurgia. E virei quem você tá vendo hoje. A Nanny Who.
Marcos se deixa levar pelo silêncio, pelas palavras que pesam mais do que o ambiente inteiro. Ele engole em seco.
MARCOS – Você é o meu pai?
Nanny Who respira fundo. O momento é imenso, íntimo.
NANNY WHO - Sou.
Ela baixa os olhos. A vulnerabilidade é genuína.
NANNY WHO - Me perdoa.
Marcos se levanta. Vai até ela. A abraça.
MARCOS - Nunca peça perdão por ser você mesma.
Eles se abraçam. Um abraço longo, definitivo. Um recomeço. A câmera gira lentamente ao redor dos dois. A música toma o primeiro plano. O amor, finalmente, encontra sua forma — imperfeita, dolorosa, real.
CORTA PARA:
CENA 12. SÃO PAULO / RIO DE JANEIRO. EXT. NOITE
SONOPLASTIA — "PADAM PADAM" – KYLIE MINOGUE
O beat eletrônico pulsa como um coração viciado — frenético, suado, decadente. É a trilha sonora da noite que não dorme e que morde.
Cortes rápidos intercalam a Rua Augusta, em São Paulo, e o Calçadão da Avenida Atlântica, no Rio. As duas cidades gotejam luxúria, ressentimento e sobrevivência.
Na Augusta, os letreiros de neon piscam como mentiras bonitas. Travestis exaustas mascaram a tristeza com glitter. Taxistas cochilam encostados nos volantes. Um vendedor de rosas grita "última chance de amar!" como um profeta de esquina.
No Rio, a brisa salgada do mar não refresca — ela lubrifica o pecado. Corpos à mostra, olhares famintos. Beijos pagos, abraços ensaiados. Cada poste é um altar profano.
E então ela surge.
Isabella.
Não mais Isabella, a empresária fria e bilíngue que finge elegância na luz do dia.
Agora, Xana Xanaz — criação e monstro de si mesma.
Ela atravessa a noite como um cometa amaldiçoado. O vestido vermelho metálico molda seu corpo como uma armadura de sedução. Os cabelos loiros platinados esvoaçam como uma tragédia glamurosa. O batom borrado não denuncia desleixo — é estética da desilusão.
Seus olhos brilham com a violência dos que nunca mais choram.
Ela carrega um cigarro como uma arma — e fuma como quem saboreia a próxima ruína.
Um homem se aproxima. Terno barato, olhar ansioso. Ele balbucia algo.
Xana dá um riso curto, cruel.
Vira-se de lado, expõe o pescoço, o colo, o desprezo.
XANA XANAZ - (em espanhol, carregado de veneno e perfume barato) No soy barata, cariño, pero para ti. puedo ser un poquito más cara.
Ela dá um tapa suave no rosto dele — mais charme do que agressão — e caminha, deixando atrás de si um rastro de perfume, promessa e desgraça.
Ela não está vendendo o corpo. Está comprando poder. A trilha cresce. A cidade arde. Xana ri. Ela não sobrevive. Ela lucra com o fim dos outros.
CORTA PARA:
CENA 13. RIO DE JANEIRO/SÃO PAULO. EXT. AMANHECER
SONOPLASTIA – “PADAM PADAM” – KYLIE MINOGUE
O dia nasce ao som pulsante da música. Os primeiros raios de sol recortam os contornos dos prédios, revelando um Rio de Janeiro sensual, ainda úmido da madrugada. O mar beija a orla com ares de espetáculo, enquanto os primeiros trabalhadores cruzam as calçadas. A imagem corta para São Paulo — sua irmã inquieta e acelerada. O céu ainda carrega tons de cinza, mas os faróis dos carros já desenham trilhas vivas pelas avenidas.
Nos dois cenários, os letreiros da LACRE TV ganham destaque. No Rio, o prédio espelhado reflete a Baía de Guanabara. Em São Paulo, é uma torre vertical e imponente, espremida entre o concreto e o céu.
A câmera dança entre as fachadas — como se a própria cidade respirasse com o ritmo de Kylie Minogue — enquanto vemos a movimentação começando: jornalistas chegando, maquiadores abrindo maletas, câmeras sendo testadas, figurinos sendo passados.
A expectativa está no ar. Algo está prestes a acontecer.
CORTA PARA:
CENA 14. ESTÚDIO DO PROGRAMA DE ANA MARIA BRAGA. INT. DIA
SONOPLASTIA — “MAIS VOCÊ” – INSTRUMENTAL
A manhã explode em cores — o estúdio do Mais Você parece mais vivo do que nunca. Há uma aura de celebração no ar: o cenário florido, o café fumegante, o bolo cenográfico exuberante e o famoso pão de queijo, recém-saído do forno, fazem o Brasil parecer menos cruel por um instante.
Ana Maria Braga, radiante, sentada em sua poltrona creme, segura a caneca com estampa de girassol como quem segura o coração do país.
Louro Mané paira ao fundo, curioso.
ANA MARIA - (cheia de doçura e firmeza) Hoje a gente vai falar de amor. Mas não qualquer amor. Um amor desses que escancara a alma, que vira manchete, que desafia preconceito, escapa do escárnio e vira símbolo. (olha para a câmera, mais íntima) Eles casaram, pararam a internet, e deixaram metade do Brasil com lágrimas nos olhos — e a outra metade querendo saber onde compra uma Lari Pacotão.
Pausa. Um brilho emocionado nos olhos.
ANA MARIA - (sorrindo, acolhedora) Com vocês: Lari Pacotão e Armand!
Aplausos. Entra Lari Pacotão, deslumbrante, de vestido preto com brilho discreto, coque alto, olhos delineados e andar felino. Ao lado dela, Armand, um príncipe moderno: terno de linho bege, lenço de cetim roxo no bolso, barba feita. O sotaque denuncia sua origem espanhola. O olhar, sua devoção.
ANA MARIA - (abraçando Lari, depois apertando a mão de Armand) Lari, Armand que felicidade ter vocês aqui. Armand, me conta: você veio pro Brasil fazer negócios e saiu casado?
ARMAND - (com um sorriso leve) Sí, yo vine a invertir. Hoteles, bienes raíces, pero encontré mucho más. Encontré a ella. La única inversión que realmente vale la pena.
ANA MARIA - (entre risos) E não desvalorizou, hein, amor? Pelo contrário.
LARI PACOTÃO - (rindo, depois séria, tom de manifesto) A gente não casou só pra sair na Caras, Ana. A gente casou pra dizer que a nossa história importa. Que a gente também pode andar no tapete vermelho sem pisar em ovos. (olha pra câmera, com firmeza) Ser transexual nesse país é assinar um atestado de coragem. Mas eu não vim do morro pra viver escondida. Eu vim pra brilhar, sim. E com amor. Com afeto. Com propósito.
ANA MARIA - (tocada, aperta a mão de Lari) Você é um símbolo, Lari. E faz isso com humor, com charme, com aquele brilho que vem de quem sobreviveu.
ARMAND - (sorri para Lari, fala em espanhol) Ella me enseñó lo que significa la dignidad. El amor. El coraje. No hay país más duro que Brasil, pero tampoco hay amor más fuerte.
ANA MARIA - (voltando ao tom alegre) E me conta: já pensaram em filhos?
LARI PACOTÃO - (debochada, mas sincera) Pensar, mana? Já botei o nome! Se for menina: Doralice. Se for menino: Ludovico. Mas com dois “L”.
ARMAND -(orgulhoso) Ya iniciamos el proceso. Será adopción. El mundo necesita más familias que escuchen, no sólo que griten.
Câmera gira em leve slow motion enquanto a trilha instrumental retorna. Ana Maria, Lari e Armand brindam com suco de acerola. As mãos se encontram no centro da mesa, em silêncio cúmplice. A imagem congela — como uma fotografia histórica.
TEXTO NA TELA (OFF): "O amor não muda o mundo. Mas faz com que o mundo valha a pena."
CORTA PARA:
CENA 15. HOSPITAL PSIQUIÁTRICO. JARDIM. EXT. DIA
SONOPLASTIA — “ÁGUAS DE MARÇO” — INSTRUMENTAL
O jardim da clínica repousa sob uma luz suave, quase etérea. Tudo parece suspenso, como se o tempo hesitasse em avançar. Há uma tristeza doce no ar, uma calma inquietante que só os lugares atravessados pela dor sabem carregar. As árvores, antigas e silenciosas, assistem. Uma borboleta passa — um presságio ou um recomeço?
Vivi, em vestido claro, caminha ao lado de Olivia, cuja fragilidade salta aos olhos. Não apenas física — mas emocional, quase metafísica. Olivia parece um espectro à beira de se desfazer, mas há cor no olhar. Um início de volta.
As duas se sentam em um banco sob a sombra de uma árvore ancestral.
Vivi segura as mãos da mãe com ternura contida. Não é o gesto de quem esquece, mas de quem decide lembrar sem rancor. O toque carrega a ambiguidade do amor que resistiu ao abandono.
OLIVIA - (voz baixa, como quem fala do fundo de um abismo) Eu te deixei e não foi porque não te amava. (faz pausa, respira como quem cava) Eu estava doente. Não sabia ser mãe. Tive medo. De mim. Do mundo. De você.
VIVI - (olhar fixo, não há raiva, há lucidez) Você me deixou com uma vizinha, Olivia. E não voltou.
OLIVIA - Mas eu amei você, minha filha. Com o que restava de mim. Do meu jeito torto. Não entreguei você ao Carlos. Nem à Cecília. Não como fiz com a Carolina.(pausa)A culpa ainda me arrasta pelos calcanhares.
Um silêncio. Denso.
Vivi passa a mão nos cabelos da mãe. Um gesto pequeno, mas que carrega os anos que não existiram entre elas. É a infância não vivida buscando um afago tardio.
VIVI - Eu te perdoo. Porque eu te amo. E porque só o amor pode colar o que a loucura quebrou.
Olivia chora. Não é o choro histérico de antes. É um choro silencioso, de quem enfim encontra abrigo em si mesma.
VIVI - Mas você precisa continuar aqui. Precisa melhorar. Por mim. Por você. Por ela.
OLIVIA - (confusa) Ela?
VIVI - Eu trouxe uma surpresa. Mas antes disso. Você disse que tinha algo pra me contar. Sobre a Helena.
OLIVIA - (assente, como quem entrega um segredo com gosto de veneno) Se algo acontecesse com ela pediu para te contar.
INSERT — FLASHBACK — MANSÃO DE HELENA. BANHEIRO. INT. DIA
As imagens surgem como memórias encharcadas: granuladas, abafadas, quase líquidas.
Helena, sempre impecável, ajoelha-se com frieza diante do vaso sanitário. Gira uma peça da cerâmica. Um segredo escondido na arquitetura da loucura.
Atrás de um azulejo, revela-se um compartimento secreto. Um envelope espesso, selado com cera vermelha. Um artefato digno de um testamento ou de uma bomba.
HELENA - (olhos fixos em Olivia) Se algo me acontecer. Você diz onde encontrar esse envelope à Vivi. Só ela.
FIM DO FLASHBACK. VOLTA À CENA.
Olivia segura as mãos de Vivi com urgência. Uma força quase sobrenatural atravessa o toque.
OLIVIA - Promete que vai buscar o que está lá?
Antes que Vivi possa responder, Cecília surge ao longe com um sorriso tímido. Ao lado dela, Carlos, e entre os dois, como um raio de esperança: Aurora, uma menina de olhos muito vivos e cachos de tempestade.
Vivi se levanta. As lágrimas já estão lá, sem anúncio.
VIVI – Olivia, essa é Aurora. Filha da Carolina. Sua neta.
O tempo suspende. Olivia cai de joelhos — não por fraqueza, mas como se estivesse diante de um milagre. Seus olhos brilham como não brilhavam desde a juventude.
Ela toca o rosto da menina com as mãos trêmulas, como quem abençoa, como quem recomeça.
OLIVIA - (sussurrando) Minha neta. Eu vou te amar pra sempre. Prometo.
Aurora a abraça.
A câmera se afasta lentamente. As três ficam pequenas, como figuras de um vitral: a mulher quebrada, a filha redimida, a neta ainda intacta. O vento sopra pelas folhas. A esperança, talvez, começa por ali.
CORTA PARA:
CENA 16. AEROPORTO DE SÃO PAULO/CONGONHAS – SALA VIP – INT. DIA
O espaço é sofisticado, quase claustrofóbico em sua elegância contida. Luzes discretas refletem nos vidros e no metal polido, dando um brilho frio ao ambiente. O murmúrio baixo dos poucos presentes se mistura ao tilintar dos copos.
Patrícia e Daniel estão sentados lado a lado em poltronas de couro creme, cada um segurando uma taça de champanhe. O líquido dourado brilha sob a luz suave, um pequeno símbolo de vitória em meio ao caos recente. Eles brindam com um sorriso contido, um pacto silencioso de sobrevivência.
DANIEL - (sorrindo com uma leve ironia) Sabe, acho que esse mochilão vai ser mais do que uma fuga, vai ser o começo de algo que não tivemos coragem de tentar antes.
PATRÍCIA - (olhando para ele, com sinceridade e um toque de vulnerabilidade) É bom saber que, apesar de tudo, podemos contar um com o outro. Amigos no fim das contas, não importa o que aconteceu.
Há uma pausa carregada de significado, onde tudo o que não foi dito flutua no ar entre eles.
O som distante de aviões decola e pousa fora da sala VIP reforça a ideia de recomeço, de viagens e destinos desconhecidos — como a própria vida que ambos agora escolhem seguir.
A câmera afasta-se lentamente, deixando-os imersos na luz amarelada, brindando a um futuro incerto, mas pela primeira vez, esperançoso.
CORTA PARA:
CENA 17. MANSÃO DE HELENA. BANHEIRO. INT. DIA
SONOPLASTIA — “ANOTHER DAY IN PARADISE” – CAT VS CAT & JOYNER – INSTRUMENTAL
O banheiro é um cenário de perfeição cirúrgica. Mármore branco sem uma mancha. Espelhos limpos como uma negação da realidade. O tipo de lugar onde a dor é varrida para debaixo do luxo. Onde as tragédias não existem — apenas se escondem.
Vivi entra como quem sabe que não deveria. Seu reflexo a segue, mas parece distante, como se observasse alguém prestes a cruzar um limite invisível.
Ela caminha devagar. O som de seus saltos contra o chão ecoa como uma contagem regressiva.
Diante do vaso sanitário, ela se ajoelha. Os dedos percorrem as linhas do revestimento como quem lê uma sentença em braile. E então — um clique seco, quase imperceptível. Um azulejo cede.
Vivi o força com firmeza. Um compartimento se revela. Escavado no mármore, escondido por trás da fachada de assepsia.
Lá dentro, repousa um envelope grosso, lacrado com cera vermelha. Uma relíquia. Uma provocação.
Ela o encara. Como quem reconhece o cheiro do próprio destino. Abre. Documentos antigos. Papéis médicos, laudos, assinaturas de nomes que a câmera não nos deixa ver. Datas desconexas. Siglas. Sigilos. Um emaranhado de verdades à espera de tradução.
Os olhos de Vivi se movem rápidos pelas folhas, buscando algo, qualquer coisa, e ao mesmo tempo temendo encontrar.
Um nome parece surgir. Depois, some. Ou ela o imaginou?
A tensão é quase insuportável.
Ela encosta as costas na parede fria e desliza até o chão. A câmera se aproxima devagar — os traços da maquiagem começando a escorrer. Não há lágrimas. Só o terror do entendimento.
E a frase, então, escapa. Como um sussurro que ela segurou por anos.
VIVI - (entre os dentes, seca, com nojo de si mesma e do mundo) Puta que pariu...
O espelho a observa. Não há consolo ali — apenas o reflexo de uma mulher que acabou de abrir a caixa de Pandora da própria história... e percebe que pode não saber de nada.
CORTA PARA:
CENA 18. GUARUJÁ. EXT. DIA
SONOPLASTIA — “ANOTHER DAY IN PARADISE” – CAT VS CAT & JOYNER – INSTRUMENTAL
O litoral paulista se derrama em beleza como um desaforo à cidade. As ondas se movem com preguiça elegante, o céu é de um azul obsceno, como se jamais tivesse conhecido o concreto ou a tragédia. Barquinhos pontuam o mar como vírgulas em um poema sem pressa.
A câmera plana sobre as areias da Praia da Enseada — douradas, quase irreais —, atravessa os quiosques e seus guarda-sóis, que se espalham como confetes de um carnaval suspenso no tempo.
É São Paulo filtrada pelo sonho, um momento raro em que o peso da culpa e das mortes parece evaporar na maresia.
Um iate branco flutua sobre o mar calmo. Brilha. Quase não parece real. Um refúgio — ou uma armadilha.
Nele, à distância, Vivi, Clara e Marco Aurélio. Sentados próximos, mas não juntos. Há silêncio, mas não paz. O vento brinca com os cabelos como se não soubesse que está tocando em gente quebrada. Os olhos deles buscam o horizonte — ou evitam um ao outro.
Nada é dito. A trilha cobre o silêncio com melancolia. Há tensão. Há cumplicidade. Há segredos.Entre eles, o mar. Dentro deles, naufrágios.
CORTA PARA:
CORTA PARA:
CENA 19. IATE. INT. DIA
SONOPLASTIA — “ANOTHER DAY IN PARADISE” – CAT VS CAT & JOYNER – INSTRUMENTAL
O sol incide impiedoso sobre o convés do iate — branco, polido, quase cruel em sua perfeição estéril. A água ao redor brilha como se ignorasse a gravidade dos corpos a bordo. O mar é um espelho dissimulado: reflete beleza, mas oculta abismos.
Vivi está deslumbrante, como sempre — mas há algo em sua serenidade que corta como navalha. O vestido de linho esvoaça com o vento, seus pés descalços tocam a madeira cara como quem não teme se queimar. Ela se inclina com delicadeza e deposita um beijo sutil no rosto de Marco Aurélio — um beijo que parece um adeus ou um ultimato.
VIVI - (suave, afiada) Obrigada por ter deixado a Clara vir com a gente. Acho importante que tenhamos esses momentos em família.
Marco Aurélio engole em seco, retribui com um sorriso ensaiado. Os músculos do rosto dele sabem exatamente onde devem se mover — e é justamente isso que o denuncia.
MARCO AURÉLIO - É muito importante, sim. Agora que vocês se reencontraram, precisam recuperar o tempo perdido.
Clara, elegantemente desleixada sob seus óculos escuros, reclinada como uma esfinge tropical, não perde a deixa. Seu comentário vem como um dardo banhado em mel.
CLARA - Só faltou a Carolina pra esse momento ser feliz de verdade, não?
Vivi se vira. O sorriso permanece, mas agora há uma frieza cortante em seus olhos. O jogo mudou. Ela abre uma pasta fina de couro — como quem oferece um contrato, ou uma sentença.
VIVI - Por falar em Carolina...
Ela entrega um envelope a Marco Aurélio. Ele pega, confuso. Abre, lentamente. Dentro, papéis. O som do papel se movendo é mais alto que o motor do iate.
VIVI = Helena deixou um material muito interessante. O seu prontuário médico e um laudo psiquiátrico.
Marco Aurélio endurece. Seus dedos seguram os papéis com mais força do que gostariam. Clara agora se levanta, o sol reflete em seus óculos. Ela observa como quem assiste à queda de um ditador.
VIVI - (sem pressa) Parece que, aos nove anos, você bateu com uma pedra na cabeça de uma colega. Ela foi hospitalizada. O inquérito foi encerrado sem denúncia, mas você confessou ao psiquiatra que seu único arrependimento era não tê-la matado.
O silêncio que se instala é obsceno. Não há mais brisa. Só tensão. Marco Aurélio dobra os papéis — quase com reverência, quase com raiva.
MARCO AURÉLIO - Isso é um absurdo.
CLARA - Absurdo mesmo foi encontrarem suas digitais na borda da piscina de Helena. Elas estavam lá o tempo todo, só não haviam sido comparadas. Mas Vivi fez questão de providenciar uma amostra.
Marco Aurélio se levanta. Está furioso, mas disfarça com a elegância dos condenados que ainda acreditam no habeas corpus. Os olhos dele percorrem o convés, como se já pensassem em rotas de fuga.
VIVI - Você matou a Helena. Matou minha irmã. E achou que ninguém ia descobrir.
Ela diz isso sem gritar, sem teatralidade. Como quem já fez as pazes com o horror. E agora devolve, com juros.
INSERT –
MANSÃO DE HELENA. PISCINA. EXT. NOITE
O silêncio é de cristal, quebrado apenas pela brisa que toca seus cabelos como dedos de um morto querido. Então, algo se desloca. Um som abafado, denso, como se o próprio ar hesitasse. Passos.
Helena não se vira. Mas sente. O sorriso que surge é um vinagre servido com gelo: irônico, sem afeto.
HELENA — (sem olhar) Vivi, você nem imagina o que eu descobri...
Ela gira lentamente o rosto.
E o sorriso evapora.
Não é Vivi.
A câmera permanece subjetiva — somos os olhos do invasor. Helena não recua, mas algo nela cristaliza: um desdém antigo que sabe o caminho de volta.
HELENA — (baixa, gélida) Você não deveria estar aqui.
O som do gelo partindo no fundo do copo soa como um ultimato.
HELENA — (ainda firme, num tom aprendido em guerras domésticas) A porta da rua... é a serventia da casa.
(pausa)
Saia. Antes que eu chame a polícia.
(continuação inédita:)
A câmera muda. Agora vemos: é Marco Aurélio quem se aproxima, saindo das sombras como um fantasma íntimo. Ele veste um terno escuro, a camisa aberta no colarinho. Os olhos brilham, não de emoção, mas de algo perverso.
MARCO AURÉLIO — Sempre tão elegante, Helena. Tão... previsível.
Helena não se move.
HELENA — Por que você veio?
MARCO AURÉLIO — Porque você cavou o passado, minha cara. E esqueceu que, quando se cava demais, a terra devolve ossos.
HELENA — Vivi precisa saber quem você é.
MARCO AURÉLIO — (rindo com desprezo) Vivi precisa de um psiquiatra. Não de uma verdade inconveniente.
HELENA — Você matou Carolina.
Silêncio.
Marco Aurélio abaixa o olhar, passa os dedos pelo corrimão da piscina. Sorri.
MARCO AURÉLIO — Matei, sim. Com amor. Com raiva. Com alívio. (pausa) Ela era uma mulher insuportável. E agora virou mártir.
Helena recua um passo. O medo a invade, mas ela o disfarça com altivez.
HELENA — Eu vou contar tudo à polícia.
MARCO AURÉLIO — Você não vai contar nada.
Ele avança. Ela tenta correr. Ele a agarra.
A luta é seca, sem gritos. Apenas os sons abafados de uma morte anunciada. Marco a empurra — com força, precisão.
Helena bate a cabeça no chão da borda da piscina e cai na água. O sangue começa a se dissolver entre os azulejos.
A câmera mergulha com ela, lenta, melancólica. Os cabelos de Helena se espalham como algas em suspensão. Seus olhos permanecem abertos, testemunhas de uma tragédia doméstica.
Marco Aurélio observa do alto, impassível, como um homem que apenas terminou algo que já havia começado há muito tempo.
Ele limpa as mãos na barra da camisa.
MARCO AURÉLIO — (para si, com desprezo) Pena. Era uma mulher de caráter.
CORTA PARA:
FIM DO INSERT
A câmera acompanha Marco Aurélio de costas. O mar ao fundo, escuro como sua alma, espelha a insanidade que cresce em sua mente. Ele se vira. Os olhos estão marejados, mas há algo de febril no brilho. Clara e Vivi o encaram — a primeira, com fúria; a segunda, com o coração em ruínas.
MARCO AURÉLIO - (voz trêmula, quase em prece)
Helena ia abrir a boca. Ela ia contar tudo, destruir o que a gente tem, Vivi. O nosso amor. Eu não podia deixar.
Clara avança um passo, o rosto tenso como aço polido. Vivi balança a cabeça, atônita.
VIVI - (sussurrando) Não existe amor quando a base é feita de sangue e mentira.
Marco ri, um riso nervoso, estranho, entre o amor e o delírio.
MARCO AURÉLIO - Mas foi tudo por você. Minha mãe assumiu a culpa involuntariamente. E eu matei por amor. Por amor a você, Vivi. Eu matei a minha própria mãe.
Clara suspira fundo, com asco. Os olhos dela perfuram Marco como punhais.
CLARA - (cortante, impiedosa) Pois vai ter que amar a cadeia, querido. Porque é o único lugar onde você vai passar o resto da vida.
Marco dá dois passos para trás. Seus olhos faiscam. Ele abaixa a cabeça, sorri com desdém e levanta de novo com um olhar vazio.
MARCO AURÉLIO - Ah, não, minha querida. Eu não tenho a menor intenção de ir pra cadeia.
Vivi grita, a dor transbordando.
VIVI - Você matou a Carolina!
MARCO AURÉLIO - E daí?! Eu matei. Mas ela me matou primeiro! Me fez acreditar que eu era pai. Que eu tinha gerado uma filha linda. Mas era tudo mentira. Tudo. (quebra) Por que a verdade? A verdade é que eu sou estéril.
CORTE SÚBITO PARA:
INSERT – MANSÃO DOS GODOY BUENO. SALA DE ESTAR. INT. NOITE
A luz morna da luminária continua lançando sombras dramáticas sobre as paredes da mansão, criando um cenário quase onírico. Marco Aurélio está agora de frente para Carolina, os olhos fixos nela, a mandíbula cerrada. A tensão entre eles vibra como eletricidade antes de um temporal.
CAROLINA — (cruzando os braços, quase divertida) Então, o que o herdeiro moral da dinastia Godoy Bueno quer comigo à meia-noite?
MARCO AURÉLIO — (calmo, mas firme) quero a documentação. A que prova que a contabilidade da fundação foi adulterada. Você sabe do que eu tô falando, Carolina.
CAROLINA — (ri, amarga) Ah, Marco, sempre tão ético. Tão íntegro. Quase comovente. Acha mesmo que eu entregaria isso assim? Numa noite charmosa como essa?
Ela se aproxima com passos lentos, calculados, quase sensuais. O robe de cetim escorrega um pouco dos ombros, mas ela não se incomoda. Seus olhos brilham com crueldade contida.
MARCO AURÉLIO — Eu não quero te machucar, Carolina.
CAROLINA — (sussurra) Mas vai. Vai, porque eu vou te ferir primeiro.
Ela sorri, um sorriso pequeno, venenoso, e inclina o rosto, como se estivesse para contar um segredo.
CAROLINA — Aurora não é sua filha.
O impacto da frase é um soco mudo. Marco Aurélio não reage de imediato. Seu corpo endurece. Seus olhos, incrédulos, tentam encontrar alguma mentira naquele rosto.
CAROLINA — (quase sussurrando, cruel) Eu menti. Desde o começo. Eu e Daniel já nos divertíamos muito antes da pandemia. Foi ele quem me deu Aurora. Não você. Você nunca foi homem o suficiente. Nem pra isso.
Marco dá um passo para trás, como se algo dentro dele tivesse sido golpeado. Ela continua, impiedosa.
CAROLINA — Doutor Perceu te avaliou, Marco. Hormonalmente. Eu pedi. Em segredo. E sabe o que ele me disse? Que a única coisa que você produz bem é ressentimento.
MARCO AURÉLIO — (voz baixa, trêmula) Você é um monstro.
CAROLINA — Não. Eu sou só o reflexo de tudo que vocês homens me fizeram ser.
Ela o encara com olhos de quem venceu a guerra. Ele a observa como se visse uma estranha — uma criatura nascida de dentro da própria casa. O silêncio volta a reinar, só quebrado pelo estalar do gelo no copo de uísque esquecido sobre o aparador.
A sala permanece mergulhada num silêncio cheio de ecos. Resta no ar apenas a reverberação emocional, como um sussurro vindo das paredes. A penumbra da noite invade o ambiente luxuoso, como se o cenário também estivesse em luto.
Marco Aurélio está em pé, paralisado. A respiração curta. Os olhos vermelhos de quem já chorou demais ou de quem nunca aprendeu a chorar. Carolina permanece firme, à frente dele, como uma estátua prestes a se partir ao meio.
CAROLINA - (voz firme, quase sussurrada) Você quer a verdade toda, Marco? Então vamos lá. Eu fui estuprada pelo médico da confiança dos meus pais, enquanto você sorria para as câmeras e dizia que estava feliz em ser pai. Eu afundei numa depressão. E você? Você nunca percebeu. Nunca se importou. Me tratava como um troféu esquecido na estante da sua vaidade.
Ela caminha lentamente pelo espaço da sala. O robe de cetim desliza sobre o mármore polido como névoa. O contraste entre a beleza e a dor é brutal.
CAROLINA -Você sempre me odiou por eu existir. Sempre me puniu por não ser a esposa silenciosa e ornamental que você queria. E Daniel me viu. Me ouviu. Me salvou quando eu já não sabia mais quem eu era.
MARCO AURÉLIO - (engasgado, tentando se defender) Você destruiu a minha vida.
CAROLINA - (gritando, cortante) Eu reconstruí a minha! E vou continuar reconstruindo. Com Daniel. Porque ele me ama. Porque eu estou grávida, Marco. Aurora vai ter um irmão. E você não é nada além de um erro de percurso.
O ar se parte.
Marco Aurélio avança como uma sombra deslocada. Os olhos vazios, as mãos trêmulas de raiva e humilhação. Ele se move como um homem que já caiu de si — e agora despenca em outro.
Sem aviso, seus dedos se fecham no pescoço de Carolina. Não há palavras, só o som abafado da brutalidade. Ela tenta resistir — os pés arranham o chão de mármore, os braços se debatem, mas é em vão.
CAROLINA - (sufocada) Para,Marco, por favor, eu tô grá...
O corpo dela amolece. Os olhos, antes faiscantes, perdem a luz. O silêncio se torna absoluto.
Marco a solta. O corpo de Carolina desaba no tapete como uma boneca despedaçada. O cetim do robe se espalha ao redor do cadáver como um manto de tragédia.
Marco recua. Cambaleia. Olha para as próprias mãos como se fossem garras alheias. Senta-se na beira do sofá como se estivesse em julgamento.
MARCO AURÉLIO = (sussurrando, aterrorizado) O que eu fiz?
O relógio antigo da parede marca o tempo com precisão cruel. A noite, lá fora, permanece indiferente.
FIM DO INSERT
O céu de Guarujá fora é claro, translúcido, cortado por um sol impiedoso. No mar calmo e espelhado, o iate parece flutuar num limbo — isolado, rico, estéril. O convés está silencioso. Quase puro demais, limpo demais.
Marco Aurélio encara Vivi com um meio sorriso, tenso, suado. Ele dá um passo adiante, a voz embebida num veneno disfarçado de ternura.
MARCO AURÉLIO = Ainda há tempo. Você e eu. Podemos ser felizes, Vivi. A Clara não precisa estar nesse barco. Podemos dizer que foi um acidente.
Vivi não se move. Seus olhos não tremem, não hesitam. São frios como lâmina gelada.
Clara, atrás deles, cruza os braços, um sorriso sarcástico no rosto.
CLARA – Marco, você ainda não entendeu, né? Por que você acha que fui convidada?
Vivi então vira-se para ele, firme.
VIVI - Clara é minha irmã. De sangue. E de causa.
Clara dá um passo à frente, o sol refletindo no distintivo pendurado discretamente no pescoço.
CLARA - Sou delegada. Mas também sou brasileira. E neste país, às vezes, fazer justiça com as próprias mãos não é escolha. É instinto.
Ela sorri de canto, quase debochada, enquanto abre a caixa térmica e tira de dentro um picador de gelo. Vivi faz o mesmo — ambas segurando os instrumentos como duas justiceiras vestidas em roupas de banho caras.
Marco recua, a voz trêmula.
MARCO AURÉLIO - Por favor, tenham compaixão. Eu amei você e Carolina. De formas diferentes, mas amei.
Vivi responde primeiro, serena e cruel.
VIVI - Pois é. E destruiu nós duas da mesma maneira.
Clara gira o picador de gelo na mão, quase como uma bailarina girando uma adaga.
CLARA - Sabe o que é o problema, Marco? Você confundiu amor com poder. E agora vai provar do gosto do próprio erro.
O primeiro golpe vem seco. Preciso. Marco grita. As duas avançam como lobas. Cada estocada é medida, deliberada. Um balé de sangue.
O convés branco torna-se uma pintura expressionista de vermelho. Marco geme, tenta se arrastar, mas as mulheres não param. Não até ele cessar de respirar.
Silêncio.
Ambas ofegantes. Vivi ri, uma risada leve e nervosa, olhando para Clara.
VIVI - Você tá com sangue até no dente.
CLARA - E você tá com um pedaço do baço dele no cabelo.
As duas caem no riso. Um riso quase infantil, histérico — libertador.
Clara acende um cigarro. Oferece para Vivi. Elas fumam ali mesmo, sentadas, olhando para o cadáver que já começa a inchar sob o sol.
A câmera se afasta devagar. O iate boia, magnífico e silencioso, no meio do oceano — agora, um altar de vingança.
A música cresce.
LETREIRO NA TELA:
FIM
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