A INTRUSA
CAPÍTULO 40
UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI
CENA 1. MANSÃO DE HELENA. PISCINA. EXT. NOITE
SONOPLASTIA — “INSENSATEZ” – TOM JOBIM, INSTRUMENTAL
A noite está carregada. Um silêncio denso envolve a mansão, quebrado apenas pelo estalo ritmado de flashes fotográficos. A câmera mergulha lentamente na cena: o corpo de Helena flutua na piscina iluminada, os cabelos loiros espalhados como uma medusa trágica. Seu rosto inerte contrasta com o azul elétrico da água. Luzes da perícia piscam ao fundo. A superfície da piscina já foi rompida pelo crime — mas agora é espelho do vazio.
Vivi observa tudo em silêncio. Os olhos marejados, mas secos. Ela não chora. Apenas encara. Como quem já viu aquilo antes. Muitas vezes.
Um plano mais amplo revela a área isolada. Policiais, repórteres, o burburinho de vizinhos curiosos por trás das grades de hibisco. Clara se aproxima, com os saltos cravando o piso de pedra como punhais.
CLARA - (séria, dura) É tudo o que você sabe?
VIVI - (frágil, mas firme) Quando cheguei, a porta da frente estava escancarada. E ela já estava lá, boiando. Como se esperasse por mim.
Clara a estuda. O vento balança os cabelos de ambas. Há tensão, há história.
CLARA - Você sabe o que ela queria com você?
VIVI -(não hesita) Disse pra eu estar aqui às dez. Eu vim. Como combinado. Só isso.
CLARA - (sarcástica, amarga) Você é um tipo raro, sabia? O anjo da morte. Onde você pisa, alguém morre.
VIVI - (sorri frio, com desdém elegante) E você é a incompetência. A morte sempre age antes de você descobrir quem está com a faca.
Clara engole a resposta. Seus olhos denunciam o incômodo. Vivi está acostumada a se defender com palavras afiadas.
CLARA - (séria, sem graça) Pode ir.
VIVI - (irônica) Vai me levar em casa?
CLARA - (dura) Vamos. Te deixo na mansão.
As duas caminham em direção ao portão. Os flashes continuam, revelando o corpo de Helena imóvel, agora visto de cima — como uma oferenda macabra ao destino. A câmera se afasta lentamente. O som das sirenes se mistura à trilha.
CORTA PARA:
CENA 2. MANSÃO DOS MONTESINOS. SALA DE ESTAR. INT. NOITE
SONOPLASTIA – “WHEN THE PARTY'S OVER” – BILLIE EILISH
A vitrola range antes de deixar escapar a canção — quase um suspiro, como se a casa também estivesse cansada de tanta memória. A câmera desliza devagar pela sala de estar: uma tapeçaria de passado e repressão, móveis antigos que testemunharam mais silêncios do que conversas. O quadro de Cecília e Carlos jovens, parece zombar da ideia de eternidade.
No centro, sentada no sofá como uma esfinge de luto elegante, Cecília segura um lenço de linho. Impecável. Gélida. Mas o olhar — o olhar está molhado de lembranças.
A porta se abre. Carlos entra com Olivia. Ela está diferente. Os traços cansados, a pele pálida. A fragilidade atravessa a entrada com ela, como se Olivia carregasse nas costas todos os erros de uma geração.
Cecília se levanta. Não com pressa, mas como quem ensaiou por anos esse gesto. Encaram-se como duas atrizes num drama familiar interminável. Há raiva, vergonha, ternura. Mas nada é dito — ainda.
Cecília caminha até Olivia. O salto estala como uma sentença. Quando finalmente se tocam, é menos abraço e mais tentativa de reescrever a história com o corpo.
CECÍLIA – Perdão por tudo. (pausa breve) Por não ter visto. Por não ter sabido. Por ter escolhido o silêncio — como se isso fosse proteção.
OLÍVIA - (voz falha, quase um sussurro) Você não foi covarde, mãe só estava com medo de errar. E errou do mesmo jeito.
Elas se afastam, mas não muito. Como se qualquer distância pudesse ser fatal. Olivia agora encara Cecília com olhos de adulta, mas o resto dela é ainda a menina abandonada na infância.
OLÍVIA - Eu queria ser mãe. (pausa) Achava que parir amor era suficiente pra mudar o mundo. Acreditei nisso. Como uma idiota. (pausa mais longa, os olhos fixos em Cecília) Devia ter contado. Sobre a Vivi. Sobre tudo. Se vocês soubessem que Carolina tinha uma irmã, talvez o destino não tivesse se divertido tanto com a nossa cara.
Cecília acaricia os cabelos da filha, tentando desalinhá-los — num gesto de ternura quase esquecido.
CECÍLIA - O amor não é gentil, Olivia. (pausa) Mas é insistente. Você tentou e falhou. Todos nós falhamos. Mas ao menos você tentou.
OLÍVIA - Eu não consegui criar nenhuma das duas. (engole o choro) Nem Vivi. Nem Carolina. As duas escaparam de mim.
CECÍLIA - E ainda assim, a Vivi te ama e Carolina teria te amado se tivesse te conhecido. (olha nos olhos da filha) Porque sangue é um contrato assinado à força. Mas amor. (pausa) Amor é escolha. E a sua alma ainda está aqui — mesmo em ruínas.
Carlos, que observava discretamente, sai da cena como um fantasma discreto. A câmera permanece nas duas mulheres, abraçadas sob a luz amarelada. Não há redenção total. Mas há contato.
CORTA PARA:
CENA 3. MANSÃO DOS GODOY BUENO. SALA DE ESTAR. INT. NOITE
SONOPLASTIA – “EU SEI QUE VOU TE AMAR” – MAYSA
A vitrola gira lentamente, e cada nota da canção parece pesar toneladas no ar abafado da sala. O tapete persa absorve os últimos ecos de conversas mortas. Os copos quase vazios denunciam que ninguém dormiu. Só aguardaram, como se o destino estivesse atrasado — mas chegando.
A porta se abre como se fosse empurrada pelo próprio destino. Vivi entra acompanhada por Clara. Ela está mais firme do que nunca. Marco Aurélio se levanta, os olhos cansados e marejados. Daniel permanece sentado, curvado, o copo de uísque trêmulo nas mãos. Valquíria, em pé ao fundo, como uma esfinge dourada que vigia ruínas, nada diz — mas tudo ouve. Lari Pacotão está sentada com a elegância cínica de quem já viu cadáveres com melhor aparência que os vivos naquela sala. Armand observa tudo com o charme de quem sabe demais. Isabella acaricia suas pérolas como se fossem rosário — ou munição.
CLARA respira fundo. O silêncio a acolhe, tenso como o fio de uma navalha.
CLARA - Encontraram o corpo da Dra. Helena. (uma pausa dramática) Na piscina da casa dela. Assassinada. Tudo indica que é o mesmo autor das mortes de Carolina e outras que talvez nem saibamos ainda.
Daniel se levanta num salto, o copo escorrega de sua mão e se espatifa no chão como se tivesse sido alvejado.
DANIEL Helena? Não. Ela não.
VALQUÍRIA — (venenosa) Isso é o que dá confiar em um sistema policial que parece tirado de novela das oito. A incompetência virou norma.
CLARA - Encontramos uma chave no escritório da Carolina.
Um duplex. Bairro nobre. Estamos aguardando mandado. Entramos amanhã cedo.
DANIEL - É o apartamento onde nos encontrávamos. (olha para Vivi com dor contida) Carolina sabia esconder muito bem segredos.
Vivi abaixa os olhos. Tudo nela treme, exceto o rosto — ali, ainda há controle.
CLARA - Boa noite.
Ela vira-se e sai como entrou: com dignidade e ameaça.
Lari Pacotão levanta-se com ares de divindade drag vingativa.
LARI - (gargalha nervosa) Gente, isso aqui virou “Arquivo Morta”, e eu não sou fã de ter minha cara estampada no Datena. (olha para Armand e Isabella) Bora pro office. A mana aqui quer entender o babado antes que alguém decida que chegou minha hora.
ISABELLA - (enrolando as pérolas, gelada) No tengo ningún interés en conspiraciones de quinta. (olha para Valquíria) Pero si tú no pones orden, lo haré yo.
ARMAND - (grave, pausado) Vamos. Já passou da hora de pararmos de brincar de inocência.
Isabella revira os olhos e se levanta, com a mesma disposição de quem caminha para o cadafalso. Ela odeia ser convocada — especialmente por alguém como Lari, mas sabe que recusar seria perder o controle. E perder o controle, para Isabella, é morrer.
A câmera permanece fixa, revelando os que ficam: Daniel, paralisado. Marco Aurélio, em dúvida. Valquíria, petrificada como um trono ameaçado. E Vivi, agora só Vivi, de pé no centro, como o elo invisível entre todas as tragédias.
Maysa continua cantando, como uma profecia suave e implacável.
CORTA PARA:
CENA 4. MANSÃO DOS GODOY BUENO. ESCRITÓRIO. INT. NOITE
A iluminação é crepuscular, um ocaso que não vem do sol, mas da decadência de uma dinastia. A madeira escura do mobiliário emoldura o ambiente como um sarcófago de poder. As janelas estão cerradas, o ar é denso, como se tudo ali dentro estivesse em fermentação — inclusive os segredos.
Isabella está à frente da escrivaninha, usando um tailleur preto que parece moldado à navalha. Ela remove lentamente as luvas de couro como quem se despe de uma pele antiga — cada gesto uma ameaça contida.
ISABELLA - (frígida, impaciente – em espanhol) ¿Qué tienen para decirme? Ya soporté bastante por hoy. Incluso verlos intercambiando anillos como si el mundo fuera un carnaval barato.
LARI PACOTÃO - (sorrindo com veneno) Mana, e a senhora acha que ia perder a chance de celebrar duas mariconas históricas? Isso aqui foi quase uma novela da Manchete, versão remix.
A cadeira de couro atrás da mesa gira. Surge Tina Tumulto — cabelo platinado, olhar treinado no espelho do deboche, maquiagem como uma armadura. Mas não é Tina quem fala. É o passado.
TINA TUMULTO - (voz baixa, cortante) Isa, querida, não via você desde os tempos do calçadão.
Um trovão invisível percorre o espaço. O nome não apenas ecoa — ele reabre feridas. Isabella endurece. Um músculo salta no pescoço. Ela tenta manter a pose, mas a estátua já está rachada.
ISABELLA - (gélida – em espanhol) No recuerdo de ti.
TINA TUMULTO - (aproximando-se) Claro que lembra. Você me chamava de musa. Dizia que eu era a Carmen Maura da Zona Sul. Lembra disso, Xana?
O nome — Xana — soa agora como maldição. Lari Pacotão se diverte com a revelação.
LARI PACOTÃO - (gritando, rindo) Ah, não! Então a senhora é a própria Xana Xanax? A trans mexicana que sumiu do mapa? Eu achava que era lenda urbana, mana!
TINA TUMULTO - (olhar nos olhos de Isabella) Você me apagou da sua história. Mas quem você era ainda grita no seu corpo. Essa mulher que você construiu em cima de vergonha, de negação, de ódio é só um disfarce caro. O seu nome verdadeiro é o que você mais teme.
ISABELLA - (eruptiva – em espanhol) ¡Construí un imperio al lado de mi esposo! Crié a mi hija, enterré su cuerpo, sostuve a mi nieto en los brazos. Nadie puede decirme quién soy.
LARI PACOTÃO - (séria, agora sem ironia) Você pode esconder seu RG, seu passado, sua voz. Mas sua transfobia, mana, essa nunca te abandonou. E veio de dentro.
ARMAND - (duro – em espanhol) Madre usted construyó todo, menos humanidad. Su pasado es una herida que supura, no una hazaña.
Ele joga sobre a mesa uma passagem de avião.
ARMAND - (cont.) Mañana vuelves a Río. Vas a sacar tus cosas. Del resto me encargo yo.
ISABELLA - (ferida, voz cortante) ¿Me vas a echar como a una prostituta? ¿Después de todo lo que hice?
LARI PACOTÃO - (cravando) Mais puta foi a senhora, mana, que se vendeu pra se enterrar. Nem travesti te reconhece mais. Nem tua alma.
ARMAND - (final, glacial) Mi abuelo dejó todo a mi nombre. Usted no tiene nada. Ni una empresa, ni un título, ni respeto.
O silêncio que se segue é sepulcral. Isabella tenta falar, mas a boca não forma palavras. Lari e Tina saem em silêncio. Armand permanece por um segundo a mais. O suficiente para que ela veja, nos olhos dele, o luto por uma mãe que nunca existiu.
Eles saem. Sozinha, Isabella permanece imóvel. O mundo gira, mas ela não. De repente, explode.
Derruba taças de cristal contra a parede. Arremessa livros, rasga fotografias, arranha a pintura da família Godoy Bueno com as unhas. Rasga os próprios papéis como se quisesse apagar a certidão da própria vergonha.
A câmera gira com ela. O enquadramento afunda junto. A música da vitrola volta a tocar — uma marcha fúnebre disfarçada de tango.
Isabella, ou Xana, ou o que restou disso tudo, se ajoelha diante da lareira apagada. O fogo, como ela, já foi mais.
A tirania termina não com aplausos — mas com uma gargalhada patética no escuro.
CORTA PARA:
CENA 5. MANSÃO DOS GODOY BUENO. ESTUFA. INT. NOITE
SONOPLASTIA — "MON MANÈGE À MOI (TU ME FAIS TOURNER LA TÊTE)" – ÉTIENNE DAHO – INSTRUMENTAL
A estufa parece um relicário profanado. Antes viva, pulsante de plantas raras e flores exóticas, agora carrega os vestígios da tragédia — vasos quebrados, folhas pisoteadas, o cheiro denso de terra molhada e decadência. A luz é âmbar, quase febril.
Valquíria surge entre as sombras como uma aparição. Está vestida de preto, o cabelo preso com rigidez, o olhar armado. Ela caminha entre os destroços com elegância animalesca — uma viúva perigosa.
Serpentinha a espera, encostado numa bancada de mármore rachado, mascando um palito como quem espera a amante e a morte ao mesmo tempo.
VALQUÍRIA - (sem rodeios) A polícia vai conseguir o mandado amanhã. Se aquela cópia do balancete estiver no duplex da Carolina, acabou o jogo.
SERPENTINHA - (voz rouca, tom de prazer contido) Então a gente joga antes. Hoje. Antes do sol nascer.
Eles se encaram com intensidade. Há raiva, desejo, poder — tudo fervendo sob a superfície. Valquíria se aproxima. Um passo. Outro. Até estar colada ao corpo dele.
VALQUÍRIA - (sussurrando) Você sabe o que fazer. Mas quero ver você entrando como um ladrão e saindo como meu herói.
Serpentinha agarra Valquíria pela cintura. O beijo entre eles é selvagem, desprovido de ternura, carregado de gana e controle. Eles tropeçam entre as folhas, caem no chão úmido da estufa. Mãos ávidas, roupas sendo arrancadas sem cuidado. A terra vira cama.
VALQUÍRIA - (ofegante, rindo com deboche)
Me chama de mãe natureza e planta essa semente em mim.
A câmera gira em 360º enquanto eles se entrelaçam como duas serpentes no cio. A vitrola continua tocando, como se o amor fosse uma valsa perversa e elegante.
A estufa se torna cenário de um ritual antigo: sexo, conspiração, poder.
CORTA PARA:
CENA 6. MANSÃO DOS GODOY BUENO. SUÍTE DE CAROLINA E MARCO AURÉLIO. INT. NOITE
SONOPLASTIA – “PADAM PADAM” – KYLIE MINOGUE
O quarto é um refúgio sofisticado, sensual, como se o tempo ali estivesse suspenso. Espelhos bisotados ampliam o espaço e refletem o excesso: almofadas de cetim jogadas com desleixo, uma garrafa de uísque semiaberta, um salto esquecido num canto como prova de uma urgência qualquer. A luz é âmbar, suave, mas tudo pulsa em vermelho.
Lari Pacotão, com seu vestido justo demais — provocação e escudo ao mesmo tempo — gira lentamente a taça de uísque entre os dedos como quem saboreia uma vitória amarga.
LARI PACOTÃO - (quase sussurrando, mas com orgulho) Pois que fique registrado: Isabella caiu. E quem deu a rasteira fui eu.
Nanny Who explode num gritinho agudo e aplaude, mas logo a comemoração vira algo mais introspectivo.
NANNY WHO -Tô passada. E feliz. Aquela mulher se odeia tanto (pausa, mais grave) Não é à toa. É trans e não tem coragem de se amar.
A frase paira no ar como uma bofetada. Não há deboche. Há dor, espelho, confissão velada.
Vivi, séria, cortante como navalha, quebra o clima.
VIVI - Patrícia. Você trouxe?
Patrícia surge com um olhar carregado e uma mala discreta. Coloca-a sobre a cama com um gesto sóbrio. Ao abrir, duas pistolas calibre 38 brilham sob a luz como joias de um destino torto. Silêncio. As mulheres observam o conteúdo como se olhassem para um futuro que ninguém ousava nomear.
VIVI - (pegando uma das armas, com calma quase ritualística) Consegui no mercado negro. Até que o assassino da Carolina seja preso (olha nos olhos de todas) qualquer uma de nós pode ser a próxima.
Os olhares se cruzam. Há cumplicidade, medo e uma raiva que não tem mais onde se esconder.
LARI PACOTÃO - (engolindo seco, com humor ácido) Isso aqui virou novela mexicana(pausa, sombria)com final de Scorsese.
Madson, que até então observava, levanta-se. Tira os sapatos, solta os cabelos. O peso da dor não apagou seu brilho.
MADSON - Tá bom, chega de drama. (sorri com deboche) A Vivi foi presa durante o casamento, lembram? Então vamos comemorar o casamento da Pacotão agora.
Ela pega o uísque, enche copos generosos. A provocação se transforma em proposta: rir antes que a próxima tragédia entre pela porta.
MADSON - Hoje a gente brinda. Por nós. (mais séria) Por Carolina. (com leve ironia) E porque, sejamos honestas se é pra morrer, que seja linda, de salto 15 e com um copo na mão.
Nanny Who sobe na cama como quem desafia o destino. Lari começa a dançar, desajeitada, quase infantil. Patrícia hesita — como sempre — mas se junta. Vivi observa. Sorri. Pela primeira vez, o sorriso vem de dentro.
A música aumenta. As taças tilintam como armas brancas. A risada explode. Há uma alegria desesperada.
Cinco mulheres armadas até os dentes. Perigosas, feridas, vivas. Uma dança entre a fúria e o colapso.
Elas não sabem, mas essa noite será lembrada — não por causa das balas, mas do pacto.
CORTA PARA:
CENA 7. SÃO PAULO. NOITE. EXT.
SONOPLASTIA – “PADAM PADAM” – KYLIE MINOGUE
A cidade pulsa como um corpo febril. As luzes de São Paulo piscam como sinais vitais de um doente em colapso — frágeis, insistentes, obscenos. A trilha sonora parece ter escapado de uma pista de dança depravada em Paris e invadido a noite quente da capital brasileira.
Um carro preto corta o cenário com precisão cirúrgica, deslizando como se soubesse exatamente a quem destruir. Dentro, Valquíria observa a cidade pelas janelas escuras como se fosse uma peça barata de teatro — e ela, a crítica cruel que tudo arrasa com uma baforada elegante de seu cigarro francês.
Serpentinha dirige sem dizer uma palavra. Seu rosto não denuncia nem lealdade nem traição — mas uma espera silenciosa. Há algo de cão treinado, há algo de homem prestes a morder.
Enquanto atravessam a fronteira invisível que separa os Jardins da decadência elegante do centro velho, o carro passa por prédios com colunas neoclássicas e pichações recentes. O passado e o colapso se encaram em silêncio. Valquíria sorri, como quem volta ao palco onde cometeu seu crime mais bonito.
O carro para diante de um edifício gasto pelo tempo, mas ainda tentando parecer nobre. Um letreiro luminoso falha em manter sua promessa de sofisticação. O lugar tem cheiro de amores antigos, desastres recentes e segredos mal enterrados.
Valquíria sai primeiro. O salto ecoa como sentença. Sua sombra se arrasta atrás dela como se não quisesse acompanhá-la. Serpentinha a segue. Ele está sempre um passo atrás, como um bom cúmplice.
O hall está vazio. Sem porteiro. Sem testemunhas. Só o som de um elevador velho chorando em algum andar distante. A lâmpada sobre a porta oscila. Nada ali é confiável — exceto o perigo.
Valquíria se vira para Serpentinha, sorri com desprezo e tesão.
VALQUÍRIA - (baixinho, com ironia letal) Vamos fazer história, meu bem.
E dessa vez sem revisões.
A porta do elevador se fecha. O som do trinco final é quase erótico. A cidade gira. Os inocentes dormem. O mal está só começando sua noite.
CORTA PARA:
CENA 8. DUPLEX DE CAROLINA. SALA DE ESTAR. INT. NOITE
SONOPLASTIA — “WINTERSUN” — BORN
O vento lá fora açoita as janelas, um lamento frio vindo das alturas de São Paulo. A porta do duplex se abre com precisão milimétrica. Valquiria entra primeiro — impecável, glacial, envolta em um sobretudo que parece um uniforme de guerra. Logo atrás, Serpentinha, de luvas pretas e olhos de predador, fecha a porta com o peso de quem não pretende voltar.
Ao cruzarem o hall, as luzes se acendem automaticamente — e o ambiente, antes escuro, revela Clara, sentada à mesa de jantar como quem preside um tribunal silencioso. O ambiente tem um requinte minimalista, mas cada detalhe parece conspirar para o confronto que se anuncia. Sobre a mesa, diante de Clara, repousa um dossiê aberto — a contabilidade paralela da Godoy Bueno, nomes, números, datas, movimentações. Prova viva da podridão.
Clara sorri, serena. O tipo de sorriso que antecede um golpe de misericórdia.
CLARA - (voz firme, quase doce) É isso que veio buscar, Valquiria?
Valquiria não responde. Fica ali, como uma estátua de gelo prestes a trincar. Seus olhos — traiçoeiros, arrogantes — vacilam por um segundo. Mas a boca permanece selada.
CLARA - (aproximando-se) Eu suspeitava que Carolina tinha sido silenciada por causa de um segredo antigo. Mas não imaginei que ela tivesse ido tão longe. Tão fundo. Ela te desmascarou. E por isso, foi eliminada.
Serpentinha dá um passo à frente, tenso, mas Clara o ignora.
CLARA - (encarando Valquiria, solene) Valquiria Godoy Bueno você está presa pelo assassinato de Carolina Godoy Bueno.
Silêncio. O tipo de silêncio que só precede o colapso. Valquiria não diz uma palavra. Mas o olhar dela — antes impassível — agora vacila. Por um instante, é possível ver a mulher por trás do império: uma rainha caída, encurralada pelo próprio orgulho.
CORTA PARA:
FIM
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