A INTRUSA - CAPÍTULO 02 - 26/08/2025


A INTRUSA

CAPÍTULO 02

UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI




CENA 1. MANSÃO DOS VASCONCELLOS. SALA. INT. DIA

 

Laura permanece ajoelhada no chão, segurando o corpo de Roberto. Seu rosto está pálido, banhado em lágrimas. Sua respiração acelera, um misto de desespero e choque. Os policiais se entreolham, sem saber como agir.

De repente, Laura leva as mãos ao ventre.

LAURA -(OFEGANTE, EM PÂNICO) Ai (T) Meu Deus...

Ela treme, seu corpo enrijece por um instante. Então, sente uma dor aguda e solta um gemido sufocado.

POLICIAL 1- (ALARMADO) Senhora, a senhora está bem?

Laura tenta responder, mas outra contração faz seu corpo se arquear. Seus olhos se arregalam.

LAURA - (CHOROSA, APAVORADA) Não (T) Não pode ser (T) Ai, meu Deus!

CLOSE-UP: Uma mancha translúcida se espalha lentamente pelo chão de mármore, refletindo a luz suave da manhã. O tempo parece suspenso.

O pânico cresce no ambiente. Laura se curva, segurando o ventre, suas mãos tremem.

POLICIAL 2 (PEGA O RÁDIO, NERVOSO) — Precisamos de uma ambulância! Uma gestante entrou em trabalho de parto! Urgente!

Laura soluça, sentindo a dor aumentar rapidamente. Sua respiração se torna irregular, seus lábios tremem. Ela olha ao redor, desnorteada, segurando a barriga como se tentasse conter o inevitável.

A câmera acompanha a cena com ritmo frenético, captando o desespero de Laura, os policiais agitados ao telefone e a sensação avassaladora de que tudo está acontecendo rápido demais.

 

CORTA PARA:

CENA 2. HOSPITAL. SALA DE CIRURGIA. INT. DIA

 

O ambiente é frio, clínico, estéril. As luzes cirúrgicas brilham intensamente, refletindo nos instrumentos metálicos.

Laura está deitada na maca, o corpo exausto, coberto de suor. Seu rosto está pálido, os cabelos desgrenhados. Gritos abafados de dor ecoam pela sala. O sangue escorre pelo lençol branco, manchando tudo ao redor.

Os médicos e enfermeiros trabalham com urgência.

MÉDICO 1 - (PRESSIONANDO A BARRIGA DE LAURA) Está quase, Laura! Você precisa fazer força!

LAURA - (OFEGANTE, EM AGONIA) Eu (T) Não consigo...

MÉDICO 2 - (FIRME, INCENTIVANDO) Consegue, sim! Mais uma vez!

Laura solta um grito dilacerante, reunindo suas últimas forças.

De repente, um último esforço e CLOSE-UP: O bebê escorrega das mãos do médico, coberto de sangue e membranas. O cordão umbilical ainda pulsando. Silêncio.

Os médicos se entreolham. Nenhum choro. Nenhum som.

ENFERMEIR - (BAIXO, AFLITA) Ele não está respirando...

O tempo para.

MÉDICO 1 - (URGENTE) Precisamos reanimá-lo! AGORA!

A câmera acompanha em cortes rápidos a agitação dos médicos. Mãos com luvas ensanguentadas pressionam o pequeno tórax do bebê. O som do monitor cardíaco torna-se angustiante.

MÉDICO 2 - (TENSO, TENTANDO) Vamos, pequeno, respira...

Nada.

Os médicos continuam. Os segundos se transformam em eternidade.

Laura observa desesperada. Seu rosto se contorce de pavor, os olhos fixos no bebê inanimado.

CLOSE-UP: Uma lágrima escorre pelo rosto dela.

Então, o médico para. O monitor cardíaco permanece em silêncio absoluto.

MÉDICO 1 - (BAIXANDO A CABEÇA, VOZ EMBARGADA) Hora do óbito…

O mundo de Laura desmorona.

LAURA - (EM CHOQUE) Não (T) Não (T) NÃO!!!

Ela grita, um som primitivo, devastador. Seu corpo treme, as mãos ensanguentadas tentando se estender para o bebê, mas os enfermeiros a seguram.

A câmera foca no rosto de Laura, contorcido em agonia absoluta.

A cena se estende em um longo e sufocante silêncio, apenas o eco do choro de Laura e o barulho metálico dos instrumentos sendo afastados.

CORTA PARA:

 

CENA 3. GRAMADO. CLIPE. EXT.

 

SONOPLASTIA - SOMEONE YOU LOVED - LEWIS CAPALDI 

 

Gramado surge em uma imagem aérea, revelando sua beleza europeia agora envolta em um silêncio melancólico. As ruas, antes movimentadas por turistas, estão quase desertas. O pórtico de entrada da cidade, imponente, se ergue solitário sob um céu acinzentado. A Avenida Borges de Medeiros, principal via da cidade, tem poucas pessoas caminhando, todas de máscaras. Algumas lojas e restaurantes exibem placas de "Fechado temporariamente", enquanto funcionários desinfetam balcões vazios na esperança de dias melhores.

A Rua Coberta, habitualmente vibrante, está silenciosa. Algumas cadeiras estão empilhadas nos cafés, mesas vazias aguardam clientes que não chegam. O Lago Negro reflete a névoa fria da serra, e os pedalinhos coloridos permanecem imóveis na água, sem ninguém para ocupá-los. Igrejas, que antes reuniam fiéis em celebrações semanais, agora trazem avisos nas portas anunciando missas virtuais.

No hospital da cidade, ambulâncias chegam com pressa. Enfermeiros e médicos correm pelos corredores, exaustos, protegidos por trajes de segurança. Pacientes lutam para respirar, e o som do oxigênio pulsando se mistura ao ruído incessante de monitores cardíacos. Uma enfermeira de olhos cansados aperta um pequeno pingente em forma de cruz antes de voltar ao trabalho. Sobre um balcão, um jornal dobrado exibe a manchete alarmante: "Colapso na Saúde: UTIs em estado crítico."

Nas casas, o impacto da pandemia se faz sentir. Uma senhora de cabelos grisalhos observa a rua pela janela, suas mãos segurando uma fotografia antiga de uma reunião de família. Uma criança brinca sozinha na calçada, chutando uma bola sem companhia. Um comerciante desliga as luzes de seu restaurante, tranca a porta e olha ao redor, respirando fundo, como se carregasse o peso do mundo.

O tempo avança lentamente. O céu de Gramado ganha tons alaranjados e roxos ao entardecer, e a cidade parece mergulhar ainda mais no silêncio. Então, em meio à escuridão que se aproxima, um letreiro surge na tela:

"TRÊS MESES DEPOIS"

CORTA PARA:

 

CENA 4. HOSPITAL. SALA DE CIRURGIA. INT. DIA

 

A sala de cirurgia está iluminada com uma luz branca intensa, que reflete nos equipamentos metálicos ao redor. O ambiente é asséptico, clínico, mas a tensão do momento é suavizada pelo som constante dos monitores cardíacos e pelo olhar atento da equipe médica.

Carolina está deitada na maca, os olhos fixos no teto. Seu rosto está pálido, sem qualquer vestígio de emoção. Marco Aurélio, ao seu lado, segura sua mão, mas ela não reage ao toque. O médico conduz o parto com segurança, e a pequena Aurora vem ao mundo sem complicações. O primeiro choro do bebê ecoa pela sala, preenchendo o espaço com vida e esperança.

Marco Aurélio, tomado pela emoção, sente os olhos marejarem ao segurar a filha pela primeira vez. Ele a embala com delicadeza, observando cada detalhe do pequeno rosto, cada movimento frágil das mãos minúsculas. Um sorriso genuíno surge em seu rosto.

MARCO AURÉLIO - (SUSSURRANDO, EMOCIONADO) Bem-vinda, Aurora...

Ele se aproxima de Carolina, segurando o bebê com cuidado. Carolina olha para a filha por um breve instante, mas seu olhar permanece distante, vazio. Nenhuma lágrima, nenhum sorriso. Seu rosto é uma máscara de apatia.

A enfermeira ajeita o travesseiro para Carolina, esperando um gesto de carinho, uma reação materna que não vem. Marco Aurélio percebe a ausência de emoção e franze a testa, preocupado. Ele aproxima Aurora um pouco mais, na esperança de que o contato desperte algo em Carolina.

Carolina desvia o olhar. Seu corpo permanece imóvel na cama. A cena, que deveria ser repleta de ternura, é tomada por um silêncio incômodo. A depressão paira sobre ela como uma sombra densa, afastando-a daquele momento que, para muitos, seria de plenitude.

A câmera se fecha em seu olhar vazio. A pequena Aurora continua chorando suavemente, nos braços de um pai radiante e de uma mãe que, mesmo ali, parece estar muito longe.

CORTA PARA:

 

CENA 5. HOSPITAL PSIQUIÁTRICO. JARDIM. EXT. DIA

 

O jardim do hospital psiquiátrico é amplo, mas sua beleza é opaca, desprovida de vida. Árvores balançam suavemente ao vento, e algumas folhas secas se espalham pelo chão. No centro do gramado, sentada em um banco de madeira desgastado pelo tempo, está Laura.

Ela veste um vestido claro, simples, e seus cabelos estão cuidadosamente penteados, mas seus olhos... seus olhos carregam o abismo de uma mente fragmentada. Em seus braços, ela segura uma boneca vestida de azul, embalando-a com delicadeza.

LAURA - (SORRINDO, VOZ DOCE E ENLOUQUECIDA) Meu Robertinho (T) Você está com fome, meu amor? A mamãe já vai preparar seu leitinho...

Ela ajusta a posição da boneca com cuidado, como se fosse um bebê real. Seus olhos brilham de um jeito desconcertante, uma ternura doentia.

Ao fundo, dois médicos observam a cena à distância. Um deles segura uma prancheta, enquanto o outro cruza os braços, balançando a cabeça em sinal de pesar.

MÉDICO 1 - (SUSPIRANDO) Quando ela recobrar o juízo, vai enfrentar um inferno. Todos os bens do Dr. Roberto foram confiscados.

MÉDICO 2 - (FRIO, PRAGMÁTICO) Só sobraram alguns milhões que ela tinha antes de casar com ele e um apartamento na Borges de Medeiros.

Os dois médicos trocam um olhar sério.

MÉDICO 1 - (BAIXANDO O TOM) Quando ela souber da ruína, vai enlouquecer ainda mais.

O vento sopra levemente, carregando folhas pelo jardim. A câmera retorna para Laura, que agora balança a boneca nos braços, cantarolando uma melodia infantil.

LAURA - (SORRINDO, VOZ MEIGA E TRÁGICA) Dorme neném que a cuca vem pegar...

Ela olha para a boneca com um olhar de amor insano, enquanto a música continua, se misturando ao vento.

CORTA PARA:

 

CENA 6. SÃO PAULO. CLIPE. EXT.

 

 

SONOPLASTIA - ANOTHER DAY IN PARADISE — CAT VS CAT & JOYNER

 

As primeiras imagens revelam a grandiosidade caótica de São Paulo. Prédios espremem-se uns contra os outros sob um céu nublado, quase acinzentado. O trânsito intenso é visto em grandes avenidas como a Marginal Pinheiros e a Radial Leste, com buzinas distantes compondo uma sinfonia urbana tensa.

A cidade pulsa com uma energia cansada. Pedestres andam apressados pelas calçadas da Avenida Paulista, rostos escondidos sob máscaras, olhares vazios. A pandemia deixou marcas visíveis: vitrines de lojas fechadas, cartazes de “aluga-se” nas fachadas, ruas grafitadas com mensagens de luto e resistência.

Na região da Cracolândia, a câmera capta um retrato cru da miséria, com vultos humanos espalhados pelas calçadas como sombras vivas. O céu escurece mais um pouco, apesar de ainda ser dia.

Corta para o centro financeiro da Faria Lima. Mesmo ali, a pompa perdeu o brilho: empresários de terno caminham com os ombros curvados, celulares em punho, e uma tensão pairando no ar.

A câmera sobrevoa a cidade até chegar ao Jardim América. As ruas são arborizadas, os muros altos, os portões de ferro. Um oásis de luxo silencioso em meio ao caos da metrópole. Mas até ali, paira um clima estranho, como se algo estivesse fora de lugar.

As folhas de outono caem sobre o jardim bem cuidado de uma das mansões. 

Na tela aparece:


SÃO PAULO, 2025.

CORTA PARA:

 

CENA 7. MANSÃO DOS GODOY BUENO. SALA. INT. DIA

 

A sala é de um clássico imponente. Lustres de cristal, tapetes persas, colunas brancas e uma escada monumental que parece ter saído de um filme antigo. A luz do sol entra pelas vidraças amplas, refletindo nos objetos dourados. A trilha sonora da cena anterior — Another Day in Paradise – Cat vs Cat & Joyner — continua tocando ao fundo, conferindo uma melancolia sutil à atmosfera.

Carolina, elegante e melancólica, está parada junto à janela, observando o jardim. Lá fora, a pequena Aurorabrinca com a babá Ana Maria, correndo atrás de bolhas de sabão. A mãe observa a cena com olhos distantes, vazios. Há um abismo entre ela e a criança.

Valquíria surge por trás, como uma sombra, vestida com um conjunto caríssimo e joias discretas, mas de valor inegável.

VALQUÍRIA - (SECA, AUTORITÁRIA) Sente-se. Tenho uma notícia pra você.

CAROLINA (SEM VIRAR, TOM GÉLIDO) Vai me contar que as bolsas caíram? Ou que o Brasil ainda fede a hipocrisia?

VALQUÍRIA (CRUZA OS BRAÇOS, IMPACIENTE) Os jornais descobriram.

CAROLINA - (VIRA-SE LENTAMENTE) Descobriram o quê, Valquíria? Que você sempre preferiu a aparência à verdade?

VALQUÍRIA (FRIA, CORTANTE, COM UM LEVE SORRISO VENENOSO) Descobriram que você denunciou o Doutor Roberto. Que ele se matou por sua causa. Que a família Godoy Bueno está envolvida num escândalo de estupro, suicídio e tragédia.

CAROLINA (EM CHOQUE, MAS SEM PERDER A POSE) Você me protegeu por imagem. Não por mim.

VALQUÍRIA (CHEGA MAIS PERTO, SEU TOM AGORA É GÉLIDO) Eu protegi o que importa: o sobrenome. Mas você, Carolina (T) sempre teve essa mania romântica de verdade. Pois aí está o preço.

CAROLINA - (OLHA PARA BAIXO, SUSSURRANDO) Ele estuprou outras mulheres, mãe. Eu só fui a primeira que denunciou...

VALQUÍRIA - (DESDENHA) E daí? Você acha que uma dedada te torna Joana d’Arc?

CAROLINA (FERIDA, MAS SEM LÁGRIMAS) Eu tive coragem. Você só tem cinismo.

VALQUÍRIA (SECA, PEGANDO A BOLSA PARA SAIR) Coragem sem inteligência é burrice. E burrice tem preço alto nessa família.

Ela caminha para fora, impávida. Carolina permanece imóvel, a música ainda tocando, mais baixa agora.

Do lado de fora, vemos Aurora dando risada, alheia ao abismo emocional que cresce dentro da casa.

CORTA PARA:

 

CENA 8. IGREJA MATRIZ DE SÃO PEDRO. EXT. DIA

 

O céu está cinzento, com nuvens pesadas cobrindo o azul. A imponente fachada gótica da Igreja Matriz de São Pedro impõe-se sobre a paisagem, enquanto turistas circulam com suas câmeras, sorrisos e esperança nos olhos.

Na lateral da igreja, sentada em um banco de pedra escurecido pela umidade, está LauraO cabelo está solto, ligeiramente desarrumado pelo vento. Ela veste preto dos pés à cabeça, com um sobretudo elegante, mas já amarrotado. Um cigarro arde entre seus dedos finos e inquietos. A maquiagem está impecável, mas os olhos — aqueles olhos antes altivos — agora carregam uma sombra.

Laura observa, com um misto de desdém e melancolia, os casais que caminham até a Fonte do Amor Eterno, a poucos metros dali. Jovens apaixonados amarram cadeados na grade, tiram selfies, juram promessas.

Ela dá uma tragada profunda, o rosto impassível. Joga o cigarro no chão e pisa com desprezo, como se esmagasse a própria ideia do amor.

Pega a bolsa, ajeita o sobretudo nos ombros e começa a descer, lentamente, os degraus da Igreja.

A câmera se afasta, focando os casais risonhos em primeiro plano, emoldurados por flores e promessas. Ao fundo, Laura caminha sozinha pela Avenida São Pedro, tornando-se cada vez menor na composição, um vulto negro em meio à cidade romântica.

CORTA PARA:

 

CENA 9. AVENIDA SÃO PEDRO. EXT. DIA

 

O barulho da cidade turística se mistura ao tilintar das xícaras nas cafeterias, vozes em idiomas diversos e o som abafado de um saxofone tocando ao longe. O clima é fresco. Gramado vive seu movimento cotidiano de visitantes e vitrines reluzentes.

Laura caminha sozinha, em direção oposta à multidão. Seus passos são lentos, seu olhar, distante. Ela veste o mesmo sobretudo preto. Carrega a bolsa como quem carrega um peso invisível.

A câmera acompanha de longe, em plano-sequência, sem cortes. Vemos pessoas passando por ela, mas Laura parece alheia, como se ocupasse uma outra dimensão. Um casal tropeça na sua frente — ela não reage.

Ao fundo, uma vitrine exibe roupas infantis. Laura passa sem olhar.

Ela chega à entrada de um prédio elegante, antigo, de linhas retas e fachada austera. Um edifício discreto e imponente na mesma medida.

Sem hesitar, Laura entra.

A porta de vidro se fecha lentamente atrás dela, abafando todos os sons da cidade.

A câmera permanece do lado de fora, estática, observando o reflexo das árvores na porta.

Silêncio.

CORTE PARA:

 

CENA 10. APARTAMENTO DE LAURA. SALA. INT. DIA

 

O apartamento é sóbrio, decorado com elegância minimalista, cores neutras, poucos móveis e janelas amplas que deixam entrar a luz fria do início da tarde. Há um silêncio pesado no ar.

Laura entra, largando a bolsa no chão com um gesto brusco. Tira o sobretudo e o joga displicentemente sobre uma poltrona.

Com um clique no controle remoto, a televisão se acende. A vinheta de abertura do Jornal Do Meio-Dia. A imagem corta para a jornalista Cristina Ranzolin, séria, direta.

CRISTINA RANZOLIN (TV) - (VOZ EM OFF, JORNALÍSTICA)
Cinco anos após o trágico suicídio do renomado obstetra Roberto Vasconcellos, acusado de estupro por diversas pacientes, a identidade da primeira denunciante vem à tona. Trata-se de
 Carolina Godoy Bueno, herdeira de uma das famílias mais tradicionais de São Paulo. A revelação foi confirmada esta manhã por fontes ligadas ao Ministério Público...

A câmera foca em Laura, que se aproxima da TV lentamente, os olhos fixos na imagem de Carolina em um take antigo, usado pela emissora.

O rosto de Laura endurece. Seu maxilar trinca. Uma sombra de fúria percorre seu olhar.

Ela desliga a televisão. Silêncio.

Fica imóvel por um segundo. Depois, caminha até o aparador, serve-se de uma dose de conhaque.

Bebe de um gole só.

LAURA -(BAIXA, VENENOSA, COM ÓDIO CONTIDO) Você me tirou tudo, Carolina (T) Agora vai ser a minha vez.

Ela caminha até a janela e acende um cigarro, olhando a cidade com desprezo.

LAURA - (COM SORRISO AMARGO) Não existe passado que não volte, minha querida.

CORTA PARA:

 

CENA 11. RIO DE JANEIRO. EXT. ANOITECER

 


SONOPLASTIA - ANA DE AMSTERDAM – CHICO BUARQUE

 

O Rio de Janeiro surge diante de nós com uma beleza ferida, quase indecente. A câmera percorre a cidade com olhar íntimo e inquieto, revelando não o esplendor turístico, mas as frestas — os espaços entre a luxúria e a solidão. A música de Chico Buarque invade como um sussurro lânguido, preenchendo o ar com poesia e melancolia.

Santa Teresa arde em silêncio sob o céu que se avermelha. Em uma janela aberta, uma mulher nua fuma, seu olhar perdido na curva da cidade. Lá embaixo, a Lapa pulsa com luzes fracas e sombras alongadas. Beijos rápidos, passos apressados, olhos que evitam contato. Há tensão no ar, como se todos soubessem algo que fingem esquecer.

O Cristo Redentor aparece ao fundo, mas escurecido, contra a luz do entardecer. Não acolhe — observa. A cidade segue viva, mas esgarçada. Da Zona Sul às comunidades em morro, tudo respira um erotismo cansado. A favela se acende aos poucos, em silêncio. Os becos estreitos de Copacabana revelam corpos colados pelas calçadas, promessas feitas por olhares furtivos.

Já é noite. No calçadão de Copacabana, o vento sopra firme. As pedras portuguesas brilham úmidas. Um homem caminha sozinho com uma lata de cerveja. Um casal discute em voz baixa, entre dentes cerrados. Uma mulher caminha de salto alto, cigarro entre os dedos, batom borrado e olhar distante. Há beleza. Há sordidez. Há desejo. Tudo ao mesmo tempo.

A câmera se detém no mosaico do calçadão, enquanto a música chega ao seu ponto mais íntimo. Um cigarro é pisado com violência. As ondas quebram, indiferentes.

CORTA PARA:

 

CENA 11. CALÇADÃO DE COPACABANA. EXT. NOITE

 

A noite vibra em Copacabana. O céu escuro se mistura com as luzes dos postes e dos faróis, enquanto o vai e vem das ondas ao fundo marca o compasso de uma cidade que nunca dorme completamente.

Encostada na janela de um carro importado, uma mulher de corpo exuberante, roupa justa e brilho nos olhos negocia algo com o motorista. A conversa parece não prosperar. Ela revira os olhos com um sorriso cínico, bate levemente na porta do carro e se afasta, rebolando com confiança.

Quando se aproxima da câmera, seu rosto se revela — a semelhança com Carolina Godoy Bueno é chocante. Fisionomia idêntica, mas ali está outra mulher. Os cabelos são curtos e negros, o olhar vibrante, a energia carregada de sensualidade crua. É Viviane, conhecida nas ruas como Vivi Veneno.

Ela caminha em direção a uma figura colorida e espalhafatosa, sentada num dos bancos do calçadão: Lari Pacotão, sua amiga inseparável. Lari bebe uma cerveja de latão e ri sozinha, provavelmente de seus próprios pensamentos.

VIVI VENENO — Manaaa, o bofe queria menáge por duzentão! Duzentão! Achei que tava no brechó das putas falidas!

LARI PACOTÃO — A cara nem arde, né? Duzentão pra dividir comigo? Só se for pra ele sair com a rolinha esfarelada!

VIVI VENENO — Menina, hoje tá uó! Já tô me sentindo a Bibi perigosa versão desconto.

Vivi senta-se ao lado da amiga, cruzando as pernas com pose de diva cansada. Lari olha em volta e balança a cabeça.

LARI PACOTÃO — Vamo encerrar, mana. Se continuar assim, só nos resta a beira-mar e o drama.

VIVI VENENO — Demorô, pacotão. A noite tá morta, e a mamãe aqui quer cerveja e cama.

As duas se levantam, Vivi joga os sapatos no ombro como quem carrega troféus. Elas caminham pela calçada de pedras portuguesas, deixando para trás a penumbra, os carros, os encontros frustrados e os sorrisos falsos.

A noite segue, mas para Vivi e Lari, a festa acabou — por enquanto.

CORTA PARA:

 

CENA 12. APARTAMENTO DE LARI PACOTÃO E VIVI VENENO. SALA. INT. NOITE

 

O apartamento é simples, decorado com exagero e bom humor: pôsteres antigos, luzes de LED coloridas, almofadas com estampas de divas pop e um ventilador girando preguiçosamente no teto. Ao fundo, toca um brega remixado em volume baixo.

Vivi entra primeiro, tirando os saltos e se jogando no sofá como se tivesse acabado de voltar de uma guerra. Ela solta um suspiro profundo, pega o controle da TV e começa a zappear sem interesse.

VIVI VENENO — Ai, mana hoje foi só o bagaço do pastel. Nem pra pagar a cerveja do boteco deu.

Lari entra em seguida, mas está estranha. Com o celular na mão, parada na porta da sala, os olhos arregalados. Vivi percebe o silêncio.

VIVI VENENO — Que foi, Pacotão? Viu espírito ou tua dívida no Serasa?

LARI PACOTÃO — Não, mana (T) Tu precisa ver ISSO AQUI.

Ela atravessa a sala em passos rápidos e entrega o celular pra Vivi. No vídeo, Carolina aparece séria, saindo de um prédio cercada por câmeras. A legenda no vídeo é clara: "Carolina Godoy Bueno é a vítima de estupro que levou Roberto Vasconcellos ao suicídio."

Vivi assiste por alguns segundos em silêncio. O rosto da mulher no vídeo é igual ao dela. Idêntico. É como se estivesse vendo a si mesma em outro universo — elegante, rica, envolvida num escândalo de alta sociedade.

VIVI VENENO (BOQUIABERTA) Puta que pariu (T) É EU! Mas versão chique, com grana e escândalo de novela das nove!

LARI PACOTÃO — Falei! A mana é tua cópia cuspida, cagada e passada na purpurina!

VIVI VENENO — Será que eu sou ela? Ou ela sou eu? Ou será que a gente foi separada na maternidade e eu fui parar no beco errado?

LARI PACOTÃO — Só sei que se tu fizer um testinho de DNA e for rica, eu viro tua empresária e a gente muda esse look de "vou ali vender meu corpo e já volto".

VIVI VENENO — Ainnn, mana, já pensou? Uma boneca dessas envolvida em escândalo de rico! Olha se isso for treta de alma gêmea invertida, eu vou virar essa história de cabeça pra baixo. Porque ninguém fica com minha cara estampada na Globo sem me pagar royalties!

Ela devolve o celular pra Lari e acende um cigarro, encarando o teto como quem acabou de descobrir um portal para outra dimensão. O olhar de Vivi agora tem algo diferente. Curiosidade. Sede. Um início de plano.

 

CORTA PARA:

 

FIM

 

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