A INTRUSA
CAPÍTULO 23
UMA NOVELA DE TAÍS GRIMALDI
CENA 1. MANSÃO DOS GODOY BUENO. ESCADARIA. INT. DIA
Lucinha está no alto da escada, ofegante, os cabelos desalinhados, os olhos queimando de fúria e frustração. No chão, em posição estrategicamente desamparada, está Laura — a todos conhecida como Selma. Ao lado dela, Vivi — que todos acreditam ser Carolina — se curva para socorrê-la.
LUCINHA - (grita) Ela se jogou, Carolina! Você viu! Essa mulher se jogou!
VIVI - (ainda ajoelhada ao lado de Laura) Chega, Lucinha. Isso passou dos limites. Você tá descontrolada!
LUCINHA - (indo em direção aos degraus, incrédula)
Descontrolada? Por tentar te proteger? Carolina, abre os olhos! Essa mulher, essa víbora está te manipulando. Fez um teatro agora mesmo — ela se atirou da escada!
VIVI - (séria, firme) Ou talvez você tenha feito exatamente isso que todo mundo viu. Você a empurrou. Porque não aceita que o Rubinho seguiu em frente com alguém mais jovem.
Lucinha solta uma risada seca, trêmula. Desce um degrau com intensidade. Seu olhar se crava no de Carolina.
LUCINHA - (sincera, devastada) Você tá mesmo acreditando nela? Na mulher que eu vi plantar uma arma na bolsa da Valquíria?
(grita) Você tá se voltando contra mim, Carolina? Logo você, que eu criei, que eu vi dar os primeiros passos? (mais baixo, com dor) Eu te amei como uma filha.
Vivi se levanta, contida, mas os olhos brilham de raiva.
VIVI - (sussurra) Eu não sei mais quem é você, Lucinha. Mas não é a mulher que me criou.
LUCINHA - (ferida, mas altiva) Você também não é a menina que eu carregava no colo, Carolina. Você tá cega. E essa cegueira vai te destruir.
VIVI - (frente a frente com Lucinha)
Vai embora. Antes que piore ainda mais as coisas.
Lucinha recua. Seus olhos marejam. Ela vira o rosto.
E vê: Laura — ainda no colo de Vivi — olha por cima do ombro e sorri. Um sorriso diabólico, triunfante. O tipo de sorriso que só os que não têm alma sabem dar.
Lucinha congela. A dor agora se mistura com ódio. Ela aperta os punhos, mas não diz nada. Apenas sai. Sozinha. Mas não vencida.
CORTA PARA:
CENA 2. SÃO PAULO / RIO DE JANEIRO. ANOITECER. EXT.
SONOPLASTIA — PADAM PADAM – KYLIE MINOGUE
Em São Paulo, helicópteros sobrevoam o concreto enquanto luzes acendem como constelações artificiais. Pessoas com passos apressados, celulares na mão, corredores de vidro e aço. Uma cidade que nunca se entrega.
No Rio, a luz do sol se deita sobre a areia de Ipanema, refletida nas janelas dos prédios antigos. O mar dança ao longe, e os primeiros postes da orla acendem um a um, como se despertassem para uma nova cena.
O interior de um carro de luxo cruza a Avenida Atlântica. Vemos apenas mãos femininas envoltas em luvas vermelhas segurando um copo de cristal com gim-tônica. Um anel com rubi pulsa como um pequeno coração.
A câmera sobe, e em um travelling elegante, revela o carro estacionando diante de um portão antigo de ferro forjado.
CENA TERMINA EM:
MANSÃO DE ISABELLE LECLERC. EXT. NOITE.
A fachada é suntuosa, quase parisiense. Um casarão tombado no coração de Laranjeiras. Luzes âmbar filtram pelas janelas. O jardim é silencioso, elegante, cruel.
A porta da frente se abre antes mesmo do carro parar completamente. Uma empregada abre um guarda-chuva vermelho.
Isabelle Leclerc surge da penumbra do carro. Impecável. Lábios carmim. Um véu negro sobre os olhos. Um vulto com cheiro de mistério e passado. Ela sorri, mas não há alegria. Apenas cálculo.
CORTA PARA:
CENA 3. MANSÃO DE ISABELLE LECLERC. SALA DE ESTAR. INT. DIA
A sala é um templo do luxo atemporal. Colunas de mármore branco, tapeçarias orientais, mobiliário art déco. O dourado predomina — opulento sem ser vulgar. Uma harpa ornamental repousa no canto. O som distante de Padam Padam ainda ecoa no ambiente, agora instrumentalizado por cordas suaves.
Lari Pacotão desfila pelo centro do cômodo com a desenvoltura de uma diva pop pós-moderna. Seu vestido curto, recortado geometricamente, exibe pele, brilho e ousadia. Um look camp que beira a provocação. Com um leque de plumas em mãos e o carisma de quem nasceu pra ser notada, ela revira os olhos e dispara, em pajubá:
LARI PACOTÃO - (impaciente) Armand, mon amour, até quando essa vovó vai fazer a Beyoncé de Versailles? A boneca já tá suando glitter de ansiedade aqui!
Armand, de terno impecável, responde num espanhol elegante, tentando manter o controle.
ARMAND - (baixo, nervoso) Lari, por favor. Un poco de calma. Está por llegar.
Mas Isabelle Leclerc não está por chegar — ela já chegou.
A porta se abre com firmeza, e Isabelle entra como se estivesse pisando numa passarela do destino. Um vestido de seda francesa num tom creme quase gélido. O cabelo loiro-acinzentado, perfeitamente armado. Um lenço Hermès no pescoço. O batom carmim grita perigo.
Ela para, observa a cena por um segundo, e sorri com veneno sutil.
ISABELLE - (con calma, letal) No necesitan esperarme. Nunca llego tarde.
Es el mundo el que se adelanta…
Isabelle caminha até Lari, a encara dos pés à cabeça, lenta, com desdém de quem avalia uma vitrine de liquidação.
ISABELLE - (diretamente para Armand) ¿Esta es la prometida? ¿La novia?
ARMAND - (confiante, mas hesitante) Oui. Lari é minha noiva.
Isabelle solta uma pequena risada — seca, sem humor. O silêncio pesa.
ISABELLE - (pausada, ferina) Pensé que Brasil exportaba café, frutas tropicales y modelos.
No payasas.
LARI PACOTÃO - (abrindo o leque, venenosa) E eu pensei que a Europa já tivesse aposentado a guilhotina. Mas pelo visto, você sobreviveu.
Armand tenta intervir, mas é ignorado.
ISABELLE - (sorrindo) Eres graciosa.
Debes ser fantástica entreteniendo. Pero no te equivoques, querida. Ser exótica no es una profesión.
LARI PACOTÃO - E ser rica não é sinônimo de classe.
Querida, seu Chanel tá gritando socorro.
ISABELLE - (um tom mais baixo, quase sussurrando)
Cuidado, niña. Las palabras tienen precio. Y aqui quien paga soy yo.
O clima pesa. Lari encara Isabelle com altivez.
Nesse exato momento, Vitória, a governanta, surge, tentando conter o fogo iminente:
VITÓRIA - (educada, aflita) Com licença, o jantar está servido.
Isabelle permanece imóvel. Seca. Gélida.
ISABELLE - Sin hambre. Los negocios me esperan y este país, lamentablemente, también.
Ela começa a sair, mas lança um último olhar para Lari. Um olhar que insinua o insulto que não ousa pronunciar: prostituta.
Mas Lari, com um arquejo de sobrancelha, mostra que entendeu.
Elas trocam olhares como lâminas — afiadas, prometendo vingança futura.
CORTA PARA:
CENA 4. RESTAURANTE LE CLEIRE. INT. NOITE
SONOPLASTIA – NÃO NEGUE TERNURA (PART. LUEDJI LUNA) – ZÉ MANOEL
O restaurante está cheio, elegante, sofisticado. Lustres de cristal lançam reflexos dourados nas taças de vinho, e um quarteto de cordas toca ao fundo, em perfeita harmonia com o jazz suave que se funde à canção. O ambiente é intimista e luxuoso.
Madson, agora assumindo o nome de Sofia, entra com discrição, mas sua presença logo chama atenção. Um vestido preto, simples, impecável. Os cabelos presos com elegância. Há algo de força e vulnerabilidade nela.
A MAÎTRE, impecável, se aproxima imediatamente.
MAÎTRE - Boa noite, mademoiselle. Posso ajudá-la?
MADSON - (serena) Vim encontrar Marcos. Ele está esperando por mim.
A maître sorri, reconhecendo o nome, e faz um gesto com a mão.
MAÎTRE - Claro. Por aqui, por favor.
Ela a conduz até uma mesa especial — a mesa do chef, uma bancada com vista direta para a cozinha envidraçada, onde Marcos, belo, sereno, de avental escuro e mangas arregaçadas, surge com um sorriso de surpresa e encanto.
MARCOS - (encantado) Você veio (ri) Eu queria tanto, mas confesso que não achei que aceitaria.
MADSON - (sorrindo, contida) Eu nunca recuso um convite para um restaurante francês.
MARCOS - Então hoje a casa é sua.
E o cardápio vai ser inesquecível.
A música aumenta suavemente, acompanhando o desenrolar da noite.
Marcos se movimenta com maestria na cozinha. Cada prato é preparado diante dela — uma performance elegante. Ele a observa enquanto cozinha, e ela o observa cozinhar. Trocas de olhares. Pequenos sorrisos. Um jogo silencioso, cúmplice.
Pratos chegam em sequência: entradas delicadas, um prato principal aromático, um vinho que Sofia sorve com prazer.
A cena é delicada, sensual na sugestão. Um jogo de aproximação lenta. O tempo parece desacelerar.
Agora, Madson está saboreando a sobremesa — um mil-folhas com frutas vermelhas, que derrete na boca. Ela fecha os olhos por um segundo, em prazer contido.
Marcos se aproxima, sem avental, só com a camisa social arregaçada, lenço de chef ao pescoço. Ele se apoia na bancada, mais próximo.
MARCOS - (baixinho) Se eu dissesse que esperei por esse momento. Seria clichê demais?
MADSON - (devolvendo o olhar, mas séria) Seria verdade demais.
Ele sorri, um pouco mais ousado agora. Inclina-se, suavemente, para beijá-la.
Ela hesita. Coloca a mão no peito dele, impedindo.
MADSON - (baixinho) Eu quero, Marcos. Mas ainda não estou pronta. Será que a gente pode ir devagar?
MARCOS - (claro, sem perder a doçura) A gente pode tudo. No seu tempo.
Eles trocam um olhar profundo. Ele toca a mão dela, com delicadeza. Ela não recua.
A música cresce. A cena termina num silêncio confortável entre os dois.
CORTA PARA:
CENA 5. MANSÃO DOS GODOY BUENO. SUÍTE DE CAROLINA E MARCO AURÉLIO. INT. DIA
Vivi está sentada na cama king size, abraçada aos próprios joelhos. Os lençóis de linho ainda desfeitos sugerem uma noite inquieta. Seu rosto está abatido, os olhos vermelhos.
Ela encara o vazio — a opulência da suíte parece esmagá-la.
A porta se abre com um clique sutil. Marco Aurélio entra. Camisa aberta, gravata solta, o terno impecável mas desalinhado. Carrega nas mãos um copo de uísque. Ele a observa por um instante, em silêncio.
MARCO AURÉLIO - (baixo, cuidadoso) O que aconteceu?
Vivi demora a responder. Engole em seco. A voz sai trêmula.
VIVI - (sem olhar) Lucinha empurrou Selma da escada. (pausa) Pelo menos é o que Selma diz. Mas Lucinha jura que ela se jogou. (pausa mais longa) Eu não sei mais em quem acreditar.
Marco se aproxima, se senta ao lado dela. Não a toca ainda.
VIVI - É tudo tão estranho. Viver uma vida que não é minha. (pausa, o olhar perdido) A Carolina verdadeira, ela não duvidaria da Lucinha. Elas tinham algo. Um laço. Um tipo de fé.
MARCO AURÉLIO - (baixo) Carolina e Lucinha se protegiam.
Se amavam como irmãs deveriam amar.
VIVI - (choro contido) Mas eu não sou ela. Às vezes, eu nem sei quem eu sou.
Ele finalmente a toca. Pousa a mão em sua perna. Ela deixa.
MARCO AURÉLIO - Você tem o direito de não saber. Mas não precisa carregar isso sozinha.
A canção Yo No Sé Mañana de Luis Enrique começa, suave, sedosa. Vivi o encara por um longo instante. Seus olhos dizem o que ela não consegue dizer.
Eles se beijam. Primeiro lento, tateando. Depois intenso.
Um beijo cheio de culpa, desejo e algo que beira o perdão.
Marco Aurélio deita Vivi devagar. A música cresce, envolvente.
Ele começa a desabotoar a camisola de seda. Os dedos hesitam na pele dela. Mas Vivi interrompe o gesto com as mãos. A música para abruptamente.
VIVI - (aflita, quase ofegante) Não. Isso tá errado.
Marco a encara. Não recua, mas também não insiste.
VIVI - Você é o marido da Carolina. (pausa tensa) A gente nem sabe o que aconteceu com ela. Quem a matou. Se ela era minha irmã de verdade. (pausa) Ficar com você assim é mórbido.
Marco Aurélio respira fundo. Tenta manter o controle. Mas há emoção em sua voz.
MARCO AURÉLIO - Carolina e eu terminamos há anos. Ela se afastou, se fechou. E mantinha um caso com Daniel.
VIVI - (interrompendo) Eu sei. Já me disseram. Mas ouvir isso da sua boca (pausa, respira fundo) É demais. Tudo é demais.
Ela se levanta, pega um robe.
Marco a observa, em silêncio.
VIVI - Eu preciso respirar.
Ela abre a porta do quarto. Para por um segundo na soleira, como se esperasse que ele a chamasse de volta.
Ele não diz nada.
Vivi sai.
A música retorna, agora num trecho melancólico e profundo.
Marco Aurélio, sozinho, passa os dedos pelos lábios, lentamente. Um quase sorriso. Um lamento contido.
CORTA PARA:
CENA 6. APARTAMENTO DE LUCINHA. QUARTO DE PATRÍCIA. INT. NOITE
Tudo no quarto parece parado no tempo. Uma fotografia do pai em preto e branco ainda repousa num porta-retrato torto. Há cheiro de maquiagem vencida e ressentimento no ar.
Lucinha entra sem bater — como quem invade, não como quem pertence. Seus olhos estão injetados, seu maxilar travado. A cada passo, ela parece ouvir o eco dos próprios erros batendo nas paredes.
Começa a revirar o quarto como se procurasse um pedaço de si.
Abre gavetas com raiva, remexe caixas com desprezo.
Uma escrivaninha. Segunda gaveta. Um frasco âmbar, pequeno, quase discreto.
Luz focaliza o frasco. Lucinha o pega como se queimasse. Reconhece o conteúdo.
Os dedos tremem. O rosto endurece ainda mais.
LUCINHA -Isso aqui é o que eu tô pensando?
PATRÍCIA - (voz vinda da porta) É.
Lucinha se vira devagar. Patrícia está ali, parada. Descalça. Frágil. Mas com a altivez dos ressentidos. O silêncio entre as duas é espesso, cortante.
LUCINHA - (soturna) Você drogou o meu namorado?
PATRÍCIA - Não ia deixar você dormir com ele.
LUCINHA - O Rubinho tava dizendo a verdade. Mas eu tava tão cega que acreditei em você.
Lucinha dá um passo. O frasco ainda na mão. As lágrimas não caem — mas o que se vê nos olhos dela é desolação.
LUCINHA - Você tentou sabotar minha vida. Por ciúme.
PATRÍCIA - (voz baixa, um pouco trêmula) Não foi só ciúme.
(pausa) Foi luto.
O que era raiva em Lucinha começa a vacilar. Um terremoto surdo de emoções mal resolvidas começa a rachar sua postura.
PATRÍCIA - Você seguiu em frente como se o papai tivesse sido um detalhe.
Como se ele tivesse saído por aquela porta. E pronto. E eu fiquei aqui com o cheiro da camisa dele. Com o silêncio da ausência. Com você rindo com um garoto que estudou comigo.
Lucinha quebra. Baixa os olhos. A voz sai baixa, como quem fala com o próprio fantasma.
LUCINHA - Você acha que foi fácil? Eu dormia do lado do vazio. Eu pedia desculpa pro travesseiro. Eu falava sozinha. E quando eu ri com o Rubinho foi a primeira vez que me senti viva depois de muito tempo. (pausa) Desculpa se doeu em você. Mas doeu em mim também.
Patrícia tenta conter o choro, mas ele escapa.
É um choro sujo. Um choro de saudade mal resolvida. De amor que virou nó.
PATRÍCIA - (muito baixo) Tinha que ser com um cara da minha idade?
Lucinha fecha os olhos. Quando os abre, há verdade.
LUCINHA - Eu não escolhi a idade dele. Eu escolhi a sensação de respirar de novo.
Ela estende o braço. Patrícia hesita, mas se entrega.
O abraço é duro. Cheio de espinhos. Mas é um começo.
LUCINHA - Me perdoa por ter vivido.
PATRÍCIA - Me perdoa por querer te punir.
O tempo parece suspenso.
Ali, mãe e filha não se reconhecem como antes — mas se aceitam como podem. Com feridas. Com culpa. Com amor.
A câmera se afasta lentamente. Enquanto o abajur treme levemente, o frasco de "boa noite, Cinderela" permanece no criado-mudo. Entre elas.
CORTA PARA:
CENA 7. MANSÃO DOS GODOY BUENO. JARDIM. EXT. NOITE
O jardim da mansão está quase deserto. A luz suave dos refletores toca as copas das árvores, desenhando sombras elegantes sobre o gramado perfeitamente aparado. Há algo de melancólico no ar — um silêncio que ecoa saudades, culpas, desejos antigos.
Daniel, só, fuma um cigarro encostado à balaustrada de pedra. O olhar perdido no vazio. Fuma como quem procura anestesia. O gesto é antigo, automático — como se o cigarro fosse o único elo que resta entre ele e um tempo que já não volta.
Vivi surge discretamente. Usa um robe claro, de seda, que se move levemente com a brisa. Ela se aproxima com passos silenciosos, mas firmes, e para a poucos metros dele.
VIVI - Me dá um?
Daniel a observa, surpreso. Um sorriso discreto — quase incrédulo.
DANIEL -Achei que você tinha parado.
VIVI - Voltei.
Ele tira um cigarro da carteira, entrega a ela. Os dedos se tocam por um instante longo demais para ser casual. Ela acende. Traga fundo. O cigarro ilumina o rosto dela num breve clarão. Há algo quebrado em seu olhar. Algo que não pertence ali.
DANIEL - (sincero, nostálgico) Eu sempre gostei disso com você. Fumar. Ficar em silêncio. Falar da vida sem pressa.
Vivi não responde. Seus olhos vagam pelo jardim, mas estão presos a alguma memória distante. Um tempo que não lhe pertence — ou que ela não sabe se lhe pertence de fato.
DANIEL – Carolina (doce) Você deixou de me amar?
O silêncio é denso, quase palpável.
Ao fundo, a canção "Amor, Meu Grande Amor", de Angela Ro Ro, começa suave — como se soprada pelo vento.
VIVI - Eu te amo, Daniel. Mas de outro jeito. Um jeito que você talvez não aceite. Como um grande amigo. Uma lembrança boa.
Ele a observa em silêncio. A dor contida nos olhos. O orgulho se despedaçando lentamente.
DANIEL - Você tá mentindo pra mim ou pra você?
Ele toca o rosto dela. Com ternura. Com reverência. Com culpa.
Vivi fecha os olhos. Por um instante, se permite. Há um segundo de rendição. Mas logo se afasta, despertando como quem foge de um pesadelo doce demais para ser seguro.
VIVI - (séria, firme) A gente não pode. Nem deve. Lívia, por exemplo, me mataria.
Daniel hesita. Um silêncio se impõe. Ele desvia o olhar. Depois encara de novo.
DANIEL - Então você já sabe...
VIVI - Saber o quê?
DANIEL - A Lívia tá grávida. De mim.
O tempo parece parar. A brisa cessa. A música cresce.
O rosto de Vivi muda. Descrença. Raiva. Traição.
VIVI - (baixo, envenenado) Filho da p( não termina) Você diz que me ama e ( explode) E transa com a minha irmã? COM A MINHA IRMÃ?!
Ela arremessa o cigarro no chão. A chama morre instantaneamente.
Vivi vira uma força da natureza. Um vendaval de mágoa. Um grito represado por vidas inteiras.
VIVI - (gritando, ferida) Você me faz de idiota! Me olha com essa cara de arrependido (pausa) Você NÃO VALE NADA!
DANIEL - (agarrando-a pelos ombros) Eu te amo! Foi um erro, uma confusão. Ela se jogou em cima de mim, eu tava mal, você tava distante...
VIVI - (gritando, não sabe se fala dela ou de Carolina) EU TAVA MORTA! VOCÊ ENTENDE ISSO? VOCÊ DORMIU COM MINHA IRMÃ ENQUANTO EU...
Eles se encararam. A respiração pesada. O peito arfando. A raiva vira tensão. A tensão vira beijo. Um beijo quente, confuso, apaixonado, sujo de mágoa e de saudade. A música chega ao auge.
Quando o beijo termina, Vivi se afasta. Ofegante. Rosto corado, olhos vermelhos.
DANIEL - (quase sussurrando) Fica. Vamos tentar...
VIVI - (baixa, dolorida) A gente não pode. Nem se a gente quisesse. A vida não deixou. Eu não sou quem você pensa.
Ela se afasta. Desaparece no interior da casa.
Daniel fica ali. Sozinho. O som da noite volta aos poucos.
A brisa retorna. E com ela, o arrependimento.
A câmera sobe lentamente. As luzes da mansão parecem mais frias agora. A noite está só começando.
CORTA PARA:
CENA 8. APARTAMENTO DE LUCINHA. SALA DE ESTAR. INT. NOITE
SONOPLASTIA – CALOR - CONCHITA VELASCO
O apartamento é uma extensão da própria Lucinha: minimalista, mas elegante, com um toque de austeridade. A luz amarelada da luminária desenha sombras em seu rosto — não mais a moça ingênua, mas a mulher que aprendeu a usar a dor como arma.
Ela pousa o notebook no colo, dedos ansiosos e decididos. A tela brilha como um farol de verdades que há muito deveriam vir à tona.
A busca começa fria: Selma Dumont. Nenhum resultado. O vazio da impunidade.
Ela exala um suspiro contido, quase zombeteiro. Um sorriso amargo como se dissesse: “Você se escondeu bem, mas não o bastante.”
O próximo nome digitado é mais que uma busca, é uma sentença: Carolina Godoy Bueno.
Surge uma constelação de matérias — desde fofocas sobre vestidos até denúncias silenciosas de escândalos abafados.
Ela clica no título que dói mais:
“Carolina Godoy Bueno denuncia abuso durante consulta médica.”
Na tela, uma foto pálida, uma mulher com olhos de quem carrega um segredo que corrói a alma.
Lucinha não precisa das palavras para entender o peso daquela história. A morte, o silêncio, a manipulação, tudo encaixa.
O dedo desliza até uma imagem em destaque: Doutor Roberto Lira com sua esposa, Laura, num evento.
Lucinha amplia a foto, a luz da tela delineia o rosto da mulher ao lado dele. Morena, sorriso fechado, olhos que escondem mais do que mostram.
A revelação cai como uma lâmina fria: Selma.
A mulher que se transformou em sombra para proteger seus interesses, para se apagar e reescrever sua história.
Lucinha fecha os olhos por um instante, absorvendo o golpe — não dela, mas dela contra quem tentou enganá-la.
Ela abre um sorriso que não é só de vitória. É um sorriso de desafio, de promessa silenciosa.
Com a voz baixa, quase um sussurro cortante, ela recita para si mesma — para Selma, para o passado, para a traição:
LUCINHA - (com veneno contido) Te peguei, vadia.
O vinho na taça balança suavemente, como se até ele conspirasse para esse momento.
Ela deixa o notebook repousar no colo. A música de Conchita se intensifica, cheia de drama e tensão, encerrando a cena com a promessa de que essa história ainda vai ferver.
CORTA PARA:
FIM
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